As Faces Noturnas de um Homem
 
    
A cidade. A noite cobre com seus tons o relevo urbano.
     Luzes. Luzes reais, luzes virtuais. Pontos de claridade entrecortados pela natural escuridão.
     Tantos prédios, tantos seres. Mas os olhos captam um quadro unitário. Um bar, um homem.
     Tudo se cobre em cor de noite. Um único ponto iluminado, um bar adornado em luzes amareladas.
     Como é amarga a alegria do homem que brinda com o copo, num gesto jogado ao ar, para depois engolir, numa atitude desesperada, o líquido ríspido. Como se aquilo fosse um néctar para curar feridas. Mas isso é mera ilusão, pois, em verdade, é o ácido que escancara os tecidos.
     É tarde para fugir das consequências. Pensamentos atordoados fazem um cerco sobre sua lucidez.
     Começa a falar alto, como se as palavras pronunciadas fossem capazes de assassinar os incômodos pensamentos, mergulhados entre a realidade e a ilusão.
     O bar está vazio. O bar poderia estar cheio, de nada adiantaria. A solidão daquele homem está por demais internificada. Todo um conjunto de carências vem à tona.
     O corpo, que parecia ter afundado em águas profundas, volta a boiar na superfície, determinando um estado incômodo.
     Sente-se abandonado. Tenta encontrar aconchego no frio desenho da arquitetura do bar.
     Olhos secos que represam o desejo de lágrimas correm de modo apático. É como vingar-se do desprezo...criando um falso desprezo.
     É bom, assim como é horrível estar naquele lugar. A lucidez desmantela-se em meio a sensações conflitivas. Está confuso, sente-se num labirinto, perde-se em meio a lacunas cerebrais.
     Definha em vida, parece aproximar-se em alta velocidade da morte. De certo modo te vontade de abraçá-la, mas, por uma estranha razão, cada vez que está a um triz, foge desesperadamente. É uma vontade de morrer fugindo da morte. Seria isso resultado de suas carências? Seria o princípio da loucura? Tortura-se com questões existenciais.
     Instala-se uma armadura no peito e esta muta-se em ave que bate o corpo contra as paredes de seu cárcere. Sente-se cada vez mais aprisionado. Não consegue encontrar aconchego algum entre os móveis do velho estabelecimento. Surge como uma necessidade vital o desejo de ir embora. Se num primeiro momento tentou defender-se, agora opta por fugir.
     O olhar ganha a rua. Repentinamente, outras luzes da cidade aparecem.
     A rua ganha o corpo. Uma ave sai de sua prisão num vôo capenga e logo vai ao chão.     Está impossibilitada de voar.
     Passos indecisos pisam a rua. Grita palavras de amor e de ódio. Tropeça em seu raciocínio alcoolizado que ora o justifica, ora o condena.
     Não há júri algum, mas acaba sentindo-se culpado ante tudo e todos.
     Todos são melhores do que ele. Não há como fugir da sensação de inferioridade ante todos os outros viventes. E nesse momento, sente-se covarde.
     Para, por um instante, de fugir. Tem agora uma insana vontade de agredir.
     Tenta utilizar os músculos, mas sente-se impotente.
     Adota novamente a fuga, mas já não se sente covarde. Auto-analisa-se e conclui estar ridículo. E nessa conclusão consegue confraternizar-se com o mundo. É agora um ridículo entre tantos.
     Dele toma conta uma sensação de estar seguro. Consegue até desprezar de forma real tudo aquilo que parece desprezá-lo.
     Pouco a pouco ganha uma estranha lucidez, e acompanha isso um passo dispersivo.      Adotou a condição de marginal e isso lhe dá forças.
     Situação crítica, pois, se o cérebro volta de uma atordoada viagem aos abismos humanos, o corpo ainda está subjugado a um completo estado alcoólico.
     Tem, agora, uma dúvida muito mais simples: é ele quem está girando, ou é o mundo que gira em torno dele? Não há resposta, mas de qualquer maneira, é preciso andar mais devagar, pois as pernas parecem que vão entrar em curto a qualquer momento.
     Caminha sem para, observando tudo. Em dado momento, fixa-se num beco, onde o lixo mostra-se abundante. Tem a impressão de que seus sonhos estão jogados ali.
     Está num completo estado de latência. Não se vê ameaçado por mais nada, está tão bêbado que fugiu completamente de seus medos.
     Tenta buscar lembranças agradáveis. Isso lhe prazer, a ponto de esboçar uma tentativa de sorriso. Não dá em nada. Formou-se sobre os sentimentos uma espessa crosta de calos que o protege se sentir emoções que novamente o levem a conviver com sua inferioridade.
     Madrugada avança no tempo. Os bares fecham suas portas como se fossem pálpebras cansadas. Novamente sente-se abandonado. Nesse momento vem lembrança de amores encontrados e perdidos no transcorrer da vida.
     Tenta ficar indiferente, mas não consegue. Solidão bate à porta. Seu peso cai sobre suas costas. O pouco de controle que tenta conseguir dissipa-se por completo. As pernas cambaleiam, as forças desaparecem. Perde o equilíbrio, e para não cair abraça-se a um poste. Sente uma profunda relação fraternal com aquela estrutura de cimento, de modo que acaba confessando àquele ser imóvel toda a sua amargura.
     Novamente o raciocínio desperta. Sente-se completamente miserável. Quer fugir daquela situação.
     Nesse momento que vê passar em sua direção um gato que parece fugir da morte.    Desperta dentro de si uma criança que há muito estava dormente. Corre e tenta pegar o bicho para acariciá-lo, mas não consegue. Os felinos vivem fugindo das coisas e nisso sente uma certa identidade.
     O corpo é agora algo completamente supérfluo. Abrigá-lo é demais, não tem mais forças para manter-se em pé. Assim, antes que caia, opta por acomodar suas nádegas à sarjeta.
     É nesse momento que um cão vadio vem ao seu encontro, todo alegre e festeiro, quebrando o rabo de um lado para o outro.
      Nova identidade, agora naquele olhar canino. É como um espelho que reflete sua face. Os cães são grandes camaradas. Eles não interrogam, não pedem curriculum e estão sempre prontos para aceitar alguém, desde que esse alguém os aceite. Uma teoria, porém honesta.
     O miserável animal parece compreendê-lo. É como se emanasse dele uma profunda compaixão. E isso acaba por tocar seus sentimentos. Lembra que ainda tem capacidade de gostar e acaba abraçando aquele ser canino.
     Arrumou um companheiro, está seguro novamente. Sente alegria e convulsivamente ganha forças para levantar e girar como se fosse o centro das atenções. Mas isso é apenas um milésimo de segundo, pois logo se envergonha, adotando novamente sua timidez habitual.
     Condena-se de novo. Está ridículo e quer se esconder. Para isso cobre o rosto com as mãos como se estas fossem uma máscara.
     Escorrem algumas lágrimas. Não tem vontade de chorar, mas sente a necessidade de aliviar a tensão de seus músculos.
     Está muito cansado. O estado alcoólico passa rapidamente, e assim começa a surgir a necessidade de explicações, das quais ele quer fugir.
     Nesse momento tem vontade que seu coração pare. Se esse desejo é falso ou verdadeiro, não importa, pois a máquina cardíaca não para.
     Desânimo. A garganta joga à boca palavras que ele quer gritar, mas acabam por morrer em seus lábios semi-abertos.
     A aurora dá seus primeiros sinais. De relance ele olha para o cão que está deitado ao seu lado e o convida para acompanhá-lo. Este, sem pestanejar, topa a parada.
     Vão embora. Caminham em direção a um horizonte vazio, desprovido de relevo, onde apenas seus corpos e o nascer da aurora como pano de fundo são observáveis.
     São dois vultos a caminhar, cada vez mais para longe, dando a impressão de que o homem vira cão e o cão vira homem. Essas mutações processam-se continuamente e, assim, delineiam o quadro final.
     Quem pode saber quem é quem? Seriam o mesmo ser? Quem sabe...? Quem poderia saber?
     O primeiro pássaro a levantar voo nessa aurora é aquele cujo voo noturno frustrou-se. É a amargura fugindo de seu cárcere para o céu tingido dos prenúncios do novo dia. 
 
Gilberto Brandão Marcon
Enviado por Gilberto Brandão Marcon em 15/11/2009
Código do texto: T1924215
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