Budapeste

Fui Dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio.(...)Aumentei o volume, mas a locução era em húngaro, única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita. Apaguei a tevê, no Rio eram sete da noite(...) oi, querida, sou eu, estou em Budapeste, deu um bode no avião, um beijo.”
Chico Buarque, em “Budapeste”

   Estava sentado num banco da Praça Mário Furtado, atrás da igreja e de frente para a Avenida Cinco. Deixei vagar meus pensamentos, à procura de uma idéia para continuar minha série sobre as ruas e avenidas de Orlândia. Trazia nas mãos o Livro de Salvador Dali: na capa um detalhe de Sono (1937) e, enquanto eu o folheava, cantarolava Lucy In The Sky With Diamonds, dos Beatles. Era uma manhã de sábado, início de inverno. Um sol fraquinho me fazia companhia.
   Perdido em meus devaneios pensei em falar sobre minha casa, pois afinal de contas moro na Avenida Cinco, quando um fato tanto quanto inusitado aconteceu: a cidade foi tomando outra forma.. Não sei se voltava no tempo, se transformava-se em outra cidade ou se ambas as coisas.Me vi menino, descendo a rua de bicicleta e correndo muito. Quando o eu-menino tentou frear, não conseguiu. Vi sua cara de desespero, pois um cruzamento se aproximava. Na falta de outro recurso, meteu o pé no pneu, mas o garfo da bicicleta era muito largo e o pé travou de vez o pneu dianteiro, dando-lhe o maior tombo.Caiu de costas com a bicicleta por cima. Fui correr para socorrê-lo, mas percebi que as mudanças continuavam. Ouvi risos atrás de mim e nova surpresa: era minha namorada-menina que, embora mostrasse preocupação, ria do tombo do eu-menino e do seu exibicionismo. Quando meus olhos retornaram à cena, vi que o prédio da Caixa Federal tinha voltado a ser a casa antiga, a mesma que tinha sido demolida para dar lugar ao novo prédio, e pelo portão saiu Maria José, uma assídua leitora dos meus textos, que hoje mora em São Paulo, e socorreu o eu-menino. Ele levantou-se meio que sem graça, saiu disfarçando a dor e, em pedaladas antálgicas, desapareceu na primeira esquina.
   Meio atônito com tudo comecei a olhar em volta e vi que a cidade agora era outra: grande, cheia de edifícios, muito movimento de pessoas e carros. Totalmente atordoado, saí vagando e desci a Já-Não-Mais-Avenida-Cinco, chegando até o Córrego dos Palmitos no final da rua. Mas já não era um córrego e sim um rio bem mais largo, de águas verde-musgo. A antiga ponte da estrada de Sales Oliveira tinha se transformado numa ponte pênsil. As casas da marginal tinham agora fachadas neoclássicas e balcões art-noveau. O matadouro municipal era uma construção com arcos bizantinos e, ao cruzar a ponte, pude ler numa placa: Ponte sobre o Rio Danúbio. Aquilo foi demais: Meu Deus, Orlândia havia se transformado em Budapeste. O que estava acontecendo? Sonho tinha certeza que não era.
   Retornei pela Já-Não-Mais-Avenida-Cinco e a certa altura fui abordado por um senhor bem mais velho que eu, que trazia nas mãos flores de papel celofane amarelas e verdes, um caleidoscópio e o livro do Salvador Dali. Dirigiu-se a mim dizendo que eu havia esquecido o livro no banco da praça. Sua fisionomia pareceu-me familiar, perguntei-lhe:
   - Escute, será que não conheço o senhor de algum lugar?
   - Claro que conhece, respondeu ele. Sou o Zsoze Kósta.
   Sim, agora eu reconhecia a tal pessoa:
   - O senhor não é o “seo” José, chofer de praça?
   - Sim, respondeu ele, mas me mudei para o Rio De Janeiro, estudei letras e agora trabalho como ghost-writer.
   - Como, seu José?
   - José não, corrigiu ele, Zsoze.
   - Está bem, mas como é que foi mudar tanto assim de ramo, perguntei. De chofer de praça a ghost-writer...
   -Coisas da vida, respondeu-me.
   Fiquei mais intrigado ainda. Enquanto ele desaparecia no burburinho da multidão, continuei meu caminho de volta à praça. A música dos Beatles continuava forte na minha cabeça e me fazia retornar ao Rio Danúbio: picture yourself in a boat on a river, with tangerine trees and marmelade skies...
   Enfim cheguei à praça. A cidade já começava a voltar ao normal: aos poucos Budapeste voltava a ser Orlândia. Ainda pude divisar minha namorada-menina rindo e deslizando pela praça sobre patins. Esquisito, pensei, não sabia que ela patinava. Aproximou-se de mim e, quando a chamei pelo nome respondeu-me:
   - Não sou quem você pensa, meu nome é Kriska, e saiu em disparada sobre seus patins misturando-se às pessoas que passeavam na praça, que agora já era outra vez a Mário Furtado. A Maria José acenou-me sorridente entrando na casa que voltou a ser o atual prédio da Caixa Econômica.
   Chacoalhei a cabeça, esfreguei os olhos, olhei ao meu redor: estava acordado e lúcido. A cidade voltara ao normal, eu também voltara ao normal. Sentei-me novamente no banco e voltei ao livro de Salvador Dali, mas, ao olhar para ele, vi que a capa não era a mesma, não tinha mais o detalhe de Sono: era lisa e de cor mostarda. Muito estranho, pensei. Mas com aquela confusão toda, nem me importava mais com nada. Abri a primeira página e, abismado, conferi o título: O Ginógrafo.




Carlucho
Enviado por Carlucho em 23/10/2008
Reeditado em 27/10/2008
Código do texto: T1244333
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.