NA CONTRAMÃO

— Vai que dá! Entra logo, Edu! Tá esperando o quê?

— Pombas! Cala a boca, Lino!

Pisando no acelerador até o fundo, Edu faz o carro saltar para a pista do anel rodoviário. Não consegue ver com precisão. Uma névoa leve embaça o vidro. Tenta ligar o limpador do pára-brisa, mas se confunde e apaga os faróis dianteiros. Luzes vêm ao seu encontro. Consegue desviar do primeiro e do segundo par de luzes.

— Porra, Edu! Cê entrou na contramão! Pára essa merda! Páaaaara!

O grito de Lino se confunde com os guinchos dos pneus que, forçados para um lado e para o outro, fazem o carro tomar direções opostas. O barranco além do acostamento assoma-se de repente. Edu gira para a esquerda, consegue evitar o choque com a parede de terra. O pé parece colado no acelerador. Mantém o carro pelo acostamento. De repente, nasce do nada um abrigo de ônibus, onde um grupo de pessoas aguarda a condução.

Um homem tenta safar-se do choque eminente, sem resultado. Ouvem-se os baques - uma, duas, três vezes. O carro é jogado para a rodovia, novamente na contramão. Um dos suportes do abrigo de ônibus está estilhaçado e seis corpos estão no chão. O homem que quis fugir foi apanhado em cheio. Mais tarde, verificar-se-á que será a vítima fatal, enquanto os outros cinco sobreviverão. O pânico se instala entre os que não foram diretamente atingidos. Assustadas, quatro outras pessoas correm por entre os corpos. Aos gemidos misturam-se os gritos.

— Chama a ambulância! A polícia!

Dos casebres da favela que margeia a rodovia surgem outras pessoas, estremunhadas, assustadas.

O carro parece ter adquirido vida própria. Edu não consegue detê-lo. Lino sente a cabeça rodopiar e vomita sobre o painel.

— Puta que pariu! Cê tá me sujando tudo! Pára com isso, Lino.

São as últimas palavras de Edu. Diretamente à sua frente, duas luzes altas cegam-lhe por completo. Gira a direção para a esquerda. A violência do impacto do carro contra a base do viaduto joga-o de novo para o centro da rodovia. A frente entra debaixo do caminhão. Os pneus traseiros da jamanta estouram, o que não impede o carro de ser arrastado por muitos metros, atrelado ao caminhão, até que este se detém.

Os dois veículos, embolados, finalmente param. Fumaça, chiados, pequenos estalidos enchem o ar. O caminhão chocou-se contra a mureta que divide as duas pistas. Apesar de ser madrugada, o transito é intenso, principalmente de caminhões. Os outros veículos conseguem desviar-se da massa fumegante no centro da rodovia. O chofer do caminhão, abalado, o pulso dolorido pela pancada da direção no momento do choque, sai com dificuldade da cabine.

— Porra! Que esse filho da puta tava fazendo na contramão? — Ao se aproximar do carro ainda enganchado sob sua pesada carreta, se desespera. — Puta merda! O cara tá morto! — Sangue por toda a parte. Vidros quebrados e pedaços de metais pulverizam o chão. Tenta abrir a porta do carro, não consegue achar nem a maçaneta. Está tudo entortado ou quebrado. — Tem outro cara do outro lado! Tão mortos. Não há como escapar dessa pancada!

Os patrulheiros rodoviários e os pára-médicos que compareceram ao local ficam estarrecidos com a violência do desastre. Os policiais da Delegacia de Acidentes de Veículos, mais afeitos aos dramas a que assistem todos os dias, impressionam-se menos. Pragmáticos, partem logo para a ação a fim de apurar responsabilidades.

— Tirem amostras de sangue dos dois que estavam no carro. Provavelmente estavam embriagados, pra entrarem assim, na contramão de uma rodovia movimentada.

O delegado-chefe chegou no primeiro veículo da polícia. Agora, já estão quatro viaturas policiais e duas ambulâncias nas imediações do acidente. Os guardas rodoviários assumem comando da parte do tráfego: desviam veículos, sinalizam a rodovia e evitam a aproximação de curiosos. Os pára-médicos verificam que os dois ocupantes do carro estão desmaiados, muito feridos, mas vivos.

— Esses bandidos vão ter muito que explicar. — Comenta um dos policiais civis. Os atropelados com vida são encaminhados rapidamente aos hospitais da região, enquanto o morto é coberto com uma manta. Alguém já providenciou uma vela, acesa ao lado do corpo.

— Quero o depoimento de todos os que presenciaram o acidente. E, principalmente, do chofer do caminhão. — O delegado é ágil e preciso no comando.

Nos dias seguintes, o desastre tem seus desdobramentos. As vítimas são, na maioria, operários que se dirigiam ao trabalho nas primeiras horas da manhã. Residentes na favela do Vertedouro, vai ser difícil encontrá-los para corroboração dos primeiros depoimentos. O motorista do caminhão, Manoel Macedo, é a principal testemunha.

— Claro que o carro veio na contramão. Vi quando bateu na pilastra de cimento e voou para a pista, engavetando-se debaixo do meu caminhão. Não tive como desviar, pois vinha dirigindo próximo à mureta. Perdi a direção com o choque e o caminhão montou na mureta.

O resultado dos exames de sangue dos dois rapazes indicou alto teor de álcool. Foram identificados: o que dirigia é Eduardo Mattar, sem atividade definida, filho de Osama Mattar, influente político. O companheiro é Laudelino Vieira Guimarães, famoso pela presença constante em badaladas festas da alta sociedade. Os repórteres que pretenderam acompanhar os dois moços foram barrados nos saguões do hospital. A influência e o poder das respectivas famílias, abaladas com o acidente, se fizeram sentir desde as primeiras horas da manhã.

Entretanto, foi impossível de se esconder o fato de que Eduardo Mattar já tinha sido multado onze vezes por infração de regulamentos de trânsito, e que acumulava 51 pontos negativos em seu prontuário no Departamento de Trânsito. Também os resultados dos exames de sangue vieram à luz. Os repórteres noticiaram, ainda mais, que a Policia Civil investigava outro filão do processo instaurado: a suspeita de que a família Mattar estaria usando influências políticas para intimidar os policiais que registraram a ocorrência no dia do acidente.

— Houve, sim, telefonemas para autoridades da polícia. Queriam aliviar a situação do rapaz.— A informação, vazada de um departamento da polícia, provocou logo reação de Osama Mattar, que convocou a imprensa para uma entrevista.

— Meu filho foi educado com severidade, nunca lhe dei colher-de-chá. Estão dizendo que ele dirigia embriagado, o que é uma mentira. — A segurança com que afirma faz a perícia policial parecer armação.

— Ele dirigia mesmo na contramão? — Pergunta o repórter da “Voz Popular”.

— Não tem como acreditar que Edu dirigia na contramão no Anel Rodoviário. Seria uma tentativa de suicídio. Ele seguia na via normal quando um carro que estava à sua frente perdeu o controle e o fez bater. — O político dá a sua versão dos fatos, que distorce como se estivesse fazendo um discurso na Câmara Estadual.

— E sobre as infrações anteriores, 51 pontos na carteira? — Agora é Marinêz Lamarca, do “Diário da Cidade”.

— Está errado. Uma pessoa que tem 51 pontos na carteira não pode dirigir. — É evidente o desprezo do deputado pelas leis e regulamentos.

— O senhor pretende tomar alguma medida para aliviar a situação precária do seu filho? Ele pode pegar até oito anos de prisão. — De novo Marinêz, agora mais objetiva na sua indagação.

— Mas eu não sabia disso. Não posso me responsabilizar por erros de meu filho. — De novo o tom de escárnio na voz do político. — Tomei, sim, uma decisão. Até que essa história seja esclarecida... — Faz uma pausa e pisca matreiramente para a repórter — ... meu filho não pilota mais nem meu helicóptero.

Antonio Roque Gobbo.

Belo Horizonte, 19 de setembro de 2002.

Conto # 180 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/04/2014
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