A Bisbilhoteira

Ah, minha filha, eu não sei contar histórias. E se fiz o que fiz foi porque achei que deveria.

Todo dia era a mesma coisa, aquela sem-vergonhice, aquela violência, aquele mundo perdido. Até crianças, meu Deus!

Sabe, eu sou aposentada. Trabalhei cinqüenta anos, professora de primário. Sempre amei as crianças, o futuro do nosso país. Por isso, meu coração se apertava ao ver aquilo.

Quando me mudei para aquele prédio, não havia nada parecido. As pessoas passeavam tranqüilas na praia, turistas vermelhos de sol e a cidade era só maravilha. Mas daí os casebres se espalharam, subiram o morro, diante da minha janela. Que eu podia fazer, minha filha? O quê?

Não trabalhava pra prefeitura, não era responsável pelo planejamento urbano, nada... Enfim, chegaram aqueles bandidos miseráveis. Venderam drogas, armas e foi aí que o caos se instalou.

Acabou-se o sossego. Tiro dia e noite. Arrastão na praia e menino matando gente por cincos reais. Eu tinha medo; tão perto de uma senhora sozinha como eu. Meu filho mora longe, em outra cidade, foi embora por causa do medo. Mas eu não tinha condições; com muito custo tinha comprado meu apartamentinho. Pra onde eu iria?

No natal do ano passado, meu filho me deu uma câmera fotográfica. Linda! Dessas que não tem filme, olha no visorzinho e tchan!, já tirou a foto. Falou que era pra eu fotografar as belezas da cidade.

Só que a feiúra era mais aparente, moça. Como é que se pode ver beleza com tamanha desgraça por aí?

Vi tanta coisa ruim, tanto criança se drogando, roubando, matando. Elas andam com as armas por aí como se isso fosse normal, sabe?

E foi disso que tirei as fotos. À noite, aquilo lá parecia o Iraque, os tiros subindo no céu, acertando os prédios do lado. Um dia, uma bala entrou em minha casa, atravessou o vidro e fincou no teto. Que medo que eu tive naquele dia!

Certa vez, porém, teve uma discussão séria lá embaixo. Dava para ouvir gritos, procuravam por alguém. Correria. Trouxeram um rapaz, que eu já tinha visto noutras ocasiões conversando com as pessoas da região. Arrastaram o pobrezinho até lá em cima, numa laje e, depois, cinco ou seis moleques atiraram nele.

Desculpa se minha mão treme, mas é que foi uma cena horrível. Sim, eu fotografei tudo.

Mas, na hora do jornal, apareceu a foto do morto, dizendo que era um repórter. Morreu porque era curioso. Procuravam o bandido que tinha comandado essa crueldade. Eu sabia quem era, mas não tinha fotos dele.

Apaguei todas as luzes da minha casa e fiquei na janela, com a máquina na mão. Estava nervosa, eu podia ajudar a resolver um crime. Mas pensava se faria alguma diferença. Tantas pessoas morriam todos os dias, por que com aquele seria diferente?

Então, eu avistei o bandido. Ele não tinha cara de mau, mas mesmo assim eu tinha medo dele. Esperei até pegar um ângulo bom e tirei a primeira foto.

Só que eu havia me esquecido de desligar o flash e aquela luz branca brilhou. Lá embaixo, todos olharam para o meu prédio.

— Porra, estão tirando foto da gente! — gritaram lá embaixo.

Por uma fresta na cortina, eu vi que eles deram dois ou três tiros pra cima. Então todos correram em direção a minha casa.

Fiquei apavorada, moça! Achei que eles iam me matar.

Sim, liguei pra polícia, mas caiu na espera, dizia que todos os atendentes estavam ocupados mas que não era para desligar. Eu não podia esperar, eles deviam estar subindo, iriam quebrar minha máquina e depois fazer sei lá que atrocidades comigo. E eu sabia do que eles eram capazes, aqueles monstros!

Peguei minha máquina e corri escada acima. Ouvi gritos no corredor e som de tiros. Continuei subindo, meu sangue gelado e um cansaço, achei que iria desmaiar. Imagine só, uma senhora como eu subindo dez andares!

Cheguei ao terraço e me escondi atrás da caixa d’água. Eu sabia que não demoraria para eles me pegarem, me jogassem lá cima bem no meio da rua. E tudo continuaria a mesma coisa de sempre. Talvez a foto da minha identidade aparecesse na TV, mas amanhã, ninguém mais se lembraria de mim.

Foi quando ouvi passos e duas pessoas conversando. Eles estavam lá em cima.

— A véia fugiu, meu’rmão!

Incrivelmente, a polícia apareceu. Sons de sirenes na rua.

— Fodeu, véio! A polícia chegou. Vamos descer! Vam’bora!

E eu fiquei lá em cima, havia urinado nas calças, chorando e com medo de voltar para casa. Eles iam me matar, cedo ou tarde.

Mas a polícia me reconfortou, viram as fotos do bandido e me falaram que eu ficaria no programa de proteção à testemunha, que eu não tinha que ter mais medo.

As fotos que tirei apareceram nos jornais, mas o bandidão não foi preso.

Só não imaginei que os repórteres iriam vasculhar minha vida. Nunca pensei isso. Eles foram lá e descobriram que eu havia falsificado a assinatura do meu falecido esposo para receber a aposentadoria dele.

Tive que vender meu apartamento para pagar a dívida com a Previdência e de testemunha virei ré.

Se eu soubesse disso, moça, nunca teria tentado fazer o bem. Aqueles meninos faziam coisas ruim lá embaixo, mas nunca fizeram nada contra mim.

Eu devia ter ficado quieta no meu canto.

Aqui, nesse país, só se dá mal quem não merece.