A vida de volta, por favor

A vida, de volta, por favor

Encontrei-a dobrada em dois, na mesa, braços cruzados, nariz enfiado no livro. Quando levantou a cabeça, pude ver-lhe os olhos e nem percebi que havia uma gota de desilusão pelo que tinha lido. Nem uma lágrima mais pousaria tão rápido no papel, quanto aquela sentida, que nem parecia humana. Aproximei-me e sentei ao seu lado. Não compreendia o peso do infortúnio que parecia suportar aquela mulher, já ida nos anos. Girei o salto do sapato no ladrilho irregular e falei desprevenido.

_Não pensei que este livro traria tantas recordações, e que tristes, me parecem.

Levantou a cabeça sem jeito, mas examinou no olhar todas as intenções que tentava ocultar. A voz era sonora e forte. Os modos de quem viu neste mundo, o que não encontrava no outro.

_Pois não, meu senhor, é que tenho que ficar assim, depois de quatro séculos. Se me pedissem para amolecer, não acreditaria. Mas o que a menina ia fazer, se não se aproveitar de uma velha ama para abandoná-la mais tarde? Dizem que a primeira onda feminista começou no século IXX, mas ouso vos assegurar que Julinha foi a responsável pelo primeiro movimento feminista no mundo! E em Verona! A menina foi pioneira em transgredir as regras. Misturou o belo no feio. Nunca me ouviu e se me ouviu, fez o que queria e não o que devia. Aliás, me fez de boba.

_Entretanto, ela cresceu à tua imagem e semelhança – tirei uma caneta do bolso e um pequeno bloco. Anotei algumas coisas, enquanto falava.

_Todavia lutou pela classe dela. Caí aqui, por acaso. Talvez porque minha linguagem é normal, como a de qualquer cristão. Nada de epitalâmio – e falava torcendo a boca, afundando os sulcos e fazendo covinha no queixo – elegia, rapsódia, essas coisas de nobres. Julieta também as tinha. Eu falava de coração aberto. Por isso, estou aqui. Quem se aventuraria nos dias atuais, proferir tais versos, disparar o linguajar poético na hora do almoço, arremessando mucos sobre o bufê? Quanto mais, nessa epidemia de gripe, os vírus se acumulariam em desespero na boca prolixa dos nobres!

_ E verdade — assenti, olhando discreto a janela que se abria numa ponta de sol. Ela prosseguia, emblemática. Tinha consigo que conhecia mais do mundo do que qualquer navegante aventureiro.

_Podeis imaginar o Conde Páris, falando ao celular, usando verso alexandrino? Qual vivente ia suportar tal palavreado? Eu, ao contrário, respeitam o que digo.

_Parece que aprendeste a língua dos nobres.

_É claro, meu senhor, pois de bibliotecária à freira, e de freira à ama, passei por todas as culturas. E depois, vindo a esta nação dos trópicos, qual a língua que tem mais valor do que a dos magistrados. Longa vida às CPIs!

_Sei, sei, já me contaste isso um milhão de vezes. Mas Julieta, em sua beleza, seria uma perfeita top model, por exemplo — provoquei .

_ Creio que não, meu senhor. Veja a cena: a menina, arfante, ao lado do seu amado, mastigando monossílabos amorosos no aparelho de dentes, ah, porque neste mundo de loucos, não há quem não use celular, não aplique aparelho dentário e abuse da Internet. Estas coisas modernas!

_Seria terrível. Nada romântico — pontuei desolado. Tive a impressão que o homem de branco atravessou a sala, mas foi só impressão: estávamos sós, naquela cela fria. E ela nem percebia minhas conjecturas.

_Temos a Senhora Capuleto, mandando email para filha, em soneto Petrarca! Que desastre!

_Pensando bem, tens razão.

_Pois não tenho? Haveis de assentir que sou a pessoa indicada para adentrar nestes tempos presentes e aceitar o que se passa. Não vejo qual de meus contemporâneos teria o dom de camaleão, como eu. Bem sabeis, que posso me virar dum jeito ou do outro. Posso entender o que se passa no senado, na câmara, nos grandes duelos mundiais. Já imaginastes o quanto vi, não? Nada do que acontece hoje em dia, me impressiona.

_Disso não tenho dúvidas, mas uma coisa, não podes esconder de mim. Vi uma lágrima no teu olho. Ainda sofres pela pequena – incitei-a, maldoso.

_Naturalmente, pois eu a induzi ao encontro com o amado. Para ela, a morte significava o rompimento com maneira passiva de agir e pensar. No nosso tempo, a mulher não se dava a esses luxos! Entretanto, ela não foi companheira.

_Como assim?

_Sois bem lento, não? Já não te disse que a menina lutava pelas mulheres, para que elas tivessem o seu papel no mundo.

_Papo furado.

_Ninguém acredita. Tanto tempo passado e ninguém ainda acredita. Não é nada surpreendente aos seus conterrâneos, também não acreditaram na odisseia do trono. Há mais de 30 anos que o rei faz o que faz e somente agora é que se deram conta. Mas deixa pra lá.

_ Falas do Senado?

Escondeu um sorriso irônico e prosseguiu, na defensiva. Larguei a caneta e cruzei os braços, intrigado. Ela prosseguiu, enfática.

_Eu era uma delas, estava lá, precisava de uma companheira, alguém que lutasse pelos meus direitos também, que levantasse a bandeira das amas, das criadas, mas ela só pensou nas mulheres de sua estirpe. Uma nobre! – faz uma pausa e suspira — Afinal, até a Sra. Capuleto confirmava que sempre fui uma criada confiável, confidente e amiga. Julinha devia me agradecer, mas qual, se afastou de mim, irritada com meu zelo.

_Estás certa que foi por isso?

_Sim, para mim, ela se mostrava inteira, seus sentimentos à flor da pele, seus desejos mais íntimos. Houve um tempo em que ela seguiu outro caminho, que renegou meus conselhos. Nós éramos diferentes. Cada um que lutasse na sua própria classe.

_Mas ela tinha consciência disso?

_E eu tinha? Só muito intimamente, porém meu coração dizia o que era certo e o que era errado. Pelo menos, o que era conveniente para o momento. Ou para a situação. Ela foi boba. Por isso, não escapou do destino. Nenhum deles. Eu sim.

_Quer dizer que o que te salvou foi a língua.

_Foi o que sempre disseram. Que eu tinha língua grande. O amigo do Sr. Romeu, me chamava de alcoviteira e o Sr. Capuleto, certa vez, pôs-me a alcunha de “dona prudência”, puro escárnio. Disse-me bem assim: “guardai na boca a língua sabe-tudo. Ide ensinar vossas comadres”

_Me refiro à maneira de falares — confirmei num meio sorriso.

_Não sei. Agora que me deito neste livro, percebo que o bardo foi bondoso comigo. Quis me salvar, por isso, me purificou com o verso branco. Acho que o bardo me livrou dessa.

_Mas e depois?

_Depois nada. Figuração pura! Além disso, quem poderia querer prêmio maior. Alguém cujo nome quase não fora pronunciado! O Cavalheiro sabe o nome de algum lixeiro, coveiro, camareira ou coisa do gênero? Somos tão invisíveis quanto a poeira dos poderes! Ela encobre tudo e ninguém a vê!

Tentei falar alguma coisa, mas ela interrompeu, rápida: “Ama. Alguém que é só Ama pode querer alguma coisa mais da vida? Eu sou tão secundária que nem perceberam o meu desaparecimento!”

_Mas e daí? Que poderias mudar na trama?

_Na verdade, não sei o que mudaria, mas sei o que ainda posso fazer.

_Por exemplo?

_Que quereis que eu diga, num mundo no qual as pessoas continuam tão intolerantes quanto antes. Em todo o caso, em vosso país, ainda ama, não passo de ama dos livros – mais um silêncio proposital, um muxoxo e uma explicação rápida — que fazer se não apenas zelar pelos livros, já que não posso decidir seu destino? Num país em que os professores são iletrados, a bibliotecária não passa de uma ama, que serve para cuidar, guardar e empilhar no lugar certo.

_E que pretendes fazer?

_Até agora, nada. Mas como Julieta, quem sabe lutar pela classe. Fica difícil, pensar sozinha.

Pretendia pedir-lhe silêncio. Não era bom ser tão enfática na política, pois quando o fazia, o homem de branco se aproximava, e trazia consigo uma infinidade de medicamentos. Melhor não arriscar. Então, dourei a pílula: _Pelo que me consta, ela agiu intuitivamente, preocupada com o coração, apenas.

_E deu no que deu. Caso pensasse mais longe, teria frutos melhores. Mas deixemos a ovelhinha no lugar que lhe cabe. Nunca deixei de amá-la, afinal eu a criei como filha! Quanto a mim, quero mais é apreender os novos rumos.

_Achas que pode dar certo?

_Se não der, um litro de silicone em cada mama, resolve.

Fiquei quieto, me eximindo de emitir opinião. Aproximei-me e a vi no contorno da cortina. Da vidraça do postigo, observava seus olhos argutos, assinalando alguma coisa obscura na mente. De repente, voltou-se e prosseguiu, eufórica.

_Se voltar algum dia, me chamem apenas de Angélica. Depois dessa, acho que mereço, né? Se ele assim designou, que o use.

_Não temes ofendê-lo com teus resmungos?

_Se me criou com este caráter, sabe-o muito bem como aguentar-me. De todo modo, convém me manter neutra e seguir a vida.

Antecipo-me em perguntar-lhe se não considera a hipótese de voltar ao passado. Não responde. Fica pensativa, olhando o nada. Em seguida, levanta-se, larga o livro, pega o chapéu e ensaia alguns passos em direção à porta. Volta-se e pergunta: “Não achais perigoso?”

Fiquei quieto. Seria mais sensato não responder. Ela se afastou, então balbuciei baixinho: “Morrer duas vezes, é indigno. Que seja apenas um Romeu dos trópicos”.

A porta se fechou e a janela foi ficando bem maior, mostrando um horizonte amplo, variado. Pela porta, espiava um baile à fantasia, uma avalanche de Marcos Polo, Napoleão Bonaparte, Cleópatra, Helena de Troia e tantos mais. Não vi nenhum brasileiro, apenas o homem de branco que pretendia acabar com a festa. Aproximou-se de minha mesa, puxou-me com cuidado a cabeça que estava enfiada no livro e olhou-me nos olhos dos quais não perceberia uma gota de desilusão do que havia lido. Acho que queria perguntar-me pela Ama. Só voltei-me quando repetiu amiúde: Romeu, Romeu...

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 10/11/2009
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