O Cheiro do Gás

Ela pôde sentir o cheiro de gás antes mesmo de abrir a porta. Felizmente, apesar de ser noite, entrava luz suficiente vinda da rua para que pudesse se aventurar pelo interior da casa sem acender a luz - o que poderia ter sido fatal. Abriu todas as janelas para somente depois se aventurar na cozinha, e conforme desconfiara, descobriu que o registro do gás canalizado havia sido deixado completamente aberto e a mangueira que o ligava ao fogão estava desconectada. Fechou o registro e reconectou a mangueira. Só então, voltou ao jardim e fez uma ligação pelo celular.

- Sheila? Ele esteve aqui. Deixou o gás aberto, acho que queria me matar numa explosão.

Do outro lado da linha, a voz da interlocutora soou apreensiva.

- Você chamou a polícia?

- Não funciona desse jeito. Tecnicamente, ele ainda mora aqui; tem as chaves. O que eu iria pedir para a polícia fazer? Procurar impressões digitais? Estão por toda a casa!

- Esse cara é louco! Se você não se mudar daí, sabe lá Deus o que ele pode aprontar!

- Não posso me mudar agora, mas vou chamar um chaveiro e mandar trocar todas as fechaduras. Se ele quiser entrar novamente, vai ter que arrombar a casa.

- Faça isso, mas é melhor não dormir aí hoje. Depois que trocar as fechaduras, venha para cá.

- Certo, eu vou aceitar o convite. Ligo quando estiver saindo.

Concluiu a chamada e depois procurou um chaveiro 24 h pelo navegador do celular. Enquanto aguardava, sentou-se na soleira da porta, esperando que o interior da casa se tornasse respirável novamente.

* * *

Quando ele chegou em casa e encontrou todas as janelas abertas, imaginou a princípio que houvesse sido roubado. Ao entrar e perceber que aparentemente nada fora tocado, concluiu que deveria ser uma resposta ao seu pequeno ato de sabotagem - como o denominara - cometido no dia anterior, na casa da ex. Sabia que ela era esperta demais para explodir com a casa, e de qualquer forma, o gás canalizado possui um cheiro forte justamente para impedir que alguém não o percebesse de imediato. Apenas um lembrete sutil de que ele também podia ser bem desagradável, caso desejasse.

O dia estava particularmente frio, nevara a pouco, e com a chegada da noite, a casa estava com uma temperatura de frigorífico. Fechou cuidadosamente todas as janelas, ligou o aquecimento central ao máximo e em seguida chamou um chaveiro 24 h para trocar todas as fechaduras. Afinal, já haviam se ameaçado mutuamente, era hora de parar com a brincadeira.

Depois que o chaveiro terminou o seu trabalho, tomou um banho, jantou e foi dormir.

* * *

Ela atendeu a ligação na segunda chamada. Era Sheila.

- Você viu o noticiário? - Ouviu à queima-roupa.

- Não, o que houve?

- Martin. A polícia o encontrou morto, na cama!

- Morto?! Como?

- Suspeitam de envenenamento por monóxido de carbono... o aquecimento central estava ligado, e aparentemente havia um vazamento na tubulação.

- Nem vou dizer que lamento - afirmou com sinceridade. - Sinto que ele teve o que merecia.

- Era um sujeito perigoso, de fato... - assentiu Sheila. - O que a polícia está analisando é como os detectores de monóxido de carbono não deram o alarme.

- Lembro que Martin usava detectores à pilha - ponderou. - Aposto que esqueceu de trocá-las.

Mas, ela sim, lembrara de fazer isso...

- [30-07-2020]