Amizade

Dias atuais.

A batalha seguia o seu curso e tomava cada vez mais tons sombrios. Assumindo o pano de fundo da batalha, as disputas entre os soldados de Gumercinda e González passavam quase despercebidas. Imersos em um verdadeiro “transe”, aqueles outrora amigos, agora trocavam golpes de espadas com intensidade verdadeira e eminente de morte. A deusa da vitória haveria de brilhar para algum deles. Restava saber quem: se o representante da justiça ou a agente do mau. Como decidir um confronto tão intenso e profundo entre velhos amigos?

De um lado, estava Gumercinda, até aquela noite aliada na busca de um assassino desaparecido. Ótima investigadora com um faro ímpar para casos como aqueles, mas que agora não hesitava em levantar a espada diante de González, afinal os ideais do mestre estavam em jogo. Não poderia titubear diante da chance de matar o seu principal inimigo. Lembranças, amizade, justiça? Nada disso importava se interferisse diretamente na criação de um novo mundo por seu mestre.

Do outro, Érico González, experiente investigador da polícia. Aquela situação o chateava, mas não o surpreendia. Acostumado a tantos anos de labuta, o delegado já vira aquele “filme” acontecer. Seu antigo parceiro, Filippo Saratoga, havia sofrido com uma traição. Foi uma tragédia que deixou marcas em seu coração, mas fortaleceu o seu espírito.

Tudo aconteceu 15 anos atrás, antes do ataque do assassino da chuva. Érico começava o seu trabalho na delegacia de polícia, uma época distante em que não fazia a menor ideia de como usar uma arma. Quem o visse agora não acreditaria... Filippo Saratoga era o policial encarregado de dar-lhes as boas vindas.

- Ei, ô, quem é você e o que faz aqui nessa delegacia de polícia?

- O- o- olá! Eu sou Érico González, muito prazer!

- Ok, “Érico” e o que te traz até a delegacia?

- Eu passei na seleção da prefeitura e começo a trabalhar aqui hoje.

- Entendi... Diga-me rapaz, o que sabe fazer?

- Bem, conheço todos os regulamentos e artigos da polícia e tenho muito vontade em trabalhar com investigações.

- Bom, bom. Você sabe atirar?

- Atirar?

- Sim?

- Não, senhor.

- Já esteve em alguma investigação?

- Também não senhor. Analisei somente casos arquivados durante a graduação.

- Bom, nesse caso vou encaminhar você garoto para a parte administrativa.

- Mas... Mas... eu me inscrevi para trabalhar com investigação! Por que não posso participar?

- Garoto, a vida lá fora é uma guerra. Não preciso de mais uma preocupação, além das que já possuo enquanto executo o meu trabalho. Se, realmente desejar fazer parte do trabalho de campo, aprenda a atirar e nos ajude com a parte da análise dos dados. Quem sabe aí eu te dê uma chance...

- Você promete?

- E eu lá tenho cara de papai noel? Trabalhe garoto e faça por merecer o seu reconhecimento.

- Entendido...

Com a cabeça baixa, González seguia desolado para sua mesa. Tantos anos de estudo pareciam ter ido por água abaixo ao ser indicado para a parte administrativa. Como manter a motivação se todo dia o cenário que encontrava reservado pra si era uma pilha de papéis sobre todos os processos? Sentia um amargor pela falta da ação, mas, no fundo compreendia os sentimentos de Saratoga: era um anão numa terra de gigantes.

Passados três meses já estava adaptado às novas funções. Sabia da situação de todos os casos só pelo código surpreendendo muitos veteranos. Aliás, não só os veteranos. Heloísa, parceira de Filippo, começava a notar aquele jovem funcionário, mantendo-o sempre a par dos casos trabalhados.

Entre tantas conversas, intrigada com o interesse de Érico, Heloísa concordou em treiná-lo a ser policial. Inicialmente, mostrou a ele como sacar uma arma. Seus conhecimentos como samurai nada ajudariam se não soubesse utilizar um revólver. Érico tinha ciência disso. Tal qual um menino que ganhou sua primeira bola, González espera ansioso por cada aula. Depois de dez aulas, Érico já dominava as armas. Aliado aos seus conhecimentos como aprendiz de samurai, o garoto possuía um preparo melhor que muitos policiais. Não tardou para ser notado por Saratoga, pouco antes de completar 12 meses de trabalho.

- Garoto...

- Oficial Saratoga, em que posso ajuda-lo?

- Você vem conosco hoje.

- Sério? Qual o caso?

- Vamos investigar um possível caso de tráfico recebemos notícias de nosso soldado infiltrado no local.

- Entendido, senhor.

Antes de saírem, Saratoga abriu a sua mochila e tirou uma arma com um coldre e o repassou à González.

- Tome.

- É minha? Sério?

- Guarde na cintura e fique atento a todos os movimentos, afinal não poderá ser um policial se não tiver uma arma.

- Entendido!

Dirigindo-se para o local, González sentia uma sensação diferente, como se nascesse de novo. Não podia negar o êxtase que sentia em finalmente fazer parte da equipe. Todo aquele cenário que sonhou durante tanto tempo agora era uma realidade. Havia, enfim, se tornado um dos “caras”. Mal sabia ele que aquele dia iria mudar o resto da sua vida...

Chegando ao local, Heloísa foi primeiro para distrair os inimigos. Saratoga ficou atrás dando cobertura, enquanto sua parceira adentrava em um armazém abandonado. Acordaram que esperaria pelo sinal de sua parceira para entrar. Caso não houvesse uma resposta sua em, no máximo, 30 minutos invadiria o local.

Aguardaram. Aguardaram. Nenhum sinal de Heloísa. Completados 23 minutos, Filippo achou prudente instruir o novo policial:

- Ok, garoto se prepare. Quando eu der o sinal, você me dá cobertura.

- Entendido, devo chamar reforços?

- Certamente, faça isso antes de entrar no local. Alguns amigos estão aqui nas redondezas e não tardarão a chegar.

Ok, senhor.

Com 27 minutos completados Heloísa deu o sinal. Filippo levantou-se e dirigiu-se ao local. González deu cobertura. 10 minutos depois de Filippo entrar, González se escondeu próximo a porta, observando tudo o que acontecia.

- Então, Paco trouxe a minha encomenda?

- Trouxe, mas só a entrego depois que receber meu pagamento.

- Mas, eu já lhe paguei.

- Não, não pagou.

- Como assim não paguei? Entreguei tudo nas mãos dela.

- Você fala de Camila?

- Camila? Não, essa é Helo... (sua mão rapidamente se dirige ao coldre)

- Eu não faria isso se fosse você...

- Como pôde? Eu confiei em você!

- Ah querido... eu estava tão entediada... Paco me acolheu tão bem... Tudo o que ele pediu foi que entregasse você...

- Cretina! Há quanto tempo planejou isso?

- Desde a chegada do novato. Você nem percebeu...

Saratoga tira o révolver do coldre e dá dois tiros. Infelizmente, ao fazer isso é surpreendido por um dos capangas de Paco que estava escondido, tendo o seu braço e o seu estômago atingidos, caindo ao chão.

Assustado com tudo aquilo, González chama o reforço. Mas, já era tarde demais. Paco fugiu com sua parceira e González só teve tempo de ouvir suas últimas e proféticas palavras:

- Garoto...

- Pois não senhor?

- Nunca confie numa mulher...

- Por quê, senhor?

- Pra não acabar como eu...

Três anos depois Heloísa foi assassinada. Paco foi preso, mas as palavras de Saratoga ecoaram forte na cabeça de González, emergindo à tona diante de um dos confrontos mais difíceis de sua vida. Iria sucumbir à amizade ou cumprir o seu dever? A resposta não tardaria a chegar...

Andarilho das Sombras

Rousseau e o Andarilho
Enviado por Rousseau e o Andarilho em 02/06/2014
Código do texto: T4829024
Classificação de conteúdo: seguro