A crucificada: 1 - Segredos

CAPÍTULO 1

Segredos

Barretos, São Paulo

Sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

I

Silvana acordou com dores nos braços. Abriu a janela para deixar o ar frio da manhã entrar e respirou fundo. Observou o dia se clareando e sorriu. Seria um dia longo, o dia tão esperado. Havia passado por tantos e tantos dias esperando o momento certo, agindo com cautela e finalmente ele chegara. Á noite tudo vai ser resolvido.

Alguém batia na porta do quarto quando terminou de se trocar.

- Está aberta! – ela gritou.

Cassiano espreitou o rosto para dentro do quarto e sorriu. Era o irmão mais novo de Silvana. Viviam juntos. Os dois eram viúvos. Ambos haviam perdidos respectivos marido e mulher muito jovens, e nenhum deles tivera filhos. Cassiano ainda remoia a morte de sua mulher, e sempre buscava algum conforto em Silvana.

Ele era um palmo mais alto que ela, tinha os olhos escuros, os cabelos negros e desgrenhados, e um sorriso agradável. Exalava o cheiro do perfume caro que tanto gostava. Via na irmã a figura materna, a qual não havia conhecido. Eles davam-se muito bem, e o café sempre estava na mesa quando Silvana acordava.

- Veio trazer o café na cama hoje? – perguntou Silvana sorrindo.

Cassiano foi até ela e deu um beijo carinhoso em suas bochechas.

- Isso não é mordomia demais? – brincou.

- Não desde que você tenha uma irmã que tanto ama e que cumpre o papel de mãe perfeitamente.

Ele riu.

- Eu sou melhor como filho do que você como mãe.

Silvana achou graça.

- Assim você me magoa, querido irmãozinho. E como andam as coisas? Está tudo certo para hoje á noite?

- Mais certo do que nunca. Já recebi informações importantes. Hoje sai o veredicto tão esperado. Pelo menos o que nós tanto esperamos.

Ela sorriu satisfeita. Então está tudo certo mesmo. Cassiano sempre trazia boas noticias.

Ele continuou.

- De hoje não passa, isso está garantido.

- E como vai ser depois? – ela perguntou curiosa. – Quem vai ficar responsável por nossas ações? Isso foi mantido em sigilo até agora, e muito bem guardado. Mas quando se tornar público talvez não agrade a todos.

- Isso não vai se tornar público. Pelo menos não em partes. Tudo deve ser feito na surdina. É um ato criminoso, irmã. Nós estamos envolvidos, não se esqueça.

- Eu não enxergo isso como um ato criminoso. O que fizemos até agora é tão comum quanto andar para frente. O que o torna diferente é o modo como esperamos agir daqui pra frente.

Cassiano pareceu preocupado.

- Você me assusta ás vezes. Saiba que dependendo do resultado, é bom esquecer que eu estou envolvido. Não quero ultrapassar limites.

- Seus limites são sempre escassos. Se você entrou nessa, não tem porque continuar, já que conhece nosso verdadeiro objetivo. Mas não deve se preocupar, não sei se vai ser como esperamos.

- Por quê? – perguntou Cassiano com o semblante preocupado. – Sabe de alguma coisa que eu não sei?

Silvana desviou o olhar e foi até a janela. Suspirou e tentou afastar aquilo que perturbava sua mente nos últimos dias. Investigara a respeito, mas nada conseguira encontrar. Parecia tudo normal, mas ela desconfiava de coisas normais.

- O que você sabe que eu não sei? Tem a ver com a...

- Não, não é nada demais. – interrompeu Silvana. – Deixa pra lá. São apenas receios. Receios bobos.

Cassiano a encarou, mas depois sorriu.

- Então eu vou saindo. Só vim lhe dar bom-dia.

- Bom-dia. – ela murmurou.

O irmão saiu do quarto e Silvana ficou sozinha.

De hoje não passa.

II

Ela acordou muito bem disposta aquele dia.

Levantou-se devagar para não acordar o marido, e fez todo o seu ritual matutino. Espreguiçou-se, se olhou no espelho e se achou gorda, trocou de roupa, penteou os cabelos, escovou os dentes e foi fazer o café.

Seu marido gostava dele fraco, sem muito açúcar, pois desconfiava que tivesse diabetes. Sentia certo receio em fazer o exame, e Kátia o odiava por isso.

Casaram-se ainda muito jovens, sem a tutela de seus pais. Amavam-se, e isso fez com que se casassem ás escondidas, sem que ninguém soubesse. Mudaram de cidade por algum tempo e quando voltaram, Kátia anunciou que estava grávida. Então todo o ódio pelo casamento se desfez. A criança virou o centro das atenções, e mesmo estando na barriga da mãe todos queriam agradá-la.

Meses depois, Kátia sofreu um aborto instantâneo ao escorregar no chão do banco que trabalhava. Foi uma desgraça para a família toda, mas que foi diminuída quando um ano depois ela descobriu-se novamente grávida.

Todas as regalias e atos carinhosos voltaram. Oito meses depois, o médico disse que a criança estava morta. O bebê foi retirado e o funeral causou uma grande comoção na cidade. Kátia não compareceu. Passou dias e dias deitada, sem se levantar, sem comer, nem ao menos falar.

Ela se lembrava com muito pesar das crianças não nascidas. Já fazia quase três anos, e eles ainda não haviam conseguido outro bebê. Kátia tinha medo que o próximo tivesse o mesmo destino dos outros dois.

Quando terminou de fazer o café, seu marido apareceu. Abraçou Kátia por trás e deu um beijo em sua boca. Ela adorava o beijo delicado e sem pretensões do marido. Fora assim que ele a conquistara.

- Dormiu bem, Marcelo? – perguntou enquanto ele se sentava.

- Mais ou menos. Você ronca demais.

Ela riu enquanto colocava as xícaras na mesa. Pôs a garrafa de café, pegou o pão e buscou maionese na geladeira. Sentou-se em seguida.

- Hoje você não trabalha, por isso fiquei á vontade para roncar. – ela brincou.

- Não trabalho e odeio ficar em casa. Tava pensando em sair um pouco depois que você terminar seu expediente. Prometo que a gente volta antes do tão aguardado momento.

- O tão aguardado momento. – ela repetiu sonhadora. – Eu não o aguardo tanto assim. Não admito que foi burrice minha participar...

- Você não participou...

- Eu idealizei. – ela completou. – Está certo. Continuando, não acho que foi uma babaquice total como você diz...

- Eu não acho uma babaquice. Eu só penso diferente de vocês, sabe disso. O fato de eu não querer participar não faz de mim diferente de vocês.

Kátia examinou Marcelo com indiferença. Ele sempre tentava recuar quando o assunto era esse.

- Você é da mesma opinião que nós? – ela perguntou cortando um pão, tentando parecer displicente.

Ele demorou para responder, em vez disso deu uma golada no café. Fez uma careta em seguida.

- Acho que você pôs menos açúcar do que eu pedi.

Kátia não prestou atenção. Queria saber da resposta do marido.

- Você é da mesma opinião, não é?

Ele bufou, percebendo que era uma batalha perdida.

- Sou, sabe que sou. Já disse isso.

- Nunca disse com convicção.

Ele pareceu nervoso.

- Você limpa a casa quase todos os dias. Já encontrou alguma coisa que me desmente? Se eu discordasse de você, já teria dito há muito tempo. Somos casados há quatro anos e parece que não confia inteiramente em mim.

- Claro que eu confio em você. – Kátia disse mansamente. Não gostava de irritar Marcelo. – Você sabe o quanto isso é importante pra mim.

Ele assentiu.

- Estou terminando uma coisa que ela começou e não teve tempo de terminar.

- Ela não teve oportunidade.

- Não, não teve. Eu prometi á ela e não posso parar agora. Agora que fomos tão longe.

Marcelo assentiu concordando e deu mais uma golada no café. Fez outra careta.

- Amanhã eu ponho mais açúcar. – Kátia murmurou.

Ele deu de ombros.

- E como anda o banco? O gerente continua dando em cima de você?

- Ele nunca deu em cima de mim.

Marcelo suspirou.

- Agora é você que está desconfiando de mim. – ela disse impaciente. – Minha relação com ele é profissional. E ele é casado com uma amiga minha. Você me conhece, sabe que eu jamais faria isso com ela. Muito menos com você.

- É que ás vezes eu fico pensando... Eu não consegui lhe dar um filho...

- Isso é bobeira. – ela interrompeu com um sorriso. – Você conseguiu sim. Deu-me dois.

- Mas você perdeu um e outro nasceu morto.

Kátia odiava os ataques depressivos dele.

- Isso não é hora para ficar lembrando-se dessas coisas. O que você disse àquela hora? Queria nos levar para sair?

- Sim. Talvez um cinema, um jantar...

- Acho que eu não posso. Vou ter que dar um pulinho na sede mais tarde. Fica para amanhã?

- Amanhã eu vou estar cansado. Minha folga é hoje.

- Mas amanhã eu vou estar livre.

Marcelo a encarou choroso.

- Não olhe assim pra mim. – ela resmungou. – Vai ser amanhã. Não posso cancelar.

- O que você vai fazer na sede?

- Segredos e mais segredos.

Ele a encarou duvidoso.

- Eu também não sei o que é. – Kátia continuou.

- Então você vai levar isso até o fim mesmo? E depois, dependendo a decisão que tomarem hoje, como fica? Não quero ver você envolvida com...

- Relaxa. Minha ideia é outra. Bem menos perigosa e nada criminosa.

Ele sorriu e Kátia deu o assunto por encerrado.

- Vou me arrumar.

Ela deu um beijo no marido e foi se olhar no espelho novamente. Viu uma mulher de 26 anos, esbelta, com cabelos loiros escorrendo pelas costas. Olhar cativante e sorriso maroto. Ainda sou bonita. Vou dar muitos filhos para o meu marido.

Terminou de se arrumar e pegou sua bolsa. Quando estava saindo, Marcelo a abraçou e a beijou longamente.

- Cuide-se. Não confie inteiramente em ninguém.

- Por que está me falando isso agora?

- Temo por você. É mais corajosa do que eu.

Ela sorriu e saiu para o trabalho.

O banco em que trabalhava fervia de pessoas. Ela fazia depósitos, executava pagamentos, sacava dinheiro. Era um mundo do qual ela fazia parte, e não conseguia ver-se fora dele.

Á caminho do banco, lembrou-se de repente que o gerente disse que tinha uma coisa importante a tratar com ela.

Curiosa, apertou ainda mais o passo.

III

Lino andava sorrateiramente. Andava claudicante sob a noite fria que caía. Ele olhava para as estrelas enquanto caminhava. Sempre as admirara. O desenho que fazem no céu, o show de luzes. Ele olhava com ar sonhador, e sorria conforme lembrava o nome das constelações.

Andava com as mãos nos bolsos, com o único intuito de esquentá-las.

Parou um momento para acender um cigarro. Desanimado, tirou as mãos dos bolsos e pegou um maço de cigarros do Paraguai. Era o seu favorito. Eles eram baratos e faziam mais fumaça do que os nacionais, e a adrenalina de fumar algo proibido ajudava um pouco.

Tirou um cigarro e pegou o isqueiro no bolso do paletó.

Enquanto acendia, um morador de rua se aproximou. Lino recuou assustado, mas o susto logo se desvaneceu. Era um conhecido.

- Adelino Soni dos Santos, meu amigo. – disse o mendigo banguela, abrindo os braços.

- Se está pensando que é tão sortudo a ponto de ganhar um abraço meu, está mais do que enganado. Já teve sorte o suficiente de eu estar com vontade de tragar um cigarro do Paraguai.

- Do Paraguai? São os meus favoritos.

Lino já sabia o que o homem queria. Tirou outro cigarro do maço e pôs na boca do mendigo. Também fez o favor de acender. Ele deu uma tragada e soltou a fumaça, que ficou dançando no ar até ser engolida sutilmente.

- E, por favor, mendigo fumante, me chame de Lino.

- Lino? O que há de errado com Adelino?

- Eu amava minha mãe, mas odeio o meu nome.

Virou as costas e continuou andando.

A noite correra melhor do que imaginara. Acabara de chegar de um encontro com uma dama carinhosa e charmosa. Era um pouco mais velha que ele, mas adorou conhecê-la. Ela pagou a conta e marcou outro jantar para o dia seguinte. Lino adorava mulheres que pagavam. Ele andava constantemente sem dinheiro. Gastava quase tudo com apostas, e geralmente não ganhava nenhuma.

Fez questão de esconder esse seu lado para a dama. Fez o papel de convidado interessado e inteligente, o que ele sabia que era, claro. Descobriu que a companhia dela era agradável, e certamente estaria no mesmo lugar no dia seguinte.

Chegou ao prédio em que morava e conversou com o porteiro, um homem sorrateiro e assustado, mas muito esperto. Ele gostava de falar principalmente sobre futebol e crimes. Conhecia a habilidade de Lino para com os crimes, e gostava de ouvir sua opinião. Lino o achava um coitado, ficava a noite inteira parado e acordado sem ninguém para conversar, e de vez em quando perdia uma ou duas horas do seu tempo para deixá-lo feliz.

Subiu ao seu quarto no sétimo andar e resolveu que precisava tomar um banho. Seu paletó estava impregnado pelo cheiro do cigarro. Despiu-se e ligou o chuveiro na água gelada, para tirar um pouco da tontura do vinho que havia bebido. Foi até o espelho e rapou o tufo de barba que crescia no queixo. Adorava olhar-se no espelho. Admitia-se que era um galante senhor de cinquenta e um anos. Os fios grisalhos em sua opinião o deixavam mais masculino e atraente.

Vestiu um roupão e deitou-se na cama com a luz acesa. Resolvera ler um pouco, mas não conseguiu escolher um livro que lhe agradasse.

Decidiu que precisava fumar. Saiu para a sacada do prédio e do cigarro só sobrava o toquinho quando ouviu o som incessante do celular.

Essas merdinhas eletrônicas...

O número era desconhecido, e a pessoa que falava parecia preocupada.

- Adelino? – era uma voz grave e intimidadora.

- É ele. Quem fala?

- Aqui é o delegado Ramón Santana, nos conhecemos recentemente.

Ele não era estranho, deduziu Lino.

- Claro, eu me lembro. O que deseja? Creio que já é bem tarde para uma ligação amistosa.

- E você está certo. Precisamos que você venha até a delegacia, é urgente.

- Mas agora são duas da manhã, eu estava me preparando para dormir. – disse impaciente.

O delegado não pareceu gostar de sua recusa.

- Faça o favor de adiar sua soneca. Estaremos esperando. Venha o mais rápido que puder.

Lino ponderou por um instante. Percebeu que não tinha escolha.

- Estarei aí em vinte minutos.

---------------

continua dia 15/04...

Fernandes Carvalho
Enviado por Fernandes Carvalho em 11/04/2013
Reeditado em 11/04/2013
Código do texto: T4236030
Classificação de conteúdo: seguro