A Perversidade do nosso Cotidiano

Certa noite, ao deitar-me para dormir, senti subitamente um cansaço em meu corpo, e cai na cama tomado por um êxtase estranho. Senti conscientemente que dormia, porém que ao mesmo tempo, eu estava semi-acordado. Pude ver de olhos fechados dois corpos sem rostos, como se fossem sombras, saindo de meu corpo. Minha mente podia segui-los aonde eles iam, e eu sentia que eles já sabiam disso, mas não ligavam para tal fato.

Num piscar de olhos, os dois vultos estavam vestidos de palhaços, mas com máscaras de um tom assombroso e horripilante. Eles estavam com mochilas, e minha visão onírica pode ver o que havia naquelas mochilas: havia quatro armas, muita munição, e capuzes.

Eles entraram numa escola particular já atirando na moça da portaria. O barulho do disparo ecoou por todos os corredores da escola. O caos e o alvoroço estavam se instalando. Todos corriam pelos corredores amedrontados, enquanto os dois vultos vestidos de palhaços matavam rindo e dando gargalhadas de prazer contra todos os que surgiam pelo caminho. Já havia, pelo que eu percebia, trinta e cinco corpos caídos ao longo da escola. Eles entraram em uma sala de aula, muitos alunos ainda permaneciam lá, escondidos, esperando talvez o pior acabar. Os dois se trancaram com todos aqueles alunos, e mataram a sangue frio quatro jovens e uma garota. Depois, pediram para um dos alunos tirar as calças, e estuprar a garota assassinada. Ele chorava, se tremia todo, sua adrenalina estava a mil. Ele recusou-se a fazer tal coisa. Um dos dois chegou perto do jovem, enfiou uma pistola na boca dele e exigiu, caso quisesse continuar vivo, exigiu que o rapaz estuprasse a vítima. Ele vagarosamente baixou as calças, todo trêmulo, envergonhado, suando feito um porco no matadouro, e enfiou o pênis na vagina do cadáver da jovem. O palhaço exigiu que enfiasse com força, com muita força, e que na hora de ejacular, assim o fizesse nos lábios da garota morta. Todos os que ali estavam viam tudo, a maioria chorava, algumas jovens desmaiaram, outros rezavam o Pai-Nosso.

Depois o palhaço mandou o garoto se vestir, e pediu pra todos ir e encostar os rostos contra a lousa da sala. Todos assim o fizeram. Eles tiraram as mochilas, e enfiaram capuzes no rosto de cada um dos alunos. Nenhum deles viu nada, só o sentido da audição permitia alguma modificação no ambiente.

Eles não viram quando um dos palhaços saiu da sala, foi até os corredores, examinou bem os corpos, e ouvindo o barulho das sirenes da polícia, arrastou dois corpos até a sala onde os outros estavam aprisionados. Os dois corpos haviam levado um único tiro na cabeça, e não havia manchas de sangue no chão enquanto eles estavam sendo puxados. O palhaço entrou com os corpos dos dois garotos na sala e gritou bem alto:

_ Ninguém se mexe, todo mundo parado. Se alguém mexer um só fio de cabelo, eu vou atirar pra matar.

As portas da sala estavam trancadas por dentro, e as janelas também. De alguma forma, os assassinos possuíam uma cópia da chave daquela específica sala. A polícia, com um megafone, exigia a rendição dos bandidos, e dizia que iria invadir a sala. Respondeu o palhaço rindo:

_ Vai seu policial de merda, vem e invade, e você vai matar todos nós aqui. Estamos com explosivos C-4 aqui, e se alguém entrar, eu detono este lugar, e tudo vai pelos ares seu merdinha fardado. Então cala a boca, e siga minhas orientações: daqui a 15 minutos vamos soltar os reféns, sãos e salvos, e só pedimos que o município traga já algum defensor público para nós. Esta é a nossa única exigência. Vocês têm 15 minutos pra isso. Adeus.

Os dois vultos vestidos de palhaços tiraram as roupas dos dois jovens mortos, vestiram-nas como alunos, colocaram as roupas de palhaço e as máscaras nos corpos dos alunos mortos com um tiro na cabeça, e enfiaram um capuz cada um igualzinho ao que todos estavam. Depois de uns cinco minutos, eles passaram todas as armas e as roupas de palhaços nas mãos dos jovens mortos para deixar suas digitais nas armas dos crimes. Em seguida, olharam para dois corpos caídos ao chão e disparam. O som dos disparos trovejou fortemente em toda na escola. Eles rapidamente pegaram as armas e colocaram nas mãos dos rapazes mortos para fingir que eles eram os assassinos, e que depois de tudo tinham se matado.

A polícia entrou com tudo depois de ouvir os disparos, e encontraram o restante dos estudantes encapuzados e encostados na lousa, só não sabiam que os verdadeiros assassinos também se passavam por estudantes seqüestrados. Eles tiraram todos os estudantes da sala, e viram dois corpos vestidos de palhaços ao chão, cada um segurava uma pistola, cada um tinha um tiro na cabeça e vestígios de pólvora nas mãos e impressões digitais na cópia da chave da sala, nas armas, nas mochilas, nas roupas e nas máscaras. Enfim, ali estavam os verdadeiros criminosos, dois alunos que tiravam notas baixas, provocavam brigas na escola, foram expulsos várias vezes da sala de aula por professores devido a comportamentos de indisciplina, eram filhos de pais divorciados, enfim, tinham todo o perfil psicológico para explicar toda aquela loucura e matança. Assim pensavam os policiais e investigadores.

Enquanto isso, as duas vítimas encapuzadas, foram até o banheiro, e tirando seus capuzes, se entreolharam e se viraram para o espelho. Eles riram, e eu senti como se dois seres tentassem invadir o meu corpo, e penetrassem em meu mundo onírico.

Acordei suado, transpirando ilogismos, dúvidas e medo. E havia metáforas, silogismos, axiomas e metomínias até em meus dedos e nos objetos de meu quarto. Estava ainda com febre. Será que realmente estou acordado? Quem eram aqueles dois seres de rostos disformes? A Realidade do Irreal? Ou a Irrealidade do Real?Eu juro que não sei mais quem nós(eu) somos...

Gilliard Alves

“Será que fui eu quem fez tudo isso? Foi o movimento do meu Eu que ordenou isso, como coordenou o movimento de um corpo? Serei apenas uma gota dessa energia orgânica?

Nosso rosto é ainda nossa melhor máscara. E quantas outras máscaras não se esconderão por trás desta máscara que envolve nossas faces?”

(Nietzsche)

Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos,

Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,

Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isto se passou,

E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo,

Deus tenha piedade de mim que a não tive a ninguém! (Álvaro de Campos)