O Sonho

O Sonho

"Now she flies over clouds in twilight skies

Nothing to bind her, no one will find her this high

Far above the rainy weather

All plans have come together

And for the first time she feels just fine"*

~ "The Dream" - The Birthday Massacre.

- Alice, acorda...

Aquela voz... Aquela voz sussurrada que aos poucos foi me tirando do transe noturno. Apesar de suave, bastou dizer apenas uma única vez para que eu voltasse a consciência. A visão um pouco turva foi recuperando a nitidez, mas eu já tinha percebido que ainda estava escuro. Um rosto foi desembaçando, mas antes mesmo de reconhecê-lo, eu já sabia.

- Magdalene... que horas são?

- Não sei... Não me importa saber... Não te acordei para dizer as horas. Quero te mostrar algo. Vem!

Magdalene tinha a minha idade, embora fôssemos primas, não éramos tão parecidas. Tinha cabelos e olhos bem negros, herança de sua mãe. Eu tinha cabelos loiros e olhos castanhos.

Então, levantei e ela pegou minha mãe para me guiar até o que queria me mostrar.

- Mas o que queres me mostrar, Magdalene? - perguntei esfregando os olhos.

- Simplesmente espera. - respondeu em tom misterioso.

Ela me guiava para a sacada que dava para o nosso grande e belo jardim. As portas estavam fechadas. Então paramos, ela largou minha mão quente e pegou na maçaneta gelada e abriu. Uma leve brisa deu lugar a uma ventania fria e forte. Ela parecia gostar, de olhos fechados, sentindo o vento. Eu apertava os olhos, protegendo-os da poeira que a ventania trazia.

Os ventos foram diminuindo gradativamente até que viraram uma simples brisa novamente. Eu e ela abrimos os olhos, ela rapidamente olhou para mim. Por alguns segundos não havia me dado conta. Ela se aproximara de uma mulher que, para meu espanto, era sua mãe. Mas sua mãe já estava morta há um ano, vítima de uma fatalidade. Eu estava de olhos arregalados, mal podia acreditar no que via. Ora, eu estava no funeral daquela mulher e dei um último beijo em sua mão!

- Aproxima-te, prima! Minha mãe quer que vás conosco!

Assustada, dei um passo de recuo.

- Ir aonde?

- Ver o amanhecer... - disse com os olhos brilhando e um doce sorriso.

- Mas tua mãe...?

Então ela virou-se. Subiu no peitoril com a ajuda da mãe. E se jogou. Logo depois sua mãe. Dei um grito e corri, mas antes que eu pudesse chegar até o peitoril, as duas romperam em um vôo, Magdalene segurando a mão de sua mãe, que tinha nas costas um par de asas.

Voaram para as nuvens, em direção a aurora, que tigia cada vez mais o céu de vermelho. Voaram para longe, bem longe, como pássaros livres. Voaram docemente, bem docemente, como bolhas de sabão. Em um infinito radiante de emoções.

Estava tão pasma que não conseguia me mexer. Apenas observá-las indo embora, sumindo no horizonte.

Voltei para minha cama sem dizer uma palavra a ninguém da estranha experiência que presenciara. Mas não era preciso dizer nada. Todos logo saberiam ao acordar e olhar o jardim.

Na noite seguinte, ouço uma voz que me chamara, sussurrada no meu ouvido, eu conhecia muito bem.

- Acorda...

Mas nem precisei acordar - nem quis abrir os olhos - para saber quem me chamava e o que queria comigo.

- Deixa-me em paz, Magdalene. Ainda quero ficar aqui. Mas tu já estás morta!

* "Agora, ela voa acima das nuvens em céus sombrios / Nada a cega, ninguém a encontrará nas alturas / Longe acima do tempo chuvoso

Todos os planos se completam / E pela primeira vez ela se sente bem."

(CaosCidade Maravilhosa, 6 de novembro de 2008. Este conto pertence ao meu projeto "Contos Surreais ~ Quimera & Senso".)

Erick de Azevedo
Enviado por Erick de Azevedo em 06/11/2008
Reeditado em 06/11/2008
Código do texto: T1269622
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.