Delírios de Uma Noite

Fora há pouco tempo que ambos haviam se despedido. Um rápido ‘até logo, se cuide’, seguido por um breve beijo. Uma despedida costumeira de um casal constantemente separado pela agenda e afazeres do dia a dia. Era comum, era corriqueiro, ainda assim o peso em seu peito lhe fazia pensar que algo estava errado.

Caminhando pelas ruas com passos que seguiam largos pelas calçadas, ainda encharcadas pela chuva da manhã, ele fugia dos olhares de transeuntes alheios que misteriosamente se sentiam inclinados e olhar em sua direção. Nada havia de incomum em suas vestes ou em seu jeito, não, tudo era da mais absoluta normalidade.

Um cão, desses de rua, parou e olhou. Seus olhos tristes refletiam o pesar de sua alma. Um farejo em uma perna, depois noutra, antes do cão se sentar no chão e com olhar triste e mendicante olhar para o homem, que atormentado seguiu em frente deixando a desconsolada criatura para trás de si.

O quê teria acontecido para que seu espírito assim estivesse? Qual era o problema? Teria sido ela? Algo aconteceu a ela? Um acidente? Uma fuga? Um problema qualquer de natureza alheia? Tantas as possibilidades, tantas coisas a se pensar, tanto a se cogitar. Como fazer para escapar daquele poço?

Puxar o telefone celular do bolso e ligar, essa era a saída mais lógica e fácil para se descobrir se tudo estava bem. Uns toques e lá estava o número dela no visor, bastava apesar o grande discar luminoso que aparecia na tela, mas algo o impedia, como aquela voz invisível que nos afasta que nos faz ficar longe das más notícias, que nos preserva contra a verdade e o inegável.

Não tardou e ele chegou ao prédio onde funcionava a sua firma. Não sua firma, a firma onde ele trabalhava. A empresa pertencia a um rico que a recebera pronta de um pai mafioso, que a usava para operações de lavagem de dinheiro. Ele trabalhava nas finanças, ele sabia que era impossível para uma empresa daquele tamanho, e com um rendimento tão pouco rentável, era impossível se manter no mercado por muito tempo sem quaisquer falcatruas. Ainda assim era lá que ele trabalhava e lá onde ficava o seu santuário particular, uma área esquecida do terraço do prédio onde ele podia abrir os braços e sentir a cidade e lhe abraçar.

As cores, o vento, a forma, as pessoas. Tudo e todos estavam naquele local, porém algo lhe faltava: ela. Como poderia ele, que a tudo sentia não sentir a ela? A resposta era clara, porém lhe faltava à coragem de pronunciá-la e assumi-la. Nessas horas, quando o sentimento sobrepuja a razão, qualquer a decisão que seja sempre a de provocar um determinado comportamento, que para ele foi a ingestão em doses homéricas de todos os calmantes que ele conseguira encontrar na farmácia.

Seus olhos começavam a pesar e sua mente a divagar por entre assuntos enevoados. Ela se foi, o que ele faria? Não havia razão para ... mente... sono... sono... Ela não estava lá, mas ambos juntos eles estariam. Acorde! Muitas palavras que saiam... Acorde! Acorde! Então eu precisei fazer... “agora porra!”

O corpo fora achado no mesmo dia. Diversas testemunhas o haviam visto ser o autor dos ataques à jovem que morrera naquele dia mais cedo. Seu peito doía e suas costas ardiam, não era para menos, ele estava baleado, deitado no asfalto com o sangue a fluir por suas estranhas.

“Mas...” ele questionava antes que fosse tarde de mais, mas infelizmente já era. Ao longe o som da sirenes chegava em seus ouvidos, sem que ele nada pudesse fazer a não ser... sim, era sua única escolha, a do desespero e do medo. O fim do caminho. Sem alternativa ele pegou sua rédea e pulou, em busca de algo novo, único, incomum que nem ele saberia o que era.

Eram quase 3 da manhã quando ele acordou assustado, suado, tremendo em sua cama. Ao seu lado, ela dormia em sono profundo, ignorando o estado febril em que o marido se encontrava. Tudo um sonho. Um copo de água e um calmante, dois amigos que o ajudariam a passar o resto daquela noite, onde as histórias se desenrolariam e sua vida condensaria antes da verdadeira aurora brotar.