OS CAMINHOS DO ÉDEN

OS CAMINHOS DO ÉDEN

João Milva

Sempre imaginei que Lillith tivesse uma determinada forma. Seria uma mulher com características de harpia, inclusive as asas. Ou lembraria uma coruja, segundo velhos textos.

Ao caminhar pelos caminhos do Éden pude perceber, enquanto permanecia nesta dimensão inusitada, que as formas de Lillith são múltiplas, variadas e que ora estão em expansão, ora em retração. Pelo menos assim me pareceu.

Os caminhos do Éden têm de tudo, e neles tudo é possível. Procure e peça a seu gosto. Resolvi por à prova esta situação que contradiz toda a lógica e toda a experiência. O ilimitado nos soa como um abismo. Pedi que me fossem indicadas as páginas de um livro que Madame Blawastky lera em transe. Tratava-se de um texto de Símaco que falava de Lilith, esta figura misteriosa criada bem antes do que Eva e primeira mulher de Adão.Lillith imperava e seduzia os homens, transtornados diante de sua sexualidade intensa e magnífica. No entanto recusava-se a ficar por baixo no ato sexual. Pleiteava condição equivalente à dos homens.

Meu interesse consistia em saber de onde vinha aquela Lillith, que nos persegue até hoje, ora furiosa, como as tempestades, ora mansa e pacífica, como se diz das posses tranqüilas. Hoje, polidos que fomos por alguns milhares de anos, Liliith habita as partes mais arcaicas de nossos instintos e perde-se nas memórias primordiais.

O apogeu do seu domínio caracterizava as sociedades matriarcais. A sexualidade feminina, desfrutada em grupo em rituais sagrados, se impunha como o culto à fertilidade, da terra e das mulheres. A menstruação era a época para estes ritos. O homem, de certa forma, era o zangão de uma colméia.

Superada a sociedade matriarcal, que aos meus olhos opacos pelo tempo volta a apresentar algumas de suas características, o reinado passou a ser o de Eva, a submissa e ardilosa mulher de Adão, que o levou a perder, por força de sua curiosidade, as delícias do Éden.Eva, criada bem depois de Lilith, simboliza aquela figura materna que nos ama tanto que nos sufoca em seu amor que tudo dá ostensivamente e tudo pede na sombra. Pois bem, o texto apareceu claro diante de meus olhos e - incrível mistério - em português, quando deveria estar em grego. Depois percebi que a questão da língua era irrelevante, uma vez que bastava eu querer para compreender e falar perfeitamente qualquer língua. E só alguns minutos depois é que percebi: os textos não estavam em português, mas em grego, eram originais, tradução do hebraico que por sua vez era tradução das imemoriais memórias dos babilônios - a antiguidade dos antigos.Mas os entendi de modo tão perfeito que, de pronto, julguei que estivessem na minha própria língua. O novo confunde e espanta.

Nos jardins do Éden tudo é possível. Tudo é muito diferente de nosso limitado plano tridimensional. Outro dia, numa tarde chuvosa, via no Discovery um piloto que voava com o avião de cabeça para baixo e comentava que a sensação era estranhíssima. Realmente, olhar para o chão e ver o céu e olhar para o céu e ver o chão inverte os nosso pólos. Pois assim é no Jardim do Éden.

Madame de Recamier era uma mulher excepcional, posto que muito inteligente, talentosa e linda, o que é raro. A natureza é avara e resiste em conceder três dádivas de uma só vez. Disse que era excepcional, porque seus dotes eram quatro, uma vez que sua vida foi reconhecidamente marcada por grande virtude. Sobre esta quarta qualidade, no entanto, uma de suas biógrafas, Françoise Wagener, afirma que não lhe fora concedida pela mãe natura, mas pelas circunstâncias: sendo filha natural de um homem riquíssimo, o pai com ela se casou para esconder a sua situação de bastarda e lhe assegurar a herança de sua imensa fortuna.

Não sei bem porque imaginei que Madame de Recamier soubesse algo sobre Lillith. Talvez porque foi condenada , em nome da honra e da riqueza, a viver virgem até a morte do pai-marido, pois sua relação com ele era platônica. Esta situação dramática, ainda que suave, gerada pelo lazer dos deuses que brincam com os destinos humanos, têm, por contraste, algum elo invisível com Lilith. Pois Lillith era, por disposição íntima, uma devoradora de homens. Ambas seguiram destinos opostos por razões alheias ao seu arbítrio. Muitas vezes os opostos se unem. Apraz-me verificar os tortuosos caminhos que percorri para me defrontar com esta extraordinária mulher. Em determinado momento, desgostosa e triste com a morte do pai-marido Madame de Recamier resolveu afastar-se do mundo. Chateaubriand, o grande poeta francês, não o jornalista paraibano, levou o mundo até ela. Não teve como fugir.

Madame de Recamier não manifestou o menor interesse por Lillith.Ela me disse: “estou interessada nos anjos. Leu Santo Tomás de Aquino? Ele diz que os anjos, que são de diferentes hierarquias, dividem-se em querubins, serafins, os anjos propriamente ditos e os arcanjos. Tenho certa intimidade com São Miguel Arcanjo , me disse inda – e me lembro que seus olhos como que rolaram nas órbitas - estive pessoalmente com ele algumas vezes, acompanhei-o quando se preparava para a aparição no monte Gargano”. Esta aparição se deu alguns séculos antes do seu nascimento, o que demonstra que no Jardim do Éden é sinuosa a linha do tempo.Imediatamente, evocado por aquela mente privilegiada, apareceu um poliedro, de múltiplas cores. Parecia-me muito mais uma ave do paraíso do que um anjo. Mas, por uma razão inexplicável, sabia que era um arcanjo, pois via sua espada flamejante, de guardião da Árvore da Vida. Uma Legião de Anjos voltejou ao meu lado. Eram formas indiferenciadas que iam e vinham, se expandiam e retraiam, e nada tinham de parecido conosco. “Vocês são assim?”, perguntei, e Gabriel, o que anunciou Jesus a Maria, me respondeu: “somos como você quer que sejamos”. Aquilo me intrigou e as formas apareceram como um arco-íris. Depois sumiram. Depois voltaram de novo. Agora fluíam como uma corrente de ar soprando entre as folhas (eis Lillith, pensei. Segundo a velha tradição ela assumia a forma de vento). Finalmente se organizaram como um hipercubo multicolorido. Maravilha das maravilhas!

Caminhei mais um pouco por aqueles caminhos perdidos. Não há maior perigo do que tudo poder. A tentação pode ser irresistível: passou pela minha cabeça, assim de longe, pedir para ver a face de Deus, mas temi. O resultado dos que o tentaram não foram os melhores. O olhar divino tem o dom de reduzir tudo a pó.

Mas não resisti à vontade de rever um certo sorriso. Foi a minha perdição: ele se incorporou aos meus olhos e nunca mais me abandonou. A partir de então, qualquer sorriso é como aquele, só posso ver aquele, que a todos outros exclui e os torna uma decepção para mim.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 19/09/2008
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