O personagem

Noite fria muito fria. Acendo um cigarro para aquecer a alma. Sinto-me consumido pela fumaça que sai de minha boca.

Confesso que não tenho medo de morrer e encontrar no meu caminho Deus ou o diabo, não quero nenhum deles, embora, o paraíso pareça ser bem mais interessante que o inferno. Na verdade, sou apenas um personagem que se perdeu do seu criador. Ele já não sabe o que fazer comigo, em qual conto devo estar. Lembro-me que meu autor até tentou me transformar num protagonista de um romance chamado... Agora não sei o título da história.

Também, já não me importo, porque tudo que de fato realmente sei é que estou caminhando tétrico pelas ruas escuras, sem cachorros, sem polícia, sem putas, sem pedras para serem chutadas com a ponta do meu sapato.

Continuo minha caminhada, sinto os músculos fadigados. Tento repousar meu corpo num banco de uma praça. Estou sozinho, literalmente sozinho.

O cigarro está no canto da minha boca. Trago duas vezes e náuseas visitam meu organismo. Sou um personagem fracassado, meu criador não me quer. Para toda a eternidade permanecerei perdido como um náufrago numa ilha deserta.

Tudo que vejo agora é apenas a escuridão, que paulatinamente vai sendo extinta por uma claridade amarelada que se aproxima com ímpeto de meu corpo. Confuso, levanto-me, esfrego meus olhos com os nós dos meus dedos. Não acredito naquilo que vejo, um gato de feição arrogante envolvido numa luz agora esverdeada range os dentes e pula contra meu peito.

- Quem é você? – Pergunto atônito.

- Sou Leôncio. O personagem mais querido deste autor. Tenho um recado para você

- Diga logo!

- Você não vai ser personagem algum. Ficarás vagando de página em página e não encontrarás nenhuma história feita exclusivamente para você.

- Não!!! – Grito atordoado arremessando o gato no ar.

Em seguida, uma dor me faz desmaiar. Subitamente, encontro-me num túnel, pareço viajar no tempo. Meu corpo sente um peso estranho nos ossos. Não entendo o que está acontecendo comigo. Será que morrerei em definitivo? Não, não me deixe morrer assim.Ainda quero tragar meu último cigarro e preciso participar de um último conto ou romance.

Agora, vejo uma multidão, meu traje é estranho, um terno e um chapéu pretos. Não sei exatamente onde estou. Ando devagar, peço licença para as pessoas que encontro em meu caminho. No entanto, elas parecem não me entender, falam outra língua, acho que castelhano. Escuto o som de sirenes e os guardas de trânsito afastam os curiosos que rodeiam um corpo. Sim, parece que um homem foi atropelado. Ele agoniza no chão, seus olhos opacos tentam iluminar a minha solitude. Sorrio para ele... É tarde demais, está morrendo. Choro tentando não acreditar na morte deste cidadão.

Mas sei que ele está bem melhor que eu. Porque vejo que estou desamparado... Meu autor agora tem um lugar para mim. Estou solitário e contrito nas ruas de Buenos Aires.

Mayanna Davila Velame
Enviado por Mayanna Davila Velame em 26/06/2009
Reeditado em 14/04/2011
Código do texto: T1669303
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