MÁ COMPANHIA

Depois dos caminhos que palmilhei na vida, percebi que, em alguns deles, a travessia foi prazerosa. Contudo, em outros, tive de transpor obstáculos que me provocaram muita amargura. Vi abrirem-se algumas portas que me deram acesso a paisagens seguras, como vi também abrirem-se outras que me levaram a terrenos minados. Não desejaria recordá-las, se não houvesse nelas algum benefício, mas as lembranças me procuram enquanto escrevo o roteiro dos meus dias, a fim de reacender a memória. Olho, pensativo, a natureza sombria que descora as primaveras da vida, trazendo ruína para pessoas de bem. Vejo, surpreso, a dimensão ilimitada da maldade humana. Fico, então, em má companhia.

A vida é uma escola que desenvolve o potencial humano. Cada dia é uma aula. Quem é reprovado numa vida precisa repetir o período letivo, se não preferir amargar o estado de erraticidade. De tudo que assimilei nas aulas da vida, destaco a constatação, depois de duras provações, de que, além de difícil, defender-se do ataque traiçoeiro dos predadores sociais, especificamente daqueles oportunistas inescrupulosos que cometem a extrema covardia de matar alguém quando os seus objetivos escusos são frustrados, é também um desafio perigoso, porque o poder pessoal de que desfrutam desconhece os limites éticos consagrados pela sociedade. Tal como os gaviões surpreendem as suas presas desprevenidas, procuram conviver com as pessoas de bem para o seu próprio bem, que consiste em levar vantagem em tudo e a todo custo, no momento mais oportuno e da maneira menos arriscada. Desejam a prosperidade como qualquer pessoa normal, mas, não afeitos ao trabalho, preferem parasitar o patrimônio de quem lutou para conquistar a sua estabilidade econômica. Problemáticos desde a infância, na qual colocam, como se fora uma lixeira, a culpa pelas suas atrocidades injustificáveis, empenham-se em satisfazer a sua má índole, proporcionando às suas presas toda sorte de infortúnios. Nunca dispostos a contornar com civilidade as adversidades corriqueiras da vida, mas sempre dispostos a destruir sem piedade tudo aquilo que identificam na sociedade como obstáculo à satisfação das suas vontades secretas, esses indivíduos não sentem culpa nem remorso pelos prejuízos, materiais e psicológicos, que causam às pessoas inadvertidas que selecionam para obsedar, porque são indiferentes aos direitos humanos. Para tanto, valem-se de artimanhas dificilmente reconhecíveis nas interações com a sociedade, na qual se apresentam como cidadãos eloquentes e espirituosos. Descrentes de Deus e dos dogmas religiosos, vivem num submundo caracterizado pela velocidade inconsequente e pela aventura irresponsável, pois os seus projetos de vida se exaurem no curto prazo, na busca ansiosa pelo prazer imediato. Por isso, desprezam a paciência e a tolerância, por considerá-las virtudes que os remetem ao planejamento de longo prazo. Exímios simuladores de sentimentos nobres, sabem disfarçar com naturalidade os sentimentos baixos. Os sentimentos elevados não cabem em corações tacanhos. Os predadores sociais são avessos à generosidade, a não ser que sejam os beneficiários dela. Não conseguem, em virtude da avareza profunda, compartilhar os sucessos que logram, mas são habilidosos em comover as pessoas inadvertidas com os fracassos que superestimam, a fim de despertar nelas o sentimento de compaixão, do qual, cedo ou tarde, tentarão tirar algum proveito. Além disso, são falsos na demonstração de afeto, mas sinceros na demonstração de indiferença, que é um tipo, talvez o mais desumano, de ódio. Os sociopatas não têm consciência coletiva: não sabem identificar na sociedade os pensamentos e as condutas imorais. Vale tudo!

Acreditam que os fins justificam os meios em todas as situações da vida social. Assim pensando, e assim agindo, constroem impérios onde reinam absolutos, colocando-se acima das leis e dos bons costumes, tratando as pessoas como degraus para atingirem o que imaginam ser o “topo do mundo”, do qual se julgam merecedores privilegiados, em razão de alimentarem, nas suas mentes ambiciosas, a crença de que são mais espertos do que os outros, que julgam inferiores. Não deixam nada a dever à filosofia astuciosa de Nicolau Maquiavel. Na eventualidade de serem descobertos aplicando um golpe, fingem arrependimento, enquanto, por dentro, permanecem indiferentes, voltando, numa outra ocasião, a arriscar a sorte em novas falcatruas ambiciosas criadas pelas suas personalidades megalomaníacas. O objetivo desses mandriões é a vida fácil, com um mínimo de compromisso e um máximo de deleite. Se alguma das investidas, por motivo alheio à sua vontade, fracassa, não hesitam em colocar a culpa nos inimigos imaginários, fazendo-se de vítimas das injustiças do mundo. Os predadores sociais não têm amigos, mas comparsas, porque a amizade sincera envolve o sentimento de solidariedade desinteressada, que neles é a antítese desprezível do seu egotismo. Por força dessa natureza narcisista, sentem-se e comportam-se como se fossem o centro intocável do Universo, uma percepção incompatível com a realidade, embora condizente com o elevado nível de exibicionismo, de ostentação vangloriosa dos dotes pessoais. Investem contra um inimigo, como investem contra um amigo. Tudo depende do interesse imediato, já que não se deixam envolver pelos laços de afetividade. Os sociopatas têm deficiência de controle emocional: as contrariedades mais banais desencadeiam reações fugazes de impulsividade furiosa. Todo cuidado é pouco!

Durante um intenso tiroteio com policiais, Bruno foi ferido mortalmente e Tadeu foi capturado e conduzido ao distrito policial daquela circunscrição. Beneficiados por um indulto de Dia das Mães, ambos invadiram a casa de um casal à noite. A esposa tinha dado à luz uma menina na semana anterior, a quem deu o nome de Carolina, que era o nome da sua falecida mãe. O casal, abençoado pelo nascimento da filha, viveu feliz até o dia em que os dois meliantes invadiram a sua residência pela porta dos fundos, que o marido, por distração, deixara destrancada, depois de alimentar o cão que ganhara como presente de aniversário de um amigo. Antes do confronto com os policiais, o marido foi assassinado por Tadeu, com quem teve uma discussão no bar que costumava frequentar, na manhã do dia do crime, por causa de uma dívida não saldada pela vítima. Tadeu era agiota e havia emprestado, cobrando uma taxa de juros escorchante, certa quantia à vítima, que não dispunha, naquela época, de recursos financeiros suficientes para custear o tratamento médico ao qual a sua filha fora submetida em razão de uma anomalia congênita no coração. Os disparos de revólver atingiram, de forma fulminante, o peito da vítima, perfurando o coração. O sonho estava terminado. O cadáver ficou estirado no chão da sala até a chegada da viatura do serviço de perícia criminal. A violência é imanente a todos os seres humanos, mas o crime não. Nas mentes assassinas, o medo da punição não sobrepuja o desejo de matar. O empréstimo legal é a especulação financeira mediante a cobrança de taxas de juros que geram lucros vultosos às instituições financeiras. O empréstimo ilegal é uma modalidade especulativa marginalizada, porque os seus agentes não pertencem ao seleto grupo integrante do Sistema Financeiro Nacional. Os agiotas exigem notas promissórias ou cheques assinados em branco. A negociação é verbal, não fica vinculada a nenhum documento escrito que possa dar materialidade ao crime. Os agiotas são capazes de chupar até a carótida dos devedores. Assim também agem os traficantes de entorpecentes quando se sentem prejudicados. Será o dinheiro um entorpecente? A vítima desses dois marginais deixou de saldar a dívida no vencimento e, diante da ameaça de morte recebida, tomou a decisão de registrar uma queixa no distrito policial, que redundou na prisão de ambos os criminosos. Nesse dia, sem que suspeitasse, a vítima assinou a sua sentença de morte.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 06/09/2013
Reeditado em 22/10/2013
Código do texto: T4469903
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