O Príncipe da Marquise

"bom xibom, tchéblec tchublim

em francês, de le perrê de si lavê"

Brígido dormia bem. Esse sabia dormir. Durante o dia, roncava alto sobre algumas folhas de papelão fedidas. As roupas, encardidas, estavam duras de tanta sujeira. Rosto inchado, barba grisalha que cobriam a face vermelha, castigada pelo sol. Dormia e dormia, entre um gole e outro de aguardente barato, de garrafa de plástico.

Durante a noite, perambulava pelas ruas do centro da Ilha. Subia a padre Roma, infestada de puteiros, onde recolhia as bitucas de cigarro e mendigava uns trocados para comprar mais pinga. Em êxtase permanente pela bebedeira, dançava ao som cuspido dos alto-falantes distorcidos dos inferninhos da região. Sorria, rosnava algo ao ritmo da música e bebia ainda mais. Perambulando, fumando e bebendo. Falava com os outros mendigos e com algumas putas do calçadão. Não tinha mais ninguém no mundo. E só tinha um amigo: o gato da marquise.

"Ihhhhhh...espia! Quatro, um atrás do outro! Fileirinha!

É o juízo final, cambada de puto!

Vança, Tiquinha! Te aprepara do jeito que eu gosto!

Tás com pressa? Passa amanhã"

Frases desconexas, perfeitamente normais para uma pessoa com altas doses de sangue no álcool. Resmungos, tragadas e goles. Na vitrine da loja, em frente ao paredão de plasma, ele viu o sorriso do velhinho vendo um filme do Oscarito. Se emocionou com a cena. E seguiu pra ver o gato.

Um gato. Quem simbolizaria de forma mais precisa uma vida livre e boêmia que um gato? Ironicamente, os maiores amigos dos mendigos são os cães. Cães e mendigos encasacados em dias tórridos de verão: um clássico. Mas o grande amigo do mendigo da Padre Roma era um gato. Que aparecia durante a madrugada para conversar com o mendigo, mais ninguém.

"Escuita, bomxibom!

Bolha borbulha? Tens amiga, fariseu!

Aiaiai, eita filerinha! Culerinha e tié sangue,coisarada"

Grande, aquele gato. Do tamanho de um “trigue”, ele me contou. Gato estudado, sabia tudo sobre política. Deitava recostado a parede e falava durante horas suas teses malucas, enquanto brincava com suas bolas, remexia o saco, entre um cigarro e outro. Não bebia. Nem comia. Só fumava e filosofava na marquise, para deleite do bebum. Sentado sob a marquise, ele ficava ouvindo o monólogo felino com os olhos marejados, gole após gole. O chão da Conselheiro Mafra molhadinho de sereno, o relógio marcando tempo e temperatura, nenhuma alma viva na noite úmida de outono. Queria ser sabido como o gato,ter a classe do bichano, soltar baforadas com seu charme peculiar. Quando tinha lapsos de sanidade e a realidade aparecia em flashes, se arrependia do que era e tinha saudade do que fora. Mais um gole, a euforia voltava. Mas o cansaço surgia, o guarda da loja o enxotava, já era hora de voltar ao papelão encardido. O gato já não estava mais na marquise. O bicho era da noite, assim como seu fã. Caminhava sorrindo, ia dormir feliz depois de ter passado a noite com seu amigo, o único que havia restado. E a última frase do bicho não saia da sua cabeça. E foi murmurando a última frase do gato que ele se encolheu no seu leito, com um sorriso nos lábios, voz pastosa e olhos rasos d'água:

"Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas"