Cheiro de Morte

A jaqueta ainda estava pendurada na cadeira. Era de couro, preta, tinha teias de aranha, pois há tempo não se mexia nela. No ar, sentia-se um cheiro nostálgico e a voz da mulher parecia ecoar eternamente: “Não, não pode ser! Nunca irei aceitar, só pode ser um pesadelo!”. Eu tinha uma certa empatia por tudo aquilo.

Creio que não havia passado dos 18 anos, era ainda novo, belo, de acordo com uma foto. Inexplicável! Quem diria que um dia... Não conheci nenhum dos dois, mas eles me passavam confiança. Aquele retrato era curioso, pareciam ter a mesma idade, mas num outro, não sei, talvez tivessem se passado muitos anos, pois o tempo foi carrasco com a mulher. Ela talvez não soubesse tratá-lo, não sei. Às vezes ele nos castiga por puro divertimento.

Cartas não-datadas, não destinadas, puramente confessionais. “Tome nota disso”, disse meu companheiro. “Mas são anacrônicas”, pensei, lendo-as. Uma dizia: “Após determinada idade, notamos que a vida nos reservou tristezas e alegrias, que devemos pesá-las para saber o que somos. Felizes ou infelizes? Ocorre à revelia, nunca mudaremos nada que nos foi legado, e a infelicidade é inerente ao humano, às mães...”

“Desde que ele se foi nada mudou de lugar. O seu quarto nunca foi limpo e nem suas roupas lavadas. Tenho esperança de que ele voltará para forrar a cama, pois estava com tanta pressa quando saiu... Te espero filho. Faz 5 anos hoje e você ainda não chegou para comemorar”.

O que havia ocorrido? Era insólito. Os vizinhos especulavam, mas ela era uma pessoa retraída, o mundo era aquele filho e ela havia perdido o chão. Ninguém conhecia ao certo. Sabia-se que o filho foi-se há, pelo menos, 5 anos, mas não há um tempo definido entre as cartas e o dia de hoje. Hoje não, pelo menos 3 dias. Afinal, o que é o hoje? Se ela realmente houvesse morrido hoje, há algum tempo que ela já vivia de passado. Talvez, desde a perda, ela nunca houvesse se conscientizado de quando era seu tempo.

- Nunca saiu de casa desde que o filho desapareceu?

- Não. Rezava todos os dias por ele, queria encontrá-lo. Tanto envelheceu a coitada. Acreditava que ele ainda era corpo.

- Nem acreditei que fosse ela naquele quarto. Seu rosto, de tantas rugas, era uma sanfona, que tocava um fado, ou calava a alma.

- Perito, alguma evidência? – perguntou-me o delegado.

- Não. Somente o médico para constatar, pois não há indícios – respondi.

- Evacuar o local. O cheiro está muito forte e nada pode ser trocado de lugar aqui – ordenou o superior.

Bati a porta ouvindo o eco das lágrimas que por tempos regaram o infértil “solo” daquela casa. Faleceu ontem, hoje, quando? Desligou-se do corpo há mais ou menos 3 dias, mas rompeu com a vida desde o dia em que a cama não foi forrada.

Felipe Vigneron
Enviado por Felipe Vigneron em 20/08/2007
Reeditado em 16/05/2012
Código do texto: T614962
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