Lugar-comum

A propriedade era tão grande que Matos achou que do portão até à casa tinha levado mais tempo do que do Departamento de polícia até o portão.

A mulher estava deitada ao longo da cama, usava um vestido branco, como uma noiva em suas últimas núpcias. Imóvel como só os mortos podem ser. Tinha um corte no pescoço, mas tudo à sua volta permanecia imaculado, limpo como o céu de setembro, sem marcas de qualquer jeito.

Amadeus Matos contemplou a mulher, ela tinha uma idade indefinida, dessas que fazem de tudo para vencer o tempo, mas só conseguem parecer mais e mais estranhas.

O quarto em ordem; a roupa em ordem; os empregados, lá embaixo, em ordem, numa fila: os seguranças, as domésticas, o mordomo; eretos, altivos como se agora fossem eles os patrões. A velha estava morta. Velha?, ele não saberia dizer.

Os depoimentos: os seguranças não viram nem ouviram nada; as domésticas, idem, recolheram-se por volta das 21h; o mordomo, um homem velho e requintado, serviu-lhe um drink ali pelas 22h e foi dispensado pela madame, ele a chamava assim. Recolheu-se ao seu mísero quarto (mais luxuoso do que o meu, Amadeus pensou), deixando a velha na sala, ouvindo música clássica (Mozart, talvez) à meia-luz, com olhos semicerrados, dizia ele, convicto... depois disso não ouviu ou viu qualquer coisa, como os outros.

A madame morreu por volta de 23h25min, disse o perito, preliminarmente. O marido não estava em casa; aliás, o marido era o homem mais rico que havia na cidade; tinha ido viajar, viagem de negócios, fato que as investigações desmentiram logo depois. Na verdade, ele dormira a alguns quarteirões dali, na casa da amante, casa mantida por ele para a mulher que “resgatara da casa da madame Ornella”, uma linda garota que tinha como nome de guerra a sugestiva alcunha de Cleópatra. Ele viajara na manhã daquele mesmo dia e já estava voltando, depois de ser avisado da morte da esposa.

Amadeus Matos andou pelo quarto, não havia qualquer vestígio de crime, apenas aquele contundente corpo imóvel, com um corte profundo no pescoço, vestido de branco. Não havia sangue em lugar nenhum, no corpo, nas roupas da mulher, no banheiro. As testemunhas eram os únicos suspeitos, entre eles estava o assassino ou assassinos, ninguém saberia dizer.

Eram 10h da manhã, Matos olhava pela janela, via um grande jardim, um pequeno pássaro rondando uma flor sem nunca pousar, o sol brilhava intensamente acentuando as sombras das pequenas árvores.

Foi o mordomo, ele disse, baixinho.

Por quê? Perguntou seu parceiro, que apesar do sussurro, entendeu o que Matos disse.

Não sei, para reabilitar o lugar-comum, talvez.

Philip não entendeu, mas sorriu mesmo assim.

João Barros
Enviado por João Barros em 18/03/2019
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