Cemitério de navios

Na manhã cinzenta, um exército de trabalhadores maltrapilhos começou a chegar para mais um duro dia de trabalho num dos muitos estaleiros de demolição naval de Chittagong, Bangladesh. Sem capacetes nem qualquer outro equipamento de proteção individual, alguns deles sequer pareciam ter a idade mínima de 14 anos exigida para o perigoso serviço de desmantelamento de navios, uma das principais atividades daquela cidade industrial às margens da Baía de Bengala. Mortes ali não eram exatamente uma raridade, mas quando Chandrakiran Suhrawardy e seu primo Gaurishankar aproximaram-se da carcaça de navio no qual iriam trabalhar aquele dia e viram um corpo caído na lama, imediatamente perceberam que não se tratava de um acidente de trabalho.

- Parem! Parem! - Gritou Chandrakiran erguendo os braços, para alertar sua equipe que vinha logo em seguida. - Não avancem, tem um cara morto aqui!

Gaurishankar curvou-se sobre a vítima, ocultando seu rosto dos demais.

- Algum saqueador idiota caiu do casco durante a noite? - Indagou Aalok, um sujeito atarracado.

- É um estrangeiro - declarou Gaurishankar, erguendo-se. E todos então viram que era um homem branco, de meia-idade, cabelos grisalhos, vestido de modo esportivo. Seus olhos azuis estavam bem abertos - e havia levado um tiro à queima-roupa na testa.

- Ninguém chega perto - reiterou Chandrakiran, celular na mão. - Vou chamar a segurança.

* * *

Meia hora depois, dois oficiais da Polícia Metropolitana desembarcaram de um castigado Mitsubishi Lancer azul e branco, em frente à administração do estaleiro. O sargento Amal Kalyanpur e o policial Hrishab Guhathakurta, envergando os típicos uniformes compostos por camisa de mangas curtas verde, boina e calças pretas, foram recebidos à porta do edifício pelo encarregado, Chakradhar Kriplani.

- Foi o senhor quem chamou a polícia? - Indagou o sargento.

- Na verdade, foi o chefe da segurança, Sisir - declarou o encarregado. - Mas não foi ele quem encontrou o corpo... a descoberta foi feita por um grupo de trabalhadores, liderados por Chandrakiran Suhrawardy.

E apontou para um homem franzino, que aguardava sentado na calçada com ar infeliz. O sargento fez sinal para que se erguesse e fosse ter com eles.

- Foi você quem encontrou o corpo? - Inquiriu o sargento Kalyanpur.

- Eu e meu primo, Gaurishankar. E não mexemos em nada, já vi muitos episódios de CSI.

- Que ótimo - declarou Kalyanpur em tom neutro. - Preciso que nos leve até lá, Chandrakiran.

E virando-se para o encarregado:

- Onde está o chefe da segurança... Sisir?

- Ficou junto do corpo, para que nada fosse mexido - informou Kriplani.

- E você fica aqui, caso precisemos de alguma coisa - ordenou o sargento. - Guhathakurta, Chandrakiran, vamos.

Os três homens, liderados por Chandrakiran, seguiram então ao longo da praia lamacenta, onde cascos enferrujados de navios em vários estágios de desmonte jaziam como carcaças de bestas pré-históricas. Trabalhadores paravam brevemente suas atividades para ver a passagem do grupo, depois voltavam ao que quer que estivessem fazendo.

- Esse lugar me dá calafrios - comentou o policial Guhathakurta.

- Parece um cenário de filme pós-apocalíptico, não é? - Riu o sargento, aparentemente imune ao ambiente sombrio.

Caminharam cerca de 20 minutos até chegar à cena do crime, junto ao casco de um velho navio de cruzeiro, as chapas de aço do casco cortadas por maçaricos de acetileno em vários pontos. O corpo estava sendo guardado por um sujeito com porte de estivador, em trajes civis, certamente o tal de Sisir, e um guarda de segurança, vestido de preto. Ao vê-los, Sisir dispensou o segurança e foi cumprimentá-los.

- Ninguém mexeu no corpo - declarou.

- Sei, sei... todos vocês assistem CSI - respondeu o sargento, acocorando-se junto ao corpo. E erguendo a cabeça para encarar Guhathakurta, indagou:

- O que acha?

- Ele foi trazido para morrer aqui. Veja os sapatos... enlameados. A barra das calças... molhadas.

O sargento olhou para a arrebentação mais adiante.

- Parece óbvio. Por terra, os estaleiros são bem protegidos... tapumes, cercas de arame farpado, guardas armados. Se alguém quisesse entrar sem ser visto, teria que vir por mar. A minha pergunta é: por quê?

- Muito trabalho para uma execução... - ponderou Guhathakurta. - A não ser que...

Parou de falar, mão na boca, e olhou para o navio encalhado, acima deles.

- Que barco é esse?

- Isso é importante? - Indagou Sisir.

- Pode ser tão importante quanto saber quem é esse sujeito - declarou Guhathakurta.

- Isso vai ser fácil... - declarou o sargento, exibindo uma carteira de couro marrom na mão direita. - O defunto está com seus documentos...

Abriu o objeto com cuidado.

- Euros, dólares, cartões de crédito... já sabíamos que não havia sido um latrocínio - declarou. - E o nome dele era... Ambrogio Castellani. Um cidadão italiano.

- Máfia? - Sugeriu Sisir.

- Duvido - retrucou Guhathakurta, celular na mão. - Esse cara possui um verbete sobre ele na Wikipédia!

- Uma celebridade? - Questionou o sargento erguendo-se, testa franzida.

- Uma celebridade infame - corrigiu Guhathakurta. - Lembra do naufrágio do "Stella Maris"? Era um navio de turismo que bateu num recife a caminho de Dubai, alguns anos atrás, matando uma dúzia de passageiros... e o capitão era justamente esse Castellani.

- Sim, estou lembrado... - disse o sargento Kriplani. - Castellani fugiu no primeiro bote, enquanto o navio afundava. Quando o pegaram, disse que tinha ido buscar socorro.

- No julgamento, - continuou a ler Guhathakurta na tela do celular - ele incriminou o timoneiro pelo desastre. O cara pegou dez anos de cadeia, e ele, apenas dois por negligência.

- Que patife! - Exclamou Kriplani. - Será que o timoneiro está solto ou fugiu da prisão?

- Nem uma coisa nem outra... - declarou Guhathakurta, consultando o celular. - Está cumprindo a sentença, em Roma... e só se passaram cinco anos, dos dez previstos.

Sisir, que também andara mexendo no celular, entrou na conversa:

- Acho que sei porque deram cabo do italiano aqui... o navio, você havia perguntado - comentou, olhando para Guhathakurta. - Esse era o "Stella Maris".

E indicou o gigante encalhado acima deles.

- O navio realmente naufragou, mas uma empresa de resgate marítimo conseguiu fazer o casco flutuar há uns seis meses, e a proprietária o vendeu para nós como sucata - explicou.

- Então é isso - declarou Kriplani, descobrindo a cabeça. - Um ato de vingança...

- O capitão não afundou com o navio, mas acabou morrendo junto com ele - complementou Guhathakurta. - Não deixa de ser poético.

- Mas... quem cometeu o crime? - Indagou Sisir atarantado.

Kriplani ajeitou novamente a boina na cabeça e respondeu, com tranquilidade:

- Isso é tarefa para os investigadores... afinal, já descobrimos o motivo do crime apenas consultando o Google.

Guhathakurta guardou o celular no bolso e indagou:

- Quem você pensa que somos? O CSI?

- [20-10-2018]