Ecos do passado

A porta do apartamento de classe média abriu-se e Bintse Ykema estava diante de um homem de meia idade, calvo, vestindo bermuda e camiseta. O policial exibiu o distintivo com o grifo dourado.

- Professor Wiersma?

- Sim.

- Sou o inspetor Ykema, Polícia Metropolitana; a secretária do decano Dijkstra me disse que poderia encontrá-lo em casa...

- Ah, sim... Swantina ligou, avisando que viria - Wiersma escancarou a porta e fez um gesto para que Ykema entrasse. - Não repare na bagunça...

A sala do apartamento estava perfeitamente organizada, e Wiersma usava um bracelete de cobre no pulso direito, coberto por inscrições sinuosas; obviamente, era casado. O professor indicou uma poltrona de braços para o visitante e sentou-se em outra, de frente para ela.

- Swantina me disse que está investigando o assassinato de Veenstra - disse Wiersma, a título de introdução.

- De fato - assentiu Ykema. - Estou colhendo depoimentos de pessoas que conviveram com o morto, não necessariamente de suspeitos por sua morte.

Wiersma esboçou um sorriso.

- Bem... é tranquilizador ouvir isso.

- Pois então, preciso checar algumas informações - informou Ykema, sacando caneta e bloco de anotações dum bolso do paletó. - Onde o senhor estava, entre 18 e 20 h de 4 de Fluch?

- Aqui mesmo, - declarou tranquilamente Wiersma - com minha esposa. Nesse dia, especificamente, cheguei da universidade por volta das 17:30 h e não saí mais de casa naquela noite.

- Por que "especificamente"?

- Geralmente, chego mais cedo; dou aulas de manhã e à tarde, raramente à noite. Mas, neste dia tive reunião no departamento; era rotina, estava agendada há tempos.

- O senhor vem para casa de transporte público? - Inquiriu Ykema.

- Naturalmente - redarguiu Wiersma. - Eu e minha esposa estamos inscritos no programa do carro popular da Tatra, mas a fila de espera é longa, como sabe...

Ykema sabia, embora não cogitasse adquirir um para uso próprio. Como policial, podia eventualmente utilizar um dos DAF descaracterizados da corporação, caso pretendesse ir até algum lugar de acesso difícil ou sem cobertura de transporte regular; mas, tais ocasiões não eram frequentes.

- Poderia então me mostrar o seu cartão de passagem? Preciso checar os horários e o itinerário na Central...

Wiersma poderia ter apenas dito o código do cartão, mas Ykema não queria correr riscos. O professor não pareceu ficar melindrado com a solicitação, e foi até o quarto, retornando com o documento. Ykema anotou o número e o devolveu em seguida.

- Há quanto tempo trabalhava com o morto? - Indagou o inspetor.

- Cerca de... seis, sete anos.

- Como descreveria o seu relacionamento com ele? Eram próximos?

- Próximos? - Wiersma sorriu. - Bem... eu não diria isso; nunca frequentou minha casa e só nos víamos regularmente nas reuniões do departamento. Mas tampouco tínhamos divergências profissionais.

- Exceto, talvez, quanto ao seminário sobre "A Vida de Dominik Panek"? - Provocou Ykema.

O sorriso apagou-se no rosto de Wiersma.

- Quem lhe falou sobre isso? - Questionou, testa franzida.

Ykema deu de ombros.

- É o que circula pelos corredores da universidade; não parece ser um segredo.

- Não, não é - admitiu Wiersma. - O que não significa dizer que seja verdadeiro.

- Então, Veenstra não fez críticas depreciativas à sua apresentação?

Wiersma suspirou.

- Esse tipo de crítica não é exatamente raro no meio acadêmico... mas a atitude do professor Veenstra naquele dia, nos fez crer que ele estava com algum problema; ou talvez, apenas tivesse bebido um tantinho demais. O certo é que trata-se de uma história sem a menor importância, a qual acabou adquirindo uma proporção indevida; talvez, pelo fato de que as pessoas inventam histórias fantasiosas para escapar da própria realidade.

- Acredita que Veenstra tinha tendência para esse tipo de invenção? - Inquiriu Ykema.

Wiersma recostou-se na poltrona, aparentemente mais relaxado.

- Consta que o professor Veenstra foi um aluno brilhante, e havia prognósticos de que teria um futuro condizente como pesquisador... mas algo parece ter lhe acontecido, alguns anos antes dele ter sido admitido na Universidade Van Tuinen. Ouvi rumores de que ficou internado num sanatório por cerca de seis meses, e quando saiu de lá, desistiu de seguir carreira como cientista. Pouco depois, inscreveu-se como professor no Departamento de Literatura, e foi aprovado.

- Um colapso nervoso? - Avaliou Ykema.

- É o que dizem - assentiu Wiersma.

O inspetor abriu a pasta de documentos que levava e exibiu uma cópia do retrato falado do suspeito visto no prédio de Veenstra.

- Conhece este homem?

O semblante de Wiersma não se alterou ao examinar a imagem.

- Não... lamento, inspetor.

E devolvendo a cópia:

- Mas talvez tenha alguma relação com o fato que acabei de lhe contar... o colapso nervoso que fez com que Veenstra desistisse de ser pesquisador.

- Acredita que alguém poderia estar tentando convencer Veenstra a retomar o trabalho anterior? - Inquiriu Ykema.

- Tudo é possível, - disse Wiersma em tom cauteloso - e embora ele fosse reticente sobre o tipo de estudo ao qual havia se dedicado, aposto que tinha algo a ver com criptídeos.

- Uma mudança profunda para alguém que escolheu trabalhar como professor de literatura - ponderou Ykema, guardando o retrato na pasta.

- Não se admitir que deciferontes existem - redarguiu Wiersma.

- Deciferontes? - Ykema ergueu os sobrolhos.

- Se existirem, estariam precisamente na intercessão entre criptozoologia e literatura - respondeu Wiersma. - Talvez devesse investigar isso, inspetor.

- Certamente - assentiu Ykema, um tanto surpreso pelo rumo que a inquirição havia tomado.

[Continua]

- [16-09-2021]