Os crimes do Coronel

Os Crimes do Coronel.

Era tarde, já início da madrugada, quando João saiu do turno e pegou o caminho de casa. Estava cansado, desanimado da vida.Fora um dia de muito barulho, muitas ocorrências, muitas pessoas tristes. E alguma coisa o incomodava. As ruas estavam silenciosas naquela hora. O carro vencia a distância em boa velocidade. Depois de alguns minutos dirigindo, aproximou-se do portão de sua residência, o farol do carro

Iluminou o portão e o fundo da garagem. Tudo era silêncio.João olhou em volta à procura de alguma coisa, um movimento, alguém escondido, mas não sabia dizer o que poderia ser, ou quem seria.

Apertou o botão do comando eletrônico e a grade começou a levantar com um rangido lento e estridente. Abriu-se o portão,.João acelerou,avançou e apertou novamente o comando eletrônico.Novo rangido e a grade se fechou.O cachorro não latiu e nem foi ao seu encontro.Deixou o veículo no fundo da garagem, passou pela porta lateral, foi até porta da cozinha, abriu-a, entrou e dirigiu-se para o quarto das crianças, não as beijou para não acordarem.Eram a Janja,o João Carlos e o Januário. Crianças belas, saudáveis e educadas. Tinham idades de cinco, três e dois anos respectivamente, possuíam a beleza exótica da mãe, como sempre afirmava.Olhou-os com ternura e,sempre em silêncio foi ao banheiro,trocou a roupa e preparou-se para deitar ao lado de sua bela esposa.

Encontrara Mariana numa noite fria e chuvosa, quando ela saía do curso de pedagogia e, desconfiada de movimentos estranhos de pessoas e carros em velocidade alta nas proximidades de onde aguardava o ônibus, chamou a emergência da polícia. João estava na viatura que a socorreu e a levou para casa, para que não tivesse problemas. Conheceu a família dela, a mãe e o padrasto. Era uma sexta-feira , no dia seguinte João estava de folga e por isso foi até a casa dela saber como passavam.Conversaram muito, passaram para um breve namoro e o amor os uniu.Casaram-se dois meses depois num ato simples.Foram residir na casa que fora dos pais de João, um pouco distante do centro, mas mesmo assim um lugar calmo e aprazível.Ali tiveram seus filhos.As crianças cresciam felizes, tinham lugar para brincar e um cachorro chamado Sapeca que raramente latia e nunca mordia ninguém.Mas ele dava alerta durante a noite.

Antes de ir dormir João foi à cozinha, abriu a geladeira, tomou água, olhou o bolo que Mariana fizera, mas não comeu. Na verdade aquele cachorro quente do lanche ainda estava parado no seu estômago, muito salgado, ou talvez a correria não o tenha ajudado na digestão. Foram muitas as chamadas de emergência naquela noite, nenhum tiroteio, nenhuma pessoa morta, apenas briga por bebedeiras, discussões que foram resolvidas. O movimento das várias viaturas foi constante naquele turno. A alimentação fora apenas um lanche.

João foi para o seu quarto e deitou-se. Fez um carinho na mulher. Mariana roncava suavemente, parecia um sono feliz e certamente Mariana era feliz. Pelo menos João fazia tudo para que Mariana e as crianças fossem felizes. Tentou dormir.O sono não vinha.Virou de

lado, depois novamente para o outro lado. Permaneceu deitado, em silêncio, tentava escutar sons, mas nem os grilos faziam barulho essa noite. Muito ao longe um galo, um cão latiu e nada mais.

João estava inquieto. A casa era bem fechada, as camas colocadas de forma que balas perdidas não pudessem atingir ninguém, mesmo assim estava inquieto, embora não temesse um ataque, pois não havia razões para isso. Não dormia e atribuía isso ao cansaço, não dizem que a pessoa cansada demora mais para dormir. Bobagens. Levantou-se e foi para a cozinha, comeu bolo, tomou uma cerveja e ficou ali sentado. Por questões de treinamento lembrou-se de manter a arma ao alcance da mão. Depois de alguns minutos foi ao quarto. Um estranho movimento o alertou. Uma pancada seca. Caiu.Despertou horas depois no hospital. Estava rodeado por policiais. Muitos trabalhavam juntos com ele, outros eram de unidades de outras áreas. Aturdido, João olhou para os lados, não viu Mariana e nem os filhos.

Silvestre um cara meio estranho, era soldado lá no batalhão, aproximou-se e perguntou-lhe com um ar mesquinho:

-Porque fez isso Sargento?Que coisa mais triste? Você merece a forca se aqui tivesse a pena de morte. Afirmou.

-Onde estão Mariana e meus filhos? Perguntou. Ninguém lhe respondeu, João levantou-se de um salto, encarou a todos com

fúria nos olhos, agarrou o Joaquim, seu parceiro de patrulha, pelo colarinho

exigindo lhe informasse sobre a mulher e os filhos.

Uma voz de comando elevou-se e alguém determinou:

-Sargento João o senhor está preso. Pela morte de sua mulher e de seus filhos.

-Conduzam-no ao quartel e mantenham-no no cárcere!

Foi sacudido, algemado e seguro por fortes mãos, depois

largado em uma cela. Recebia água limpa e comida três vezes por dia, nunca foi atendido por ninguém para poder falar,perguntar,saber o que ocorrera.Não matara ninguém,muito menos mataria sua amada Mariana e seus filhos. Calcula ter ficado dois dias na cela. Era noite quando ouviu passos. Era Joaquim. Ele chegou às grades e atirou-lhe algumas roupas ordenando-lhe:

-Se vista rápido! Venha comigo!

-O que houve Joaquim? O que aconteceu com minha mulher e meus filhos?Perguntou com, voz fraca.

-Eu não matei ninguém. Afirmou.

-Sei disso. Disse-lhe Joaquim quase num sussurro.

Depois permaneceu em silêncio e fez-lhe um sinal para que o seguisse. Embrenharam-se por uma viela do quartel, chegaram a um alto muro nos fundos.

-Adeus, nos teus bolsos tem o que precisas para seguir em frente. Disse Joaquim, deu meia-volta e retornou.

João pulou o muro e correu para uma mata fechada. Correu muito.Não viu e nem ouviu movimentos,mas mesmo assim afastou-se das trilhas.Parou quando avistou o foco de luz de um poste. Remexeu nos bolsos e encontrou dinheiro, a sua identidade civil e um bilhete onde leu: ”Vá ao necrotério, fale com Neca, depois desapareça”.

Seguindo o conselho do bilhete, João partiu na direção do necrotério. Não lembrava-se de conhecer nenhuma Neca. Conhecia muita gente por lá, mas essa Neca nunca a vira. Não sabia que horas eram e não queria encontrar surpresas pelo caminho.Chegando ao necrotério esperou um pouco e dirigiu-se à porta, empurrou-a e entrou. No balcão havia um homem a quem João dirigiu-se perguntando por Neca. Estranho que não havia ninguém ali que fosse conhecido.Sempre alerta, aguardou até que apareceu alguém e lhe disse ser Neca. Manteve a serenidade, mas esperava que, pelo nome Neca fosse uma mulher. Era um homem. Um gay.

-Mandaram-me falar contigo. Você é Neca?

-Sim, sou eu mesma, venha comigo.

João seguiu o indivíduo que o levou até uma sala, foi abrindo gavetas e dizendo:

-Aqui estão seus filhos, reconheça-os e depois desapareça!

Trêmulo, João olhou o primeiro corpo, era de uma mulher, a seguir o de uma menina e os dois seguintes eram meninos, todos em idades semelhantes à de seus filhos. Respirou fundo e sorriu levemente quando viu que não eram os corpos de sua família.Neca lhe trouxe papéis e mandou que assinasse. Assinou-os e retirou-se do local, cada vez mais rápidos, mais rápidos, até que estava correndo. Parou e resolveu esperar um pouco. Sentou em um banco de uma praça. Estava com fome e viu próximo dali uma padaria. Comprou comida e água. O que estava acontecendo, perguntou-se. Se sua mulher e seus filhos não estavam mortos, deviam estar em casa.Resolveu ir para casa. Desembarcou de um ônibus em uma rua próxima e seguiu a pé. Atravessou o campo de futebol. Entrou em sua casa pela porta dos fundos, que estava fechada e precisou arrombá-la.

Entrou, revisou peça por peça. Toda a casa estava impecavelmente limpa, não havia sinais de sua esposa e de seus filhos.Dos fundos à frente e da frente para os fundos: nada. Resolveu que iria embora, momento em que avistou uma minúscula bola de papel. Aparou-a e desenrolou-a. As letras garrafais pareciam ser de alguma pessoa conhecida, estava escrito: “A culpa de tudo é do coronel”.

João guardou o bilhete no bolso da calça e saiu da casa. Ao cair da noite chegou na casa de sua sogra.A casa estava às escuras.Bateu à porta e ninguém atendeu.Bateu novamente e nada.Empurrou e a porta não cedeu. Procurou a casa mais próxima e um vizinho disse-lhe que sua sogra e o marido não estavam em casa há alguns dias, não sabia dizer quantos. Resolveu ir embora. Não foi procurado por mais ninguém, nem procurou nenhum colega de serviço, escondia-se quando notava movimento de policiais, também não foi novamente à sua antiga residência. Não deixou de procurar sua família, inútil procura nunca os encontrou. O dinheiro que Joaquim lhe dera estava acabando, então foi para a área portuária da cidade onde passou a fazer bicos para sobreviver e onde tinha um lugar à noite para dormir. Dormia pouco,pois precisava manter-se atento.Ainda tinha o bilhete que dizer ser o coronel o culpado de tudo.Do que ganhava guardava um pouco para pode sair dali e procurar respostas.Deixou a barba crescer.Passaram-se três meses.

Certo dia, depois de trabalhar muito, recebeu o que lhe deviam, esperou anoitecer, pegou suas parcas posses e foi embora. Comprou um boné e foi para próximo do quartel.Escondido observou o movimento até ver Joaquim sair.Seguiu-o por duas quadras até que ele entrou em um prédio antigo,desses locais onde costumam reunir-se drogados, moradores de rua e outros tipos.Passou a observar de uma janela, de onde viu Joaquim encontrar-se com um homem que vestia um capote, botas de canos longos e chapéu de abas largas.João teve a certeza na hora que aquele homem era o coronel João Manoel. Eles conversaram um pouco e Joaquim retornou, enquanto o homem saía pelo outro lado.

João escondeu-se e quando Joaquim passava por ele, deu um rápido golpe e o derrubou. Logo lhe desferiu vários socos, tomou-lhe a pistola e apontou para a cabeça. Joaquim pediu-lhe clemência, falaram de sua vida miserável, com muitos filhos, amantes em cabarés e uso de muita bebida alcoólica, coisas que lhe trouxeram dissabores diversos incluindo a perseguição do Coronel João Manoel, que o levou para seu grupo de extermínio. Joaquim não era assassino, não tinha coragem para isso. Então a sua missão era a de atrair as vítimas para locais os mais diversos, onde eram mortos ou desapareciam para nunca mais. O Coronel João Manoel usava como assassinos o Silvestre e o Carlos Sá, afirmou ainda Joaquim.

-Sua família está viva, estão na cidade natal de sua sogra. Disse Joaquim tremendo muito.

-Eles estão a sua procura, você precisa fugir.

João conhecia muito bem o Coronel João Manoel, homem duro, mas considerado bom comandante. Fora do trabalho, no entanto, sabia que ele tinha certos costumes estranhos, gostava de prostituição, bebia muito e tinha alguns negócios escusos que nunca vieram à tona.Joaquim implorou pela vida alegando a ajuda que tinha dado a João e este o mandou embora ficando com sua arma, mesmo sabendo que poderia ser delatado. Passou então a vigiar o Coronel, que vivia de gordas farras em vários locais da cidade.Num desses bordéis João viu Neca juntamente com Silvestre e Carlos Sá, logo depois chegou o Coronel,concluiu então tratar-se do local de encontros da quadrilha. Faltava Joaquim, mas ele não veio. Escondido João aguardou.Um carro escuro chegou com dois homens, buzinaram duas vezes, depois entraram no cabaré. Cerca de três horas depois saíram o Coronel, Neca, Silvestre, Carlos Sá e os dois chegados no carro escuro. Silvestre foi para os fundos do prédio e retornou em outro veículo onde embarcaram o Coronel,Neca e Carlos Sá. Foram todos embora. João ficou pensando em como vingar-se. Resolveu dar uma olhada no cabaré. Havia apenas alguns bêbados e algumas mulheres também embriagadas.Pediu um uísque, bebeu e foi embora.

No dia seguinte João retornou ao local. Encontrou o mesmo canto onde estivera na noite anterior e esperou. Os homens chegaram e entraram para o salão.Passado mais ou menos o mesmo tempo da noite anterior eles saíram.

No terceiro dia de campana João já sabia como agir.

Como sempre, chegaram o Coronel, Silvestre e Carlos Sá. Coronel João Manoel pegou uma garrafa de uísque e foi para um quarto onde se encontrava Neca travestida com florido vestido. Entre carícias eles comentaram os últimos acontecimentos.estavam alegres. Silvestre e Carlos Sá foram para uma sala com duas das mulheres, muita bebida, risadas, armas sobre a mesa. Os dois desconhecidos do carro escuro chegaram entraram, foram para a mesma sala.Mais uísque, gritavam.Uma mulher entrou com uma garrafa já aberta e serviu os copos de todos.Eles começaram a beber e logo em seguida tiveram espasmos e caíram.Estavam mortos.Pensando que estavam bêbados as mulheres saíram da sala. O Coronel João Manoel vestiu-se e saiu do quarto. Nesse o seguiu.Ambos entraram no carro dentro do galpão e aguardaram os demais.Uma terrível explosão abalou o pequeno galpão, o carro em que estavam elevou-se envolto em chamas, João Manoel conseguiu sair, rolou pelo chão para apagar o fogo,mas quando quase conseguia um vulto com uma arma na mão desferiu-lhe dois tiros na cabeça.Deixou a arma no chão e foi embora.

João pegou a sacola com suas parcas posses e foi embora. Os crimes do Coronel João Manoel, foram investigados e alguns foram descobertos e arquivados. A arma encontrada no local foi identificada como sendo de Joaquim, o qual registrara o furto. As pessoas sepultadas como sendo a esposa e os filhos de João nunca foram identificadas. Suspeitava-se que fossem familiares de Joaquim.

A família de João reuniu-se dias depois em uma bela e pacata cidade do interior, mas ninguém sabe até hoje onde nasceu a sogra de João.

Fim.

drmoura
Enviado por drmoura em 11/04/2013
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