-A benção, pai, mãe.
-Deus que te abençoe, filho.
-A benção, paizinho, mãezinha.
-Deus que te abençoe, filhinha.
-Bom dia, amor.
-Bom dia, paixão de minha vida.
  Era assim que começavam  os dias na casa de Henrique e Clélia. Os filhos desciam para a copa, beijavam o pai e a mãe, pediam a benção, Clélia cumprimentava o marido como se não tivesse acabado de vê-lo saindo da cama, sentavam-se todos para o café da manhã e conversavam muito antes das crianças irem para a escola e Clélia para seu consultório. Henrique trabalhava em casa, ocupado boa parte do dia com suas muitas encomendas de traduções.
-Pai, a Mirela disse que os pais dela nunca conversam com ela. Você acredita?
- Acredito, filhinha. Nem todos os pais sabem demonstrar amor em casa. Às vezes até amam muito os filhos, mas acham que é sinal de fraqueza demonstrar sentimentos.
- Deve ser duro ter pais assim…É tão bom ter um pai que está sempre disposto a dar atenção à gente.
- Você conhece algum pai assim, meu amor?
- Você, paizinho. O melhor pai do mundo. Helena levantou-se de sua cadeira, sentou-se nas pernas do pai e ali acabou de tomar seu lanche enquanto ganhava beijos no rosto e carinhos na nuca. Vinte ou trinta minutos depois a casa estava vazia e Henrique saía para seu passeio diário, caminhando lentamente pela rua afora. Saía sempre a passeio sem hora para voltar. Clélia sabia desses passeios e concordava que ele era o tipo do profissional que trabalhava durante todo o tempo em que estava acordado, já que seu instrumento de trabalho sempre fora o cérebro. Dois ou três quilômetros de caminhada por diversas ruas e avenidas e finalmente Henrique embrenhou-se em um matagal da periferia, seguindo uma trilha bastante conhecida sua. Em meio ao matagal uma cabana miserável, e dentro da cabana uma moto ultra moderna e chamativa. Henrique passou a mão cariciosamente pelo belo veículo e sorriu demoradamente. Não se cansava de ver a bela máquina sempre à sua espera e protegida por um sistema de proteção incrivelmente seguro. Antes de retirar a moto da cabana, Henrique tomou outras providências. A primeira delas foi trocar a dentadura superior, que simulava dentes brancos e perfeitos, por outra que tinha uma separação bem visível entre os dois dentes da frente e que possuía uma cor um pouco amarelada, denunciante um fumante inveterado. Depois colocou a peruca de cabelos cacheados, espetacularmente bem feita, e que em tudo tinha um aspecto natural, vestiu o casaco de couro leve, preto, as botas de cano alto, e finalmente colocou os óculos escuros de um tom azul claro. Olhou-se no espelho e ficou satisfeito com o que viu: - Estou lindão pacas… Um minuto depois o suave ronco da moto em baixa velocidade atravessava o matagal e chegava à estrada interestadual. - São Paulo, lá vamos nós. Acelerou a moto repentinamente e ela ganhou uma velocidade absurda. São Paulo, Capital. Movimento, barulho, balbúrdia, buzinas, gente em demasia, fumaça de carros, ônibus e caminhões, uma loucura à qual Henrique jamais se acostumaria. Parou a moto perto de um ponto de ônibus lotado, desceu dela bem devagar enquanto fitava uma bela moça morena e alta, tirou lentamente as luvas de couro e sorriu para a garota. Ela olhou para ele, surpresa, mas acabou sorrindo timidamente. Henrique contornou a grande moto, aproximou-se da moça e apresentou-se: - Henrique Almeida, fotógrafo e descobridor de talentos. Posso saber seu nome, moça? Desculpe-me a ousadia, mas só fico valente assim quando enxergo uma beleza que vale a pena ver de perto. - Meu nome é Aline, mas esse negócio de foto… - Não se precipite, minha cara. Não se precipite em dizer não. Você nem imagina o quanto posso modificar sua vida. Na verdade, eu tenho é uma agência de modelos e atrizes, e meu trabalho, agradável por sinal, é abordar gente bonita na rua e convidar a conhecer nossa agência. Fique com o meu cartão e, se vier a interessar-se, basta ligar para mim, sem compromisso algum. - Obrigada, mas, aproveitando que o senhor está aqui, que tipo de trabalho sua agência oferece? - Principalmente figurantes para anúncios de uma grande rede de lojas. Muitas de nossas atrizes começaram figurando em anúncios, quase que sem abrir a boca ou não abrindo de jeito algum. - E a agência paga bem? - Geralmente alguns salários mínimos por anúncio. Dá pra se ganhar muito bem. E, se for cem por cento aprovada, aí é que fica bom de verdade. Dá até pra trabalhar só uns três meses por ano e ainda guardar dinheiro. - Que coisa boa…Quando é que posso ligar pro senhor? - Quando quiser, minha cara. Quando quiser. Mas, se quiser conhecer a agência, é só esperar um pouco por mim. Tenho que comprar uma coisinha naquela farmácia e depois correr para a agência. Tem medo de andar de moto? - Nenhum. Até, pra falar a verdade, adoro. - Eu tenho um capacete de reserva no bagageiro. Espere um pouco e iremos juntos até a agência. Logo os dois pegavam a estrada na Harley especial de Henrique. Parando no acostamento, Henrique desceu, tirou o capacete e explicou à moça que cortaria caminho pelo mato a fim de diminuir o percurso em alguns quilômetros. - Menina, fiz questão de parar pra te explicar só pra não te ver assustada. Conheço a trilha que sai do outro lado do matagal e quase em frente à agência. Está gostando da viagem? - Estou sim. E muito. Sua moto é maravilhosa. Nas proximidades da miserável cabana Henrique parou a moto e deu a mão à garota, ajudando-a, aparentemente, a descer do veículo, A moça desceu com expressão preocupada e segundos depois, com o braço violentamente torcido para trás, apavorada. - Não grite. Se gritar, morre. Vamos andando. Enquanto andavam, com a moça gemendo de dor, o pacato, pacífico e insuspeito tradutor ia arrancando-lhe as roupas. A moça chegou nua à cabana. - Agora, vagabunda, vamos nos divertir muito. Deite-se no chão e abra as pernas. Vendo que a moça relutava em obedecer, Henrique deu-lhe um violento pontapé na barriga. Tão violento e inesperado que provocou na pobre coitado um forte jato de vômito. - Desgraçada dos infernos! Está pedindo de joelhos pra sofrer muito. Pegando um pedaço de mangueira, Henrique dobrou-o em dois e aplicou uma demorada surra na moça, que gritava desesperadamente. E quanto mais gritava, mais apanhava e mais prazer dava ao agressor. Quando ele suspendeu a surra a moça achou que deixaria de apanhar. Ledo engano. Henrique havia parado apenas para pegar uma lata cheia de água e jogar no corpo da jovem. - Agora será mais divertido, minha querida. Com o corpo molhado a coisa dói mais. Doeu tanto que a moça desmaiou por um longo tempo. Ao voltar a si do desmaio viu que estava fortemente amarrada a uma cadeira e tentou gritar por socorro. Só tentou. Alguma coisa enchia sua boca e quase que a sufocava de vez. - Olá, querida. Acordou bem? Aposto que não está sentindo mais nada nesse lindo corpo jovem. Vou até jogar um pouquinho de vinagre pra te refrescar as feridas. Durante mais de uma hora Henrique torturou a moça de todas as formas possíveis e imagináveis. Depois disso, cansado fisicamente, sufocou-a com uma saco plástico e esperou pacientemente que ela morresse, debatendo-se loucamente na cadeira a que fora amarrada. Sem o mínimo esforço, usando apenas o maquinário que construíra anos antes, Henrique levantou a pesada tampa do profundo poço, escavado por alguém talvez séculos antes, e jogou ali o corpo. - Pronto. Amanhã eu cumpro a próxima etapa. A próxima etapa seria cobrir o corpo de forma que o cheiro não denunciasse a existência do cadáver. Do trigésimo cadáver a ocupar aquele poço nos últimos três anos. Os cadáveres de vinte moças, seis crianças e quatro rapazes. No dia seguinte Henrique voltou para acabar o serviço. Aproximou-se do poço com um carrinho de mão cheio de cimento fresco e aprontava-se para virá-lo, esvaziando seu conteúdo no poço, quando foi empurrado por trás, voou poço abaixo e caiu em cima do corpo de sua última vítima. Atordoado, assustado ao extremo, olhou para cima e viu que alguém olhava para ele lá de cima e lhe dizia: - Olá, querido. Tudo bem com você? Olha, amor, desculpe o mau jeito, mas a verdade é que não posso deixar as crianças saberem quem é o pai delas. Nunca, jamais, em tempo algum eles saberão o que eu descobri ontem vigiando você à distância. Pena que eu não podia ajudar a moça sem correr risco de ser morta. Tenho duas crianças pra criar. Adeus, amor. Clélia foi até seu carro, pegou o primeiro galão de álcool combustível e derramou no poço. Alguns galões depois, acendeu um fósforo, jogou-o lá dentro e saiu correndo até encontrar-se a uma boa distância. Muito tempo depois, quando já não havia qualquer indício do fogo colocado no poço, Clélia desmontou a frágil cabana, jogou toda madeira dentro do poço, pegou uma enxada no carro, afofou bem a terra em todo o trecho compreendido entre a cabana e o poço, que ficava bem próximo, e ali plantou uma boa quantidade de sementes diversas, todas de plantas verdes, tão verdes quanto a natureza em volta. Três dias depois deu queixa na delegacia sobre o desaparecimento do marido. Em nosso país uma pessoa só é considerada desaparecida depois de vinte e quatro horas. Tempo suficiente para ser passada até no liquidificador.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 21/06/2007
Reeditado em 22/06/2007
Código do texto: T536215
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