"Dorme neném..." =Conto policial=

Ele flexionou os músculos do braço direito e sorriu para o espelho. Depois os do braço esquerdo e sorriu novamente. Sorriu o tempo todo enquanto examinava o corpo no espelho enorme do banheiro principal da casa:

- Mamma mia! O velho aqui está em plena forma mesmo! Quantos caras de sessenta anos podem afirmar de boca cheia que estão enxutos? Musculatura pura e zero de gordura. Saúde nos trinques. Total. E olha que nunca tive tempo de me cuidar. Agora vou viver a vida de verdade.

A última frase arrancou dele uma gargalhada demorada. Riu a ponto de verter lágrimas, chegando a emocionar-se com sua incrível esperteza.

- Cá pra nós, eu aí no espelho, não é qualquer um que apronta uma dessas não. Tem que ser gênio. Gênio. Gênio completo, dos bons, dos impecáveis no que faz. Todo mundo caiu na conversa, todo mundo se condoeu, todos ficaram cheios de pena do falido aqui. E agora eu vou viver intensamente cada minuto que me resta de vida. Ah, se vou...Mundo velho sem porteira, prepare-se que estou chegando pra me esbaldar.

Fez a barba cuidadosamente, demorou-se no último banho na “Jacuzzi” relembrando todos os fatos e seus feitos nos últimos meses. Rememorou cada jogada até chegar à falência fajuta, a maneira como ludibriara a esposa e conseguira dela as assinaturas para dispor de todos os imóveis transformando tudo em dinheiro vivo e depois lhe dando um pé na bunda, de que maneira enganara o velho sócio de décadas, como persuadira os filhos de que a família agora estava no limbo financeiro, como conseguira dos sogros um enorme empréstimo que jamais pagaria, como, enfim, lotara aquela enorme mala preta em seu quarto de notas de dólares de alto valor cada uma. Uma fortuna à sua espera. Um mundo cheio de maravilhas aguardando o novo milionário.

Além da fortuna, Juliana, a belíssima morena, sua última secretária, aguardava-o para juntos embarcarem numa aventura maravilhosa onde a possuiria pela primeira vez. Com ela gastaria a rodo, viajaria pelo mundo, desfrutaria de todos os prazeres até que dela também ficasse farto. Quando isso acontecesse a abandonaria em um canto qualquer do planeta. De preferência sem passagem de volta.

A água quentinha na banheira, a suave música ambiente, a quietude da casa, tudo contribuiu para que ele adormecesse e aos poucos se ajeitasse na banheira. Quando a água lhe entrou pelo nariz quis levantar o corpo e não conseguiu. Alguém o segurava pelo alto da cabeça e conseguia mantê-lo abaixo da linha dá água.

Um minuto. Dois minutos. Três minutos. Quatro minutos. Era muito forte. Levou cinco minutos para morrer.

Juliana secou as mãos em uma toalha, dirigiu-se ao quarto onde estava a mala de dólares, colocou-a em um carrinho de mão dobrável e levou-a até a garagem.

- Pronto, mamãe. Seu maridinho está no banho a acho que não sairá nunca mais. Nossa senhora! Fiquei exausta depois de ficar horas escondida naquele box, mãe. Nunca mais me peça pra matar outro marido seu, mãezinha. Dá muito trabalho.

- Ainda bem que nunca contei a ele que tive você antes de me casar, querida. Se não fosse você, meu anjo da guarda, ele teria passado a perna em todos nós.Graças a Deus nada escapa a uma boa secretária. Ainda mais uma secretária "boa"...O vagabundo ingrato ia levar o resultado de mais de vinte anos de trabalho da família e ainda o dinheiro de meus pais, que, aliás, eu vou devolver agora mesmo.

- Tem certeza de que não haverá problemas, mãe?

- Absoluta, filhinha. Ou você acha que careca molhada guarda impressões digitais?

As duas riram com gosto e foram embora com alguns milhões de dólares.

Em tempo: as investigações redundaram em “afogamento acidental por sonolência”.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 19/05/2008
Código do texto: T996394
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