~*SENHOR DAS DESCONFIANÇAS*~ cap. XXXIII

Se havia algo que o detetive precisava melhorar era o hábito de guardar para si tudo de interessante que ele encontrava pelo chão e que não lhe pertencia, bem assim fez também com aquela folha de papel com notas musicais que Thiago deixou cair perto da escada. Voltou a se sentar no sofá e foi o tempo de Thiago sair do porão e caminhar até o salão; ele tinha o rosto caído ao chão e esfregava a nuca, enquanto refazia o caminho que traçou até o porão.

- Algum problema, jovem Thiago? - perguntou Ruan, mirando no rapaz, certo de que ele procurava por aquele papel.

- Não - foi só o que respondeu Thiago, embora seu comportamento inquieto demonstrasse exatamente o inverso.

Thiago subiu a escada e desapareceu no corredor de cima, nisso, Ruan aproveitou e entrou no corredor lateral; caminhou até o fundo e chegou à porta do porão. Ao girar a maçaneta teve a sorte da porta estar destrancada, então abriu-a lentamente e uma escada que descia revelou-se na frente de seus pés. Ruan foi descendo os degraus e alcançando a claridade da lâmpada acesa na parte de baixo, onde haviam muitos entulhos, materiais, objetos e todas essas coisas velhas e desprezadas. Mas Ruan procurava por algo distinto de tudo aquilo! Porém, nada além daquilo encontrava. Viu encima de uma mesinha uma pilha de discos de vinil, retirou o primeiro de cima da pilha para ver o segundo, esse outro ele tomou nas mãos, soprou para tirar a poeira da capa, era uma capa cor marrom com letras douradas. O título principal era: "Boccherini, cello concerto".

- Parece bom - disse Ruan, a observar a capa do disco.

Repentinamente ele ouviu passos descendo os degraus e olhando para o alto da escada viu Thiago; largou o disco na mesinha e girou o corpo a acompanhar o rapaz com o olhar.

- Detetive? - indagou Thiago, se aproximando de Ruan, e sem mostras de perturbação - O que veio fazer aqui?

- Eu? - perguntou Ruan, apesar de detestar responder uma pergunta com outra - Nada, só tive a curiosidade de saber como é o porão.

- Como pode ver - Thiago estendeu o braço para apresentar o ambiente -, uma bagunça.

Ruan deu uma curta risada, à medida que o rapaz rodeava uma mesa maior com alguns livros encima e remexia neles.

- Bem, vou deixar você estudar - falou Ruan, passeando uma última vez os olhos pelo cômodo.

- Obrigado - Thiago disse com o rosto fixo na página de um livro e sem olhar para o detetive.

Então Ruan deu de ombros e antes de subir a escada, pegou o disco de vinil que havia separado na mesinha, sem que Thiago tivesse visto, e saiu com ele do porão, deixando Thiago só. E mais ou menos duas horas depois, num momento em que o detetive passava da cozinha para o corredor de seu escritório, uma coisa o chamou muito a atenção: Thiago estava saindo do porão, mas dessa vez, com a mala.

~*~

Na noite daquela mesma Quarta-feira, o Sr. Carlos Arantes, sua esposa e os filhos, estavam reunidos em conversas descontraídas no grande salão da mansão. Não era muito comum vê-los assim reunidos, em razão de que cada um sempre procurava algo diferente para se ocupar, mas por pura coincidência naquela noite todos eles não encontraram outra ocupação senão ouvir piadas.

- Então o rapaz perguntou: qual é o papel da empresa? - contava o Sr. Carlos Arantes - E o empresário respondeu: bom, aqui nós usamos papel sulfite!

Ele deu uma alta gargalhada, já os demais se empenharam em ao menos alongar os lábios para mostrarem uma falsa graça. Ora essas risadas foram substituídas por um som distinto... Um soar de violinos numa mesma sintonia, que subitamente fez o semblante do Sr. Arantes sofrer uma mutação radical.

- De onde está vindo essa música? - ele perguntou inquieto, com os ouvidos atentos tal como um cão ao perceber algum movimento suspeito.

- Deve ser nos vizinhos - disse Thalia, tentando amenizar o assombro de seu pai.

- Não - ele impulsionou as mãos contra os braços da poltrona em que estava sentado, para se colocar de pé; deu dois passos para o lado com insegurança e parou - Está vindo aqui de dentro.

Ele foi seguindo o som da música, ao passo que ela se tornava mais alta, até chegar à uma porta do corredor esquerdo, a porta do escritório do detetive Ruan. A porta estava apenas encostada, então Carlos a empurrou devagar; viu primeiro o detetive de pé de frente para a estante a observar um livro, mas, ao virar o rosto para o lado, viu um disco girar na vitrola e aquilo surtiu um efeito malígno no interior de Carlos que, num rápido movimento alcançou a vitrola, levantou a agulha e parou a música. Então Ruan fechou o livro em suas mãos e virou-se, para saber por que a música havia parado.

- Onde você pegou isso? - perguntou Carlos, com o olhar cheio de fúria e o disco na mão direita elevada à altura do ombro.

- Ah, eu encontrei junto a um monte de discos entulhados no porão - explicava Ruan, pondo calmamente o livro encima da escrivaninha, enquanto mantinha a vista fixa no homem - e pensei que não teria problema em pegá-lo, já que estava desprezado no porão e...

- Exatamente, se estava desprezado lá é porque não deveria ser pego por ninguém - o tom da voz foi amargo e ignorante - Além do mais, eu te contratei para investigar o sumiço das coisas de minha mãe e não para ficar ouvindo música!

- Anh... - Ruan ficou insubmisso com aquela exclamação, o que aquele homem queria dizer? Porventura Ruan estava condenado a não usufruir de quaisquer outros entretenimentos que não estivessem relacionados à investigação? Pensou em dizer o quanto achava ridículo aquele pensamente do Sr. Carlos Arantes e tentou dizê-lo! Mas Carlos sempre deixava-o sem espaço e tomava a frente.

- Ouça, não quero ouvir mais nada tocando nessa vitrola velha. Fui claro?

- Claríssimo.

- Nem sei o que esse negócio ainda está fazendo aqui - Carlos murmurou, olhando com desgosto para a vitrola, à medida que cruzava a porta para sair.

Era de se esperar que aquela reação intempestiva do Sr. Carlos Arantes levasse Ruan a desconfiar, tanto que passou todo o tempo pensando acerca disso e dessa vez, ao invés de tomar chá de camomila, como era de seu costume e fazia-o relaxar, optou por café, para manter-se acordado por mais tempo, porquanto tinha muitas peças de um "quebra-cabeça" para montar. Permaneceu ali em seu escritório, sentado à escrivaninha, com o olhar paralisado na vitrola; uma vez e outra esticava o braço e puxava a xícara de café, para beber um pouco; pegava a caneta e fazia alguma anotação no caderno e depois relaxava na cadeira. E quando achou que já tinha as respostas que queria, arrastou a cadeira para trás e levantou-se, saindo dali e indo dormir enquanto ainda não amanhecia.

~*Continua...

Lyta Santos
Enviado por Lyta Santos em 30/09/2016
Reeditado em 01/10/2016
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