MEDO

MEDO



Miguel Carqueija



Naquela tarde de segunda-feira, Ofélio Alvarenga encontrava-se num posto da Receita Federal, onde fôra pegar um disquete para a sua declaração. Nisso um dos guardas de segurança perguntou:
-Por favor, esse Aligátor vermelho aí fora é de alguém aqui?
Fez-se um silêncio mortal. Algumas pessoas fizeram que não com a cabeça.
Ofélio, que era o dono do carro, sentiu-se gelar por dentro. Silenciou. Já pegara o seu disquete, que guardou na valise, e dirigiu-se para a saída, procurando não olhar para o guarda. Qual poderia ser o problema com o
carro?
Como pegaria o carro agora, sem ser visto? Com o rabo dos olhos percebeu que um motorista enfezado tentava manobrar um Ocelote marfim,encontrando dificuldade para sair por causa do Aligátor. Ofélio apressou o passo, tentando imaginar como iria explicar em casa a ausência do carro. A Gumercinda iria fazer um tempo quente, chamá-lo-ia de maluco para baixo. Mas que podia ele fazer? O medo crescia em ondas concêntricas dentro de si.
Precisava pensar numa estratégia para recuperar o automóvel antes que o rebocassem e descobrissem a identidade do dono. Por Deus, e a placa? Pela placa, se a anotassem, poderiam identificá-lo! E agora, o que fazer? Da esquina, já suando frio, Ofélio pesou as possibilidades. O Ocelote já se fôra. O guarda não estava do lado de fora. O jeito seria arriscar... pegar o carro, deixá-lo em qualquer lugar, dá-lo como roubado, “encontrá-lo” uma semana depois... e negar, negar, negar sempre que estivera naquele dia na Receita Federal. Diria ter estado no Museu Lunar, na praia, no planetário ou qualquer lugar vago onde ninguém pudesse destruir o seu álibi... e se o guarda o reconhecesse, seria a sua palavra contra a dele. Quanto ao funcionário que lhe dera o disquete, bem... depois de atender centenas de pessoas num dia, não se lembraria de um rosto. Ofélio contava com aquele fator. Não conseguiriam pegá-lo!
Pensando em tudo isso, Ofélio deu várias voltas pelo quarteirão, apesar
da canseira que isso lhe causou, sob aquela canícula toda. Finalmente ganhou coragem. Estava se atrasando estupidamente e tinha outras coisas para fazer. Percebendo que não havia movimento apreciável na calçada, chamou um flanelinha e entregou-lhe as chaves do carro e uma nota:
- Por favor, pegue-o para mim. Eu não posso ir lá.
- Por que não, senhor?
- Não é da sua conta! Não estou lhe pagando? E tem mais: depois eu lhe dou outra.
-Ah, está bem! Espere que eu já venho!
Ficou esperando na esquina, fingindo um grande interesse pelas manchetes dos jornais expostos na banca. Então o rapaz chegou com o carro e chamou-o:
-Aqui está, chefe.
Ofélio tirou a nota da carteira e foi passá-la ao garoto. Ao fazê-lo,porém,
percebeu que o mesmo guarda saíra ‘a rua e agora olhava clara e firmemente na direção deles... e do carro.
O pânico tomou conta de Ofélio.
Murmurando um palavrão, deu um empurrão no guardador e, tendo já pego as chaves, entrou no carro, bateu com a porta e engrenou a partida.
-Ei! E o resto do meu dinheiro? Espere aí, seu...!
O carro partiu em grande velocidade. O guarda veio correndo e ajudou o flanelinha a se levantar.
-Seu guarda, esse cara aí é louco! Pega ele!
O Aligátor disparou, o velocímetro avançando... Ofélio pisou no acelerador. O carro derrapou e jogou um caminhão de mudança na calçada, em cima de um poste. Pessoas apavoradas pularam de diante do carro enlouquecido. Um táxi desviou-se e bateu em outro veículo.
-Agora é que estou frito mesmo! –choramingou o infeliz Ofélio.
O tráfego não estava muito volumoso, por isso, tirando fintas e raspões, pisando no acelerador, Ofélio conseguiu prosseguir por ruas e avenidas, avançando sinais vermelhos e já agora sendo perseguido pelas viaturas policiais, pilotadas por robôs impassíveis e implacáveis. O carro voava em direção aos subúrbios, completamente fora do caminho de Alvarenga, enquanto os carros da polícia se precipitavam em seu encalço, sirenas enlouquecidas, numa perseguição que parecia coisa dos filmes da Escorpião Negro. Por fim o Aligátor derrapou numa mancha de óleo, num largo imundo, dançou e rodopiou e bateu de lado numa besta estacionada. O celular-rádio-tv começou a tocar e Ofélio, sem cogitar atendê-lo, pegou a valise e saiu precipitadamente do veículo. Crianças e robôs-babás que se divertiam nos lazeres da pracinha fugiram ‘a aproximação daquele homem transtornado e alucinado que corria como um louco, brandindo a valise.
As viaturas da polícia chegaram. Até um foguete policial veio chegando
numa trajetória parabólica, acima dos edifícios. A coisa estava feia e Ofélio disparou para a entrada de uma escola. Entrou correndo, esbarrando em apavorados funcionários e provocando o pânico nas crianças.Três policiais
(esses, humanos) entraram à toda, segurando suas armas, e um deles gritou: -Cuidado! Ele é perigoso!
Ofélio subiu por uma escada de cimento, pulando três degraus de cada vez, ofegando com o inusitado exercício, e se viu num pátio de recreio e basquete.
-Pare! Pare! Renda-se!
Meninas e meninos dispersaram-se em polvorosa. Ofélio correu para o muro e galgou-o, aprontando-se para pular na marquise.
Foi quando a primeira bala o pegou.






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Nos dias que se seguiram, e contra a recomendação médica, o comandante encarregado do caso interrogou várias vezes o paciente, tentando um esclarecimento. Tendo em vista a excelente reputação do ferido, e o seu conhecimento com pessoas de boa posição social, a mídia estava caindo em cima dele por causa da violência cometida. Três balas e a queda na marquise haviam colocado o infeliz Ofélio entre a vida e a morte.
A frustração do Coronel Galvão, porém, não tinha limites. A valise do preso continha apenas material honesto e normal de um homem de negócios. Ofélio trabalhava desde os 16 anos, tinha três filhos pequenos e uma ficha admirável na firma onde trabalhava como executivo. Mas porque aquela fuga louca? O que tinha ele a esconder? A quebra do sigilo bancário também nada havia esclarecido. O passado de Ofélio, que incluia participação em projetos de engenharia na colônia lunar, completava o quadro de reputação ilibada, de vida irrepreensível. Nada de dívidas, de drogas, nada em absoluto. “Meu marido – atestava uma desesperada esposa – era um homem exemplar em todos os sentidos.”
E agora?
O próprio Ofélio, no pouco que pudera falar, tornara a coisa ainda mais desconcertante:
-Eu fiquei com medo...
-Mas medo de que?
-Medo da polícia... o senhor não compreende?
-Compreender o que? Se o senhor não tinha nada a temer... se não tinha feito nada... de que o senhor tinha medo, se era inocente?
-Será que o senhor não compreende? –arquejou Ofélio, em seu leito. –O senhor é da polícia, eu sei. Mas a polícia mata, espanca, prende inocentes, abusa do poder... eu sou um cidadão do povo, e os cidadãos têm pavor da polícia. Eu tive medo e me descontrolei, e foi isso que aconteceu.


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A última palavra foi dada por um psicólogo, o Dr.Juvêncio Aparecido, que conseguiu falar rapidamente com Ofélio pouco antes de sua morte:
“Não tenho dúvidas sobre a absoluta retidão de caráter de Ofélio Alvarenga. Sua vida foi virada pelo avesso e nada se encontrou, nem sequer distúrbios estudantis. O que explica então o pânico que se apossou deste cidadão honesto e respeitador das leis, a partir do momento em que um guarda da Receita Federal – o temido “leão” – perguntou pelo seu carro?
“O caso é mais profundo do que parece ‘a primeira vista. Não se trata de doença mental, para a qual faltam antecedentes. O caso em si transcende a pessoa de Ofélio. Ele é uma vítima do sistema. Um sistema podre, que promove o crime e a corrupção como ideais de vida, seja através do sucesso dos corruptos na política e em outras áreas, seja nos filmes que exaltam criminosos e assassinos, seja nas leis falhas e na falha aplicação das leis, de modo que os piores marginais ficam em liberdade ou usam o sistema carcerário como redes de hotéis de luxo; e o cidadão honesto e inofensivo vive com medo da autoridade pública, que o encurrala com impostos abusivos e toda a sorte de ameaças, não podendo por exemplo avançar um sinal sem ser multado, ainda que seja para fugir de um assaltante. Ele sabe, inclusive, que se sofrer uma violência policial não poderá fazer nada para se defender e que, se processar a polícia, será ameaçado de morte. Ofélio Alvarenga é o protótipo do cidadão comum, exposto e indefeso diante da agressão do sistema em que é obrigado a viver.
Tiremos agora as conclusões necessárias para que este sistema possa, algum dia, ser menos ruim.”

Rio de Janeiro, 12 de abril de 1999.

(imagem do google)


Nota: este conto foi escrito no tempo do disquete e não previu sua futura substituição pelo pen-drive. Ou por outro meio no futuro onde se passa a história.