Aguilão

Meus olhos quase que fechavam sozinhos tanto sono que eu estava. Eu cantava alto Satisfaction junto com o rádio, para ver se não dormia ao volante. Torcia pra chegar logo a um posto de gasolina. Queria tomar um café e lavar o rosto pra ver se despertava. Minha situação era crítica e eu estava ansioso pra parar logo. Brinquei comigo mesmo contando quantos peixes havia fisgado. Agora eu percebia que se não chegasse logo ao tal posto eu teria que parar o carro e dormir um pouco pra não correr risco de sofrer um acidente. Soltei a voz no último e cantei o back vocal da música: I can get no... mas percebi que cantei sozinho: o rádio tinha saído do ar e estava sem som. Dei risada de mim mesmo pra acalmar minha ansiedade, mas logo avistei uma pequena cidade e como não me restava outra alternativa resolvi parar. Haveria que ter uma lanchonete pra fazer um lanche e me reanimar

Logo no primeiro quarteirão vi uma mocinha loira botando o lixo na rua e parei pra pedir informação. Ela se aproximou da janela do carro muito sorridente e ouviu minha pergunta com atenção, mas, para o meu espanto, com a mesma simpatia que se aproximou, se afastou e, acenando-me com a cabeça, entrou em casa. Não entendi o que havia se passado e, meio sem graça, continuei andando. Não via nenhuma placa de sinalização e resolvi seguir o fluxo dos carros que, certamente, pensei eu, iria me levar ao centro da cidade. Parei numa esquina e vi um casal saindo de uma casa e, novamente, pensei em tomar alguma informação, mas eles se despediram com um beijo e enquanto ela acenava com as mãos ele respondia acenando com a cabeça, já com o carro em movimento. Comecei a pensar que estava vivendo um dos meus sonhos surrealistas.

Logo depois, sempre seguindo o movimento, cheguei a uma praça com uma igreja que julguei ser o centro da cidade. Procurei por um bar e acabei achando um, que, estranhamente, não tinha uma placa na porta, com o nome. Pouca importância dei e fui logo perguntando ao homem que estava no balcão, um magrelo alto, pelo toalete. Com um sorriso jovial apontou com o dedo indicador a segunda porta à esquerda. Apressado fui logo lavando o rosto vigorosamente e molhei a cabeça. Senti um alívio muito grande e, após refrescar-me bem e sentir que estava menos sonolento, resolvi tomar um café e uma coca que por certo acabariam de vez com meu torpor. Sentei-me numa mesa e chamei uma garçonete que me mostrou o cardápio. Curioso é que ao fazer o pedido ela o abriu e correu o dedo nos itens indicando que eu deveria apontar o meu pedido. Enquanto era atendido vi uma televisão ligada num telejornal, mas só via a imagem. O som estava desligado. Mas a coisa ficou mesmo estranha quando numa mesa ao lado sentou-se um senhor de meia idade e abriu um jornal. Eu que acordara cedo e estava por fora dos acontecimentos tentei ler pelo menos a manchete, mas estupefato vi que o jornal estava em branco, nenhuma notícia estampada. Acabei rapidamente o meu lanche e já refeito, após acertar a conta, entrei no carro e fui procurar a saída da cidade.

Pelas ruas da cidade observei que as pessoas eram todas muito felizes. Cumprimentavam-se com um sorriso largo e acenavam as mãos para os carros que passavam. As crianças corriam por todo lado e brincavam de roda, cantando alegremente. Era uma grande algazarra e elas gritavam muito. Eu não conseguia entender patavina do que estava acontecendo. Todos felizes com a vida, mas apenas as crianças falavam e cantavam. Os adultos, apesar de sempre sorridentes, nunca diziam uma palavra sequer.

Matutando o que poderia ter acontecido àquele povo, e sem que uma placa de sinalização indicasse a saída da cidade, fiz o caminho de volta e segui meu rumo. Devia beirar o meio dia quando, enfim, vi uma placa na estrada indicando limite de município e, ao ultrapassá-la, meu rádio voltou ao ar instantaneamente. O Zé Ramalho estava no ar entoando o refrão de “Vida de Gado”: povo marcado, povo feliz.

Carlucho
Enviado por Carlucho em 23/10/2008
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