Punição por um Crime

I

Eu, Suzana, ainda era estudante de Psicologia quando me casei, grávida, dando logo à luz uma menina linda. Embora eu ou meus pais não nos considerássemos ricos, herdamos algumas terras que sempre pertenceram aos ascendentes de papai, o que nos permitia uma renda para vivermos razoavelmente com conforto. Tínhamos também, um sobrenome tradicional e respeitado na região.

Talvez por conta disso, meus amigos, ou melhor, as pessoas que se aproximavam de mim eram quase sempre herdeiros, ex-ricos, playboys, novos ricos buscando adentrar a sociedade tradicional e muitas vezes preconceituosa, etc. Diogo, um desses playboys, se tornaria o meu marido e talvez naquela época fosse o mais chamativo e audacioso.

Orgulhoso e altivo, na verdade todos sabíamos que a riqueza de sua família há muito se fora, restando-lhe um nome poderoso e o gosto pelo luxo e glamour.

Ele me apresentou às drogas comuns entre os universitários e embora eu resistisse, ele alegava que uma psicóloga deveria conhecer um pouco de tudo na vida.

Sem que eu me desse conta, sem namoro ou paixão, acabei engravidando dele e nos casamos.

Fui criada numa grande chácara que, embora próxima da cidade, nos oferecia privacidade com conforto e segurança.

Desde meu nascimento fui a princezinha do papai, protegida talvez até em excesso, o que de certa forma, criava aversão e até a desaprovação de minha mãe.

II

Papai, cujo nome é Sílvio, é veterinário, mas atuava apenas algumas vezes por mês e como instrutor de campo orientando universitários.

Na maior parte do tempo, passava as horas em seu pequeno laboratório na chácara, onde criava produtos para uso veterinário, alguns até bem recebidos no mercado. Sendo de natureza calma e gentil, vivia alheio à realidade, ficando por longos momentos observando a natureza e escrevendo poemas, seu hobby.

Mamãe, Bernadete, nos abandonou quando eu tinha catorze anos de idade. Tendo vindo de uma família muito simples, sonhava em se tornar rica e ter uma vida social intensa. Conhecera papai na Europa, onde ele estava fazendo um curso, e ela, sendo estilista, havia ganhado uma bolsa de estudos na área, de seis meses de duração.

Creio que ela viu em papai a chance da ascensão social com que sonhava e, conquistando-o, casaram-se.

Mas, morando numa chácara e diante da falta de ambição material de papai, ela logo foi se tornando irritadiça, mostrando uma personalidade perversa e vingativa.

Desprezava e ofendia abertamente a papai na frente de qualquer um, sem meias palavras. Papai nunca retrucou.

Lembro-me que uma vez ela caiu da montaria, e com raiva, amarrou a égua e a chicoteou até fazê-la sangrar. Quando papai acorreu e tirou-lhe o chicote das mãos, ela o esbofeteou com tanta força que quase o derrubou e por alguns instantes, esperou alguma reação dele, que triste, socorria a égua ferida.

Eu fugia de mamãe sempre que podia, como se temesse que, convivendo com ela, me tornasse igualmente fria e má.

Finalmente ela nos deixou, e mal passaram-se um ano e meio, já estava casada com um rico empresário do ramo de modas femininas.

Tenho de reconhecer que, apesar do medo que eu sentia dela, de certa forma admirava-lhe a força para lutar por seus objetivos friamente.

Não cheguei a trabalhar fora, porém, atuava como psicóloga voluntária em algumas instituições voltadas para idosos e adolescentes, em cidades vizinhas. Casando-me, continuei a morar na chácara com papai.

III

Meu marido Diogo foi se tornando tão desagradável, apenas vadiando sem trabalhar e sem dar atenção alguma à família, que logo começamos a dormir em quartos separados. Ele, sempre gastando além da conta um dinheiro que retirava das minhas rendas.

Um dia percebi que ele fazia favores à algumas mulheres que, satisfeitas, o presenteavam com os produtos de luxo que ele tanto apreciava e até mesmo dinheiro. Algumas vezes aparecia cheirando à álcool e à perfume barato o que me levou a desconfiar de que gostava também de se divertir com mulheres mais vulgares, sem posses.

Jamais me esquecerei de sua violência e das que ameaças que sofri quando lhe pedi o divórcio.

Tomando meu rosto entre suas mãos, deslizou-as até o meu pescoço e começou a aperta-lo até que entrei em pânico.

_ Pare! Pare, por favor! Implorei.

_ Põe uma coisa na tua cabeça; você jamais se livrará de mim, entendeu? Jamais! E dizendo isso, me soltou e saiu.

Minha filha Mariana morava fora, cursando Belas Artes. Tanto quanto eu podia, evitava que ela tivesse ciência da minha situação conjugal e da imoralidade do pai, que, aliás, pouco se importava com ela.

Mariana é linda, delicada, tendo herdado a aparência nórdica do meu pai. Era sempre assediada para se tornar modelo, mas ela, rindo, humilde, dizia brincando que o seu sonho era casar-se com um príncipe encantado, ter filhos e trabalhar com Arte, que adorava.

Um dia ela me ligou toda eufórica:

_ Mamãe, senta para não cair! Disse-me.

_ Não vai me dizer que está grávida...

_ Fui pedida em casamento e aceitei, disse eufórica.

_ O quê? Não entendi... retruquei.

_ Entendeu sim! E não se preocupe o Fábio é de família super conservadora e prefere que eu me case virgem, viu? Ela me "acalmava"...

Enfim, Fábio era advogado, filho de um juíz de Direito, cuja família tem tradição na área. Apaixonadíssimo, esperaria apenas Mariana se formar dentro de poucos meses e se casariam.

Sendo o primeiro e único amor que Mariana conheceu na vida, ela me confessou que morreria se viesse a perdê-lo. Conhecendo a fragilidade e sensibilidade de minha filha, bem o bastante, não duvidei.

IV

Diogo queria vender algumas obras de arte que tínhamos, herança de família, dizendo que dinheiro era muito mais importante do que artes em casa de chácara. Jamais permitimos, apesar de sua insistência.

Um dia percebi que ele apanhou uma pequena estatueta e ia saindo, quando tentei impedí-lo.

Ele, furioso, me acertou a cabeça com a estatueta e me socou com força o rosto, me derrubando.

Eu no chão e sangrando, continuava a ser chutada, gritando apavorada.

Num relance percebi meu pai entrar com um machado na mão, pronto para atacar e desmaiei quando o sangue de Diogo esguichou por todo o aposento.

Acordei no dia seguinte, lavada e de pijama, crendo que tudo tinha sido só um pesadelo, mas, ao tentar levantar, cheia de dores percebi o corpo com muitos curativos em vários lugares. Peguei um espelho e não reconheci o rosto deformado que me fitava através dele.

Comecei a chorar e nesse momento papai entrou.

_ Perdão pai, perdão. Tudo por minha culpa. Eu disse.

_ Não chora filha. Já está tudo bem. Tudo acabou. Você está machucada mas não apresenta fraturas, apesar das dores que deve estar sentindo. Ele me disse

_ Pai, não podemos chamar a polícia, isso seria o fim do casamento para Mariana. Pai, o quê vamos fazer? Eu perguntava aos prantos.

_ Filha, não se preocupe mais. Já te disse que tudo acabou. Não vou te dar detalhes, só instruções; escuta bem, você e Diogo se separaram e ele foi embora sem deixar endereço, provavelmente com alguma mulher. Desmarque teus compromissos por um mês, até que não haja mais evidências físicas. Não há testemunhas, nossos caseiros vivem na chácara vizinha e só vêm quando são chamados para algum trabalho aqui.

Vou começar imediatamente uma reforma naquele aposento, de forma que não sobre nada do que estava lá no dia da tragédia. Agora, descanse, se recupere e esqueça tudo. Dizendo isso, me beijou e saiu.

Como as pessoas nos surpreendem pensei. Jamais imaginaria que papai, tão sereno e pacífico fosse capaz de reagir tão prontamente numa emergência. Pensava no quão árduo devia estar sendo para ele, cuidar de tudo sozinho. Ele tinha seu laboratório e um incinerador que usava para cremar nossos animais que morriam... Melhor não pensar, melhor tentar esquecer toda essa loucura, eu pensava, tentando me convencer.

V

No passado, certa vez Diogo apareceu com um tipo muito vulgar, um homem espalhafatosamente vestido, cheio de jóias, com maus modos e bastante atrevido na forma com que me encarava.

Andaram por toda a casa, como se a avaliassem e antes de ir embora, me avaliou da cabeça aos pés, asquerosamente, passando a língua pelos lábios. Senti um calafrio, tanto de medo, quanto de nojo.

Diogo apenas me disse que esse era um novo parceiro de negócios, Moreira, que negociava objetos de arte e que o convidara a conhecer nossa casa. Para evitar discussões, deixei por isso mesmo.

Passados quinze dias da tragédia, Moreira veio até minha casa.

Queria saber de Diogo e não acreditou quando eu disse que nos separamos e ele tinha ido embora.

Moreira alegou que isso seria impossível pois naquela dia (da morte), Diogo veio até a casa para pegar uma obra que haviam vendido a um colecionador e não voltara nem dera notícias.

Moreira me encarava e naquela hora, tive a nítida impressão de estar correndo perigo diante de um Dragão de Komodo, com sua couraça asquerosa, a bocarra cheia de dentes afiados e as garras prontas a me estraçalhar.

Com seu linguajar vulgar, falou-me abertamente:

_ Pelo visto, vocês deram cabo do playboyzinho metido à besta, né?...

Não que eu me importe, só que, você sabe, informação vale ouro...

_ Por favor, pare de imaginar coisas. Se conhece o Diogo, sabe que ele iria atrás da primeira mulher rica que lhe desse bola. Disse-lhe.

_ Como parceiro nos negócios, o jeito é eu dar parte desse sumiço na delegacia... Falava me encarando friamente.

_ Moreira, por favor, não vamos fazer tempestade em copo d'água. Se conhece o Diogo, sabe que assim que o dinheiro acabar ele dará notícias. Vamos esperar mais um pouco... Além disso, minha filha está para se casar e qualquer escândalo pode acabar abruptamente com seu noivado, por isso te peço que espere mais um pouco, por favor. Insisti.

_ Entendi. Vou fazer melhor ainda, pois odeio ver uma mulher tão linda desamparada num momento difícil como este. Vou passar a te visitar semanalmente, preocupado com a sua segurança, até Diogo dar notícias. Náo recuse, pois será um prazer... Dizendo isso, foi-se.

E o Dragão cumpriu semanalmente sua promessa.

Por "sorte" papai esteve por longo tempo hospitalizado devido a necessidade de uma cirurgia delicada, e não tomou conhecimento desse padecimento.

Mariana casou-se, o que me deixou mais tranquila, afinal, agora, mesmo que surgisse algum escândalo envolvendo nossa família, Fábio usaria a máquina familiar para abafar tudo da melhor maneira.

Um dia, Moreira abruptamente disse que sabia o que tínhamos feito ao Diogo, e completou:

_ Não que eu desaprove, pois está na cara que você merece um marido muito melhor... Mas se houver uma investigação, com certeza encontrarão alguma prova e acho que seu velho pai não vai aguentar muito a vida na prisão...

_ Quero casar com você. Volto semana que vem esperando uma resposta positiva e com um lindo anel para fechar nosso acordo. Depois saimos para jantar e comemorar. Disse assim, como que ordenando e saiu.

VI

Moreira é com certeza, um homem acostumado a lidar com o submundo e é um sobrevivente. Certamente tomou precauções para nos incriminar caso algo lhe aconteça.

Na noite em questão, quando deveria recebê-lo para uma resposta, pensei seriamente em acabar com minha própria vida.

Como se esta fosse a minha última noite, preparei a banheira com deliciosos sais de banho, velas, abri um excelente vinho e levei duas taças para a sala de banho.

Numa delas, destilei arsênico o bastante para matar uma manada de elefantes, e, enquanto bebericava meu vinho, brincava com a taça de veneno, numa espécie de roleta russa.

Comemorando o fim ou um recomeço, o que era difícil definir até aquele momento, uma letargia tentava me carregar para o sono.

_ Deus, faça com que eu durma e morra afogada.

Me dê o prazer de "ver" a cara de espanto e decepção do Dragão, por seu erro de cálculo... Rezava.

Não dormi, só brinquei com o veneno até o último minuto possível.

Enfim, levantei-me e me enxaguei, e, despejando o veneno na banheira, tomei coragem:

_ Se esta é a minha punição, não fugirei, mas vou encará-la de frente! Decidi.

Vou encarar o Dragão asqueroso, agiota e, provavelmete, receptador de obras de arte roubadas; eu que sentia repulsa do toque de Diogo que vivia se esmerando em clínicas de estética, agora serviria ao mau cheiroso dragão... Piada engraçada, desgraçada e infeliz... Pensava, sarcástica.

Escolhi um lindo e elegante vestido preto, nem discreto, nem sensual, mas com classe o bastante para intimidar incautos... Usei um conjunto de rubis que fora de vovó; vermelho sangue, desafiante mas elegante... Usei algumas gotas de um Carolina Herrera que, moderno, não sugeria nem doçura nem sensualidade, mas, capacidade.

Assim que Moreira me viu estendento a mão para receber seu anel, ficou literalmente embasbacado. Sua gagueira momentânea é uma pequena vitória que guardarei para sempre comigo.

Até hoje fui apenas uma moça pacífica, tola, frágil, vítima, sensível, protegida por um pai igualmente sensível e pacífico.

Mas descobri a força e o poder da hereditariedade, tanto pelo ímpeto preciso de papai, quanto pela frieza de mamãe.

A partir de hoje serei uma mulher fria e calculista, forte e se preciso, furiosa, tanto quanto, ou mais até, do que a minha mãe; tenho certeza de que agora, ela haverá de se orgulhar da filha!

E no fim, Diogo está cumprindo sua ameaça; como prometeu eu jamais me livrarei dele...

Allba Ayko
Enviado por Allba Ayko em 09/05/2015
Reeditado em 10/05/2015
Código do texto: T5235819
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