O Amante

Minhas mãos já estavam doloridas de tanto esmurrar aquele viado. Na minha carreira de detetive, já fui contratado para descobrir e fazer muitas coisas, mas nunca, nunca para matar alguém. Tiago, este era o nome do saco-de-pancadas, me implorava para deixá-lo ir.

— Por quê? Por quê?

A razão era simples, a esposa dele havia me procurado, dias atrás, com sérias suspeitas: o marido não parava mais em casa à noite, dizia estar fazendo hora-extra nos finais-de-semana, havia perdido vontade de transar com ela, fundamentada nestes indícios, ela tinha certeza de que Tiago a traía.

Eu a havia alertado que também podia não significar nada, num casamento de dez anos, o relacionamento poderia ter apenas se amornado, mas que investigaria e sanaria as dúvidas dela.

Por uma semana, segui os passos de Tiago, que levava uma vida irrepreensível. Realmente, o que ele dizia ser hora-extra o era de fato, até altas horas ele permanecia no escritório, tentando pôr em dia o serviço atrasado. Eu já estava quase certo de que Tiago era um homem fiel à esposa, até que, no sábado, ele saiu de casa por volta das sete e dirigiu até um bairro de péssima reputação na cidade, reduto de prostitutas e travestis.

Ele estacionou numa alameda escura e desapareceu num bar. Segui-o. Porém, ao invés de encontrá-lo cercado de vagabundas, o bar no qual Tiago havia entrado era ponto de encontro de viados. Ele estava sentado no balcão do bar, aos beijos com um bigodudo. Tive asco, ainda mais quando uma bicha se aproximou, passou a mão na minha bunda e me perguntou:

— Vem sempre aqui, gostosão?

Num reflexo, tirei a mão do baitola de mim, quase esmagando seus dedos:

— Só se for para dar uma surra em afetados como você!

Choramingando, a bicha se desvencilhou de mim e correu para o banheiro do bar. Como a minha reação havia chamado atenção, pensei que seria melhor eu sair dali, antes que Tiago percebesse minha presença.

Aguardei dentro do carro, e, quando Tiago saiu abraçado com o bigodudo, ambos parcialmente bêbados, consegui tirar belos retratos do casalzinho.

Flávia estava inconformada. Uma mulher sempre está preparada para flagrar o marido com uma amante, é da natureza humana trair, instintivo, um resquício do animal irracional que somos. Porém, flagrar o marido com um amante, esta é outra história!

Podem até me acusar de retrógrado, de recalcado, mas a sociedade é que possui e defende tais atributos; é o que chamamos de normalidade. Flávia, a mulher traída, se enfureceu:

— Eu até poderia perdoá-lo, detetive Vico. Nós mulheres somos todo perdão, mas há coisas que não se tem como desculpar. Com outro homem? Você tem certeza disto?

Mas as fotos sobre a mesa respondiam por mim. Flávia mirou-as mais detalhadamente:

— Tem certeza de que não é um amigo dele?

— Isto não posso afirmar, mas, se forem amigos, é uma amizade bastante peculiar, pois eu nunca abracei ou beijei meus amigos antes, nem combino de me encontrar com eles em botecos de viados.

Flávia assinou um cheque e partiu; duas horas depois, o telefone tocou, era ela.

— Vico, você pode vir à minha casa hoje?

Era umas dez da noite quando cheguei lá e fui conduzido até a sala-de-estar.

— Tiago não está em casa, não precisa se preocupar — Flávia me estendeu um drinque.

— E como posso ajudá-la?

— Sabe, detetive, eu tenho me sentido muito sozinha nestas últimas semanas — ela segurou minha mão entre as dela — não é nada fácil para um mulher, cheia de vida, cheia de fogo, viver com um homem que envergonha a raça.

— Eu compreendo — respondi, deslizando a outra mão pela coxa dela. Notando que eu havia fisgado a isca, Flávia se sentou no meu colo, beijou-me, abriu meu zíper e transamos na sala mesmo, pouco nos importando se Tiago chegaria ou não.

Deitados no tapete, nus, Flávia me pediu:

— Tiago é uma desgraça. Mate-o, por favor, Vico. Mate-o.

Não pense que eu sou daquele tipo do otário que se impressiona com facilidade; não é qualquer trepada, nem qualquer boceta que me priva do raciocínio. Eu concordei em matar Tiago, não tanto pelo pedido de Flávia, mas porque a existência dele, as práticas bichescas dele, o comportamento efeminado me enojavam. Talvez, matando-o, eu estivesse contribuindo para tornar o mundo melhor.

Então, numa sexta-feira, eu esperei até que ele saísse do bar, fosse a um motelzinho barato das redondezas, e, no fim da noite, eu o apanhei no beco e o esmurrei até dizer chega. Tiago não tinha idéia porque estava apanhando, não imaginava que Flávia houvesse descoberto sua vida dupla, nem que eu estava ali para dar um fim a sua vida miserável.

Tirei o revólver da cintura e, quando estava para disparar na cabeça dele, refleti: e se eu estivesse errado? E se ele fosse feliz deste jeito, fazendo o que fazia, amando quem amava? Que direito tinha eu de tirar-lhe a vida, eu que sim tenho uma vida desgraçada, na merda, repleta de preconceitos e pindaíbas? E se um dia, quando os ares da mudança chegarem (a mudança sempre vêm, não importa o quanto lutemos contra ela), eu estiver errado e ele estiver certo?

Estes pensamentos bem poderiam ser conseqüência duma piedade que emergiu em mim, ao ver aquele homem, medo no olhar, que só agia como agia porque desejava ser feliz; ou poderia ser também uma profunda reflexão filosófica. Independente do que fosse, fez-me tomar a decisão de deixá-lo viver.

— Não quero vê-lo mais nesta cidade. Vai embora agora, com a roupa do corpo. Se você voltar, eu meto uma bala em sua cabeça.

É claro que eu não faria isto, se eu o havia deixado viver, não mudaria de idéia depois, mas sei como as mulheres são vingativas e Flávia jamais o perdoaria.

Dentro do meu carro, permaneci um tempo a observar as bichas entrando e saindo do bar, riam, estavam felizes, em contraposição a mim, que era homem de verdade, normal, e estava triste.

Qual de nós tinha razão?

(Extraído do livro "O Covil dos Inocentes" - www.covildosinocentes.blogspot.com)