MÃE: SER, POR QUE NÃO?

Antônio Coletto

A noite estava escura. Na rua os trovões faziam o som mais ouvido, e os relâmpagos que riscavam os céus enfeitavam o tétrico cenário, de pavor incontido. Ela, sozinha, no palco da vida, caminhava sobre seus saltos altos, claudicava às vezes, próprios de quem deixa uma festa, apressadamente. Um lampejo a clarear os céus seguido de um estrondo maior - a trovoada - e todas as luzes da cidade se apagaram. Dois ou três passos mais, eis a luz forte da lanterna a agredir, insistentemente, seus olhos, a não permitir a nada ver.

Em casa, madrugada alta, cansada, triste, magoada, quebrada física e moralmente, a debulhar lagrimas de piedade de si própria, que corriam pelo seu rosto a desfazer a maquiagem, a menina despe-se e mergulha sob o chuveiro. Lá fora trovões, relâmpagos a moldar figuras monstruosas no firmamento e chuvas intensas. Por que eles não vieram comigo? Perguntava-se.

Sob o chuveiro, as águas percorriam o corpo esguio da adolescente e misturavam-se às lágrimas que, insistentes, desciam de seus olhos profundamente negros e tristes, a dar sabor diferente à mistura, ao tocar seus lábios. Indiscreta, a mistura fazia a insinuosa caminhada pelas curvas expostas à nudez da silueta juvenil. Ao sentir o frescor das águas acariciarem seu corpo percebeu a menina que, com elas, rolavam gotas de sangue que deixavam o seu entre pernas em meio a dores que aumentavam à mercê de movimentos e do esvair-se do tempo. Lá fora a fúria da intempérie a consagrar a sua vindita.

Triste e em prantos, enrolou-se na toalha, enxugou-se todinha sem sentir – devido às dores – o roçar seu corpo esguio do algodão macio que a envolvia. A toalha mostrou uma mancha vermelha. Apressou-se, com absorvente feminino, estancar o sangramento e, depois, lavar a toalha a disfarçar o acontecido. De camisola, deitou-se de barriga para cima, mãos cruzadas sobre o ventre, à busca do sono que insistia em mesclar-se a lembranças funestas. Estava, literalmente, alquebrada, mas o sono não a alcançava, não conseguia dormir. Veio-lhe a mesma questão: deixarem, com um tempo desses, uma garota ir sozinha para casa. Amigos? Desde quando? As dores, ora menos, ora mais intensas, juntando-se às preocupações, faziam-na rolar sobre o lençol a permitir não conciliar o sono. Mesmo sobre a tensão do desgosto, da decepção, colocou-se em várias posições, cochilava, mas logo despertava como de um pesadelo. Mas não era pesadelo. Todo o ocorrido compreendia uma decepcionante realidade. E as dores continuavam a demonstrar que algo se transformava, mudava dentro de si. Não podia compreender os pensamentos que fluíam, os sentimentos exsurgidos de seu eu mais íntimo, escoltados pelos tremores experimentados, exceto as dores que resistiam aos analgésicos ingeridos.

Ao amanhecer, de novo ao sentir correr sobre seu corpo adolescente, moldado pela natureza, a água do chuveiro, notou que não mais chovia e, o sangramento, embora, ainda, sob dores, fora estancado. O sol brilhando no alto a convidava à vida. As dores físicas tornaram-se irrelevantes, as morais aninharam-se em seu cérebro, com raízes profundas em seu coração - consolidaram-se. – Estas ficarão para sempre, disse para si mesmo.

De mochila às costas e uniforme escolar, tropeçou ao descer degraus da porta de casa, quase indo ao chão. As dores no baixo ventre aumentaram. O pai, a brincar: que foi isso, filha? Está perdendo a destreza? Não, pai, falou consigo mesmo, é que estou me sentindo diferente, não sou a mesma. As dores que sentia não permitiram a repetição da molecagem de todos os dias: saltar os degraus. Ao pai, entretanto, apenas esboçou um sorriso. Um simples sorriso do gracejo do pai, mas que dizia tantas coisas que não podiam ser ditas.

Às aulas, naquele e nos dias que se seguiram, não conseguia se concentrar. Pensamentos e lembranças esparsas, diversas e estranhas povoavam sua mente. Uma, entretanto, mais a atormentava e, a ela, sempre questionava: como puderam, sob desculpas de cansados, negarem-se a me acompanhar? Seria vergonha reflexiva? Talvez, pois, agora, de mim se distanciam! Estariam ofendidos ou...

Dois meses eram idos. O ventre, entre torção, cólica e dores, estas não tão intensas agora, continuava a inchar-se, crescia a cada dia. Procurava disfarçar com faixas apertadas, roupas largas. Em casa já haviam notado: estava engordando. Precisa fazer mais exercícios, diziam, para perder as gordurinhas, esses pneusinhos, molestava-a o irmão a tocar-lhe. Na Escola, em plena aula, sentiu-se mal. Precisou sair correndo para o banheiro. Às indagações respondeu ser um mal estar passageiro.

Terminada a segunda aula, no intervalo saiam e, rodinhas de coversas, aqui e acolá, formavam-se. No corredor, por onde caminhava, sozinha e lentamente – as dores e incômodos no ventre a forçavam - um grupo de jovens forma uma barreira. À sua aproximação, todos se curvam reverentemente como à passagem de nobre princesa, tais eram seus porte e beleza, que mais se mostravam com o crescer de seus seis e vente: passe alteza, alguém disse. D. M. nem os percebeu, pois que, seus olhos estavam fixos ao longe, à porta da uma das salas de aula, onde se esboçava uma figura enigmática, mas conhecida que, ao piscar dos olhos desapareceu. Estarei sonhando? perguntou-se. Colocou as duas mãos sobre a barriga, baixou a cabeça e ouviu, dos jovens, gracejos a endeusá-la, seguidos de risos hilariantes.

Boa tarde, lhe disse, amavelmente, a policial. O Doutor está à sua espera. Entre, por favor. Sente-se, ouviu do homem grilhado de olhar austero, sentado do outro lado da mesa. D. M. sentiu, como alvo do olhar fixo e severo, tremer-se internamente. Não fique com medo, nem apreensiva, lhe disse: sou pai de Licrúlia, que todos chamam L. S. Você é a D. M. - Denila Maia, respondeu gaguejando a tremer os lábios. Ela me deu o recado. Sim, então não percamos mais tempo. Sabe por que está aqui? Perguntou-lhe estendendo a mão direita aberta aos seus olhos a mostrar-lhe uma medalha. Reconhece-a? D. M. tremeu mais ainda, lágrimas atreveram-se rolar de seus olhos. A gaguejar, mal balbuciando as palavras: o senhor tem um banheiro que eu possa usar?

Amparada pela policial – mal se sustentava de pé e a andar. Entrou no banheiro, vomitou no vaso. No lavatório procurou refazer-se, suspirou fundo, voltou. E então Denila, reconhece a medalha? Tomou-a às mãos, observou-a. Instintivamente levou a mão ao pescoço, onde deveria estar pendente de sua correntinha. As letras D. M. e sua data de nascimento estavam no verso da medalha. Não podia deixar de reconhecê-la: era a que ganhara de seus pais no último aniversário. Suspirou fundo, ressuscitou técnica tibetana, recuperou a altivez. Sim, é minha, havia-a perdido com a gargantilha da qual pendia. Como e onde foi encontrada? E a correntinha que a acompanhava?

Triste e lamentável sua história. Exceto pequenos detalhes, coincide com outras já registradas. Outras, talvez, estejam para ser desveladas, a aguardar, sufocadas pelo medo e pela vergonha. Acredite, filha, nenhum desses sentimentos deve afetá-la, você é vítima. Vergonha e medo deve ter quem, com tanta rudeza e crueldade, a ofendeu e, por isso, deve à sociedade uma explicação pelos seus atos e atitudes. Você, como as outras não, não mesmo. Agora, querida, muita calma e nos ouça bem: precisamos de sua ajuda, tirar esse psicopata das ruas. Sim, mas a medalha...? Ah! Sim, foi encontrada no local onde encontrada a última vítima, fatal infelizmente. Fatal, morta? Questionou.

De cetim preto, você disse, era a máscara que cobria o rosto dele. Sim, respondeu descrevendo detalhes de como sabia o que revelava. Pude bem observar, tenho certeza. Como esta? Perguntou a autoridade, retirando uma de sua gaveta. Não era diferente em detalhes de confecção. Denila, se colocarmos quatro ou cinco homens que atendem à sua descrição, você seria capaz de reconhecê-lo? Se estiver entre eles, mantiverem os olhos bem abertos e esboçarem sorrisos e puder observar suas orelhas, acredito que sim. Contudo, também é certo – os senhores sabem - me tornarei alvo à represálias. Quanto a isso, não se preocupe, daremos a você e família a indispensável segurança. Mas, e a máscara? Alguma outra vítima a descreveu da mesma forma? Infelizmente não, sua descrição é única. Isso quer dizer que o estuprador usa uma máscara para cada evento, arrematou Denila. O delegado percebeu a argúcia da menina. Contornaremos as questões referentes segurança e avaliaremos todos os aspectos de seu depoimento. Outra coisa, Doutor: sou menor de idade e atendi a um convite de uma colega de colégio. Denila evitou a palavra “amiga”. Licrúlia estava no grupo que se negou a acompanhá-la na noite sinistra. Com o devido respeito querida, como tal vamos tratar o caso. Quando aos seus pais, você os comunica ou nós o faremos?

Doutor, uma só pergunta, disse a policial que acompanhava o caso: Denila, você esta grávida? Olharam-se profundamente. Denila baixou a cabeça e saiu.

Três dias depois, frente ao painel de vidro transparente apenas para ela, jovens mascarados desfilavam, com olhos bem abertos e naturais, sorrisos forçados e espontâneos, para reconhecimento. Um a um, observados pela adolescente, foram dispensados. O autor do delito não foi apresentado. Os dias passavam, o ventre da menina crescia a olhos nus, de forma a dificultar o disfarce. A novos convites atendeu e o resultado sempre o mesmo. Por que tanta certeza ao dispensá-los, perguntaram-lhe. Não desejam ver um inocente pagar pelo que não fez, pelo menos no tocante a mim. Somente a verdade, o lúcido e real nos levará ao verdadeiro culpado. Só isso eu quero. Comigo, Doutor, não foi nenhum desses. Talvez, com outra... Sua certeza, tirava-a da presença ou não de sinais, cortes de cabelo, formato do nariz, dos lábios, das orelhas – estas considerava inconfundíveis - a dentição, o sorriso e o olhar de cor e expressão inconfundíveis, terrificante a esboçar sua satisfação em subjugar sua presa. Falo por minha triste experiência: desses, com certeza, nenhum é quem procuramos.

A autoridade mostrou-se perplexa, pressionou-a, renovou indagações. Matou-as a menina, com apenas uma reposta: fui eu que estive subjugada, embaixo dele. Fui eu quem viu e sentiu seus lábios nojentos e alcoolizados tocarem os meus e causar-me repulsa e náuseas incontidas, fui eu quem sentiu seu hálito, seu odor. Ao deixar a Delegacia, mais uma vez questionou: eram meus amigos, como puderam? sob pretexto de cansaço. Sentindo-se mal, sentou-se numa mureta e aguardou por alguns instantes.

Do intervalo entre aulas, retornou à sala. O peso do ventre a abatia, a faixa a apertar-lhe a barriga a incomodava. Pensamentos estranhos pululavam em sua mente. E veio a pergunta: até quando conseguirei esconder? E, se faço, como faço, estou causando prejuízos a nós dois?! Em casa o segredo foi desvendado. Assim conjecturando, pediu licença à professora para dar uma notícia à classe. Bem pessoal, não sei como dizer... Diga falando, trucou alguém. Bem, é verdade. O que? Perguntaram. É que eu estou grávida. Ninguém, parece-me, sabe que fui vítima de um estupro no dia da festa dos 15 anos da Laurinha. Não perguntem, por favor, não vou dar detalhes. Estou comunicando por que estou sufocando uma dor intensa e prejudicando o bebê que está aqui dentro, disse acariciando a barriga. Muitos, colegas, professora questionaram. Manteve-se em silêncio. Falava apenas consigo: tenho outro problema: minha família já sabe, mas...

Sobre sua carteira o caderno. Abriu-o e, entre suas folhas um envelope lacrado, nada sobrescrito, ausentes endereçado e remetente. Nele um bilhete elaborado com palavras recortadas de revistas e jornais: “se me reconhecer, mato você, seu filho e sua família”. Não! Mais essa, meu filho não, por ele dou a vida. Não o desejei, mas o concebi, não consenti a concepção, mas em meu ventre foi concebido; aquelas dores – físicas e morais – verteram-se em amor: é meu, somente meu. Guardarei esta certeza somente para mim. Sentou-se para não cair, guardou o envelope na bolsa enquanto sentia profunda dor no coração e lágrimas desligarem-se de seus olhos e rolarem pelo seu rosto castigado pela dor e pela tristeza. Lembrou-se que, em horas de aflição, sempre sentia essa dor e lágrimas rolarem pelo seu rosto. Lembrou mais: “você é uma garota diferenciada, por isso a escolhi”. Ouviu, sob pressão, mas tão bem gravou o sotaque e a disfarçada rouquidão a nunca mais esquecer. Pois bem, disse para si mesmo e, ao término da aula, dirigiu-se ao quadro e escreveu: vou pagar pra ver, você já era. - Espero o passo seguinte, pensou. Ninguém entendeu suas palavras – fora do contexto.

O Delegado, como prometido, convidou os pais para uma conversa. Não foi agradável para nenhum deles. Voltaram revoltados, nervosos, decepcionados a exigir da filha consentimento para o aborto legal: nesses casos a Justiça concede, argumentaram. Filha, evitará a vergonha para toda a família! Eu não sinto vergonha. O Delegado não os esclareceu? Eu sou a vítima! Dentro de mim, aqui no meu útero – colocou as duas mãos sobre a barriga - foi concebida uma vida, já é uma pessoa em formação, e eu a amo mais que tudo na vida. Não consenti a concepção, mas, hoje a tenho como uma dádiva divina. Jamais consentirei no aborto. Façam o que quiserem menos exigir que mate meu filho. Não seja trágica, olhe a situação com mais lucidez. Que lucidez, calcada na morte de um inocente? Deus é testemunha: a luz de meus pensamentos é e será sempre o meu filho, meu, entendem? E como vai criá-lo? Vai prejudicar o seu futuro. Não se preocupem: as mesmas entranhas que aceitaram em mim a concepção me fortalecem e me ajudarão.

Os dias corriam como ventos descompromissados para o infinito, a barriga crescia, a criança se mexendo prendia sua atenção e o peso – para muitos um infortúnio - tornou-se mais uma razão para viver. É meu filho, só meu... Por você mudei rumo e sentido de minha vida; de bom grado a darei, se necessário. Meu filho, só meu. Tantas coisas vinham acontecendo, mas sua indignação a respeito da noite da festa, da luz forte da lanterna em seus olhos, cegando-a momentaneamente, da violência ao subjugá-la e o sorriso sarcástico circundado pela máscara negra, não poderia jamais esquecer. O porte físico viu apenas mais uma vez, de longe, sem distinguir o dono, nos corredores da Escola, quando agradecia aos colegas. Misteriosamente desapareceu – marcas que ficaram.

Ao convite acedeu. Licrúlia o fez. Recebeu-o em sala de aulas, ainda frequentadas com as dificuldades inerentes à futura mãe. Ali sentia-se feliz. Em casa a história era outra: a família não aceitava o (a) neto (a), o (a) sobrinho (a) bastardo (a). Sentia-se isolada – por que isolada, a puseram - sem o amparo dos familiares que, desde que se inteiraram dos fatos, pressionavam-na pelo “remédio legal”. Aprendeu a dizer não, não mesmo, respondia.

Na escola afagos, respeito e reverências. Apreciavam, os colegas, depositarem as mãos sobre sua barriga e sentirem a criança se mexer. Riam e abençoavam-na, depositavam ósculos em suas faces e em sua barriga, às vezes desnuda. Os professores agradeciam e elogiavam sua coragem. Ansiavam todos, pelo nascimento do afilhado: haviam-no apadrinhado, singela oferta à essencialidade da mulher. Acariciava a barriga: veja filho, quantos padrinhos você tem.

Na Delegacia inteirou-se do novo caso e que a vítima estava no Hospital. Não corria risco de morte, mas bem machucada. Caso diferente, outra máscara e muita violência. Acreditamos que a resistência desta vítima foi mais incisiva. Frente ao mesmo painel cenas anteriores se repetiam. O cara é muito esperto, deduziam. Denila, então, decidiu mostrar às autoridades os bilhetes que vinha recebendo quase todos os dias, elaborados da mesma forma, como a revelar as resposta que deixava no quadro negro. Seria ousadia, cara de pau ou contava com alguém próximo à menina? Pelo menos agora temos alguma coisa, considerou o policial.

Ao retornar à Escola, Denila, sob sua carteira, à ausência de coisas suas, um novo envelope, um novo bilhete: “você está brincando com fogo”. Informaram-na, os colegas: ninguém – exceto os alunos – se aproximou de nossa sala, e nenhum de nós mexeu em sua carteira. – Não havia material, conjecturou. – Quem, então? - Ao término da aula, no quadro deixou sua resposta: “o fogo é minha esperança. Você já era”. Esperava a menina, mesmo em suas condições, que nova tentativa fosse perpetrada. Sentia-se preparada para tanto. De imediato comunicou o policial.

As provas escolares finais foram marcadas. A gravidez estava chegando ao fim e, com ela, o ano letivo. Triste, contudo, a notícia do desaparecimento do primo de Licrúlia. Agora a de que a Polícia encontrou o corpo. – Denila de nada sabia. Alguém o viu e comunicou a autoridade. Estava em um terreno baldio, próximo ao clube onde se realizou a festa. Será o mesmo lugar? Perguntou para si mesmo. Não mantinha relações próximas com Gleninho - como o chamavam - mas o conhecia, dançou com ele na festa de Laurinha. Primo de Licrúlia, sobrinho do Delegado, Nossa! Exclamou. O choque da notícia mexeu com suas entranhas. Ao levantar-se sentiu-se molhada. Olha, disse um colega: a bolsa da Nelita estourou.

O professor, de imediato, providenciou a ambulância que a conduziu à maternidade – veio ao mundo, sob o por do sol, Lucas Antônio Maia. Os colegas fizeram fila para visitá-la e conhecer o afilhado mais esperado e mais amado do mundo. O quarto simples da Maternidade ficou repleto de flores. Licrúlia foi a última. Trouxe-lhe uma orquídia branca, a simbolizar sua pureza, disse-lhe. Pediu para segurar o bebê que a enfermeira trouxera para a mãe amamentar e ficar por mais algum tempo: tinha coisas a dizer, desculpas a pedir, perdão se a tanto a compreensão exigisse. Tenho coisas a confessar, desfazer dúvidas, disse. Como assim, indagou Nelita. Primeiro pela noite da festa: não devíamos e não podíamos tê-la deixado ir sozinha para casa. Cedemos à insistência de Nesito e Gleninho. Ismália fez coro e Dori se absteve. São águas passadas, não banham mais o mesmo arbusto. Sim, mas o resultado me é punição a cada lembrança, e sei que as terei pelo resto da vida. Essa certeza está em meus braços, dorme tranquilo, embora, de outro olhar, seja uma bênção. Por ironia, uma quadra à frente o Gleninho nos deixou. Depois o Nesito, ficamos sós, eu e Ismália e Dori. Outra coisa, preciso confessar: o Gleninho era muito apaixonado por você. Os bilhetes que você recebia a confessar seu intenso amor, todos foram por mim plantados em seus objetos particulares, em sua carteira, a pedido dele, sob juramento de eterno sigilo. Nelita estremeceu, ficou indignada, mas não deu mostras. Diante de sua morte – continuou Licrúlia - com muita tristeza, coração despedaçado, quebro o juramento que fiz para te pedir desculpas e compreensão à paixão dele. Nelita, apreensiva, nem tentou levantar-se. O quarto era simples, de uma Santa Casa de Misericórdia, não havia cadeiras, apenas uma pequena mesa e a cama onde estavam sentadas. As flores esparramadas pelo chão. - Você disse isso ao seu pai, perguntou, sofregamente. Diante da resposta negativa, com os olhos a estourarem em lágrimas, suplicou à colega que contasse ao pai, pois era muito importante para ele, como tio de Gleninho, arrematou. Se for de seu gosto, farei o que me pede assim que chegar em casa. Ao entregar o bebê à mãe e despedir-se, Licrúlia viu um novo brilho nos olhos de Nelita: você está diferente. Ao chegar encontrei uma, despeço-me de outra. Efeitos da maternidade? Dos acontecimentos, diria.

Como está querida? Cumprimentou-a o pai de Licrúlia. Olharam-se nos fundos dos olhos a vê-los, ambos, refletidos nos outros. As imagens estavam ofuscadas, embaçadas pelas lágrimas que vertiam, a dor era recíproca e imensa. É este o fim, questionou a mãe adolescente. Tenho uma ética a obedecer, não posso encerrar o caso assim. Às favas a ética, ouvi de um passarinho. Que mais ele lhe disse? Aconselhou-me a suplicar sigilo absoluto e eterno. Prometa-me, pelo amor de Deus. Verei o que posso fazer. Antes, porém, esta é sua, e destas qual é? Às mãos do Delegado quatro correntinhas de ouro. Minha? a que tem o elo 17 e o 27 diferentes. Recebeu a medalha e, das correntinhas, mostrou ao Delegado a sua. Expôs, então, a autoridade, outros objetos encontrados entre as coisas do sobrinho. Reconheceu Nelita, um par de lentes de contato como aquelas que usou no dia. Esclareceu o Delegado que sua morte se dera com a introdução de um palito comprido, de madeira, desses que as mulheres usam para segurar os cabelos feitos em coque, em seu ouvido esquerdo. Ele, de calças arriadas, ainda caminhou por alguns metros e caiu. Quem o matou, provavelmente, vítima que não prestará queixa. Ao reconhecer as lentes usadas contra ela, a menina lembrou que o Gleninho tinha uma mancha no olho direito – escondida pelas lentes -, orelhas de abano e um dente meio que encavalado em outro do lado esquerdo. Ninguém, com estas características, desfilou perante mim, afirmou. Isto explica próteses dentárias entre suas coisas. Esta revelação fez o policial lembrar-se das exigências quando chamada a reconhecer o infrator. As orelhas de abano eram escondidas pela máscara

Tudo chega ao fim. Sim, parece. Abraçaram-se em silêncio. Mesmo com olhos turvos: de malas prontas? Para onde vai? te dou uma carona. Meus pais viajaram para o exterior e tenho dúvidas se voltam; meu irmão segue a sua vida um tanto quanto... D. Silésia, sua atendente, me trouxe as provas de que precisava: sou filha adotiva, agora, abandonada. Ao quarto de despejo dos fundos da casa não mais voltarei. Vou para o Lar das Mães Solteiras. Lá me esperam. Está tudo combinado. O futuro, bem, é futuro, ninguém sabe, dizem que a Deus pertence, mas o tenho na imaginação, e esta se revela numa grande esperança. É, a vida continua.

ANTÔNIO COLETTO
Enviado por ANTÔNIO COLETTO em 02/07/2022
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