O FÉRETRO

Se fantasma existe?...O´xente, existe sim!... E de vários tipos.

Lá na minha terrinha eu mesmo vi um bem de perto e nunca mais quero ver outro parecido. Foi no enterro de um comerciante que morreu esfaqueado ao fazer a cobrança de um fiado. Era muito benquisto na cidade e o velório foi movimentado; a família se descabelando, a esposa, os filhos, genros e noras e os netos, todos de luto fechado, chorando muito, às vezes chorando alto, todos vestidos de preto, inconsoláveis. Os amigos chegavam cerimoniosos, se de chapéu, com os chapéus no peito, cumprimentavam os familiares e se revezavam nas perorações elogiosas ao defunto. As mulheres da vizinhança se esmeraram para não faltar água, café, biscoitos e rezas na sala de jantar onde sobre uma mesa estava o esquife aberto, coberto de coroas de flores lilases e brancas. O calor, as velas acesas e o cheiro das flores naquela sala faziam a atmosfera irrespirável. Duas das pessoas que apinhavam as janelas abertas chegaram a desmaiar. Na hora marcada o féretro saiu da residência em direção à igreja para a missa de corpo presente e tudo transcorria como normalmente ocorre nessas cerimônias fúnebres: O padre rezava em latim e a voz parecia emitida por uma garganta de lata; as rezas dos parentes e amigos do defunto pareciam cochicho. O sino grave batia compassado, soturno e monótono. Aqui e ali se ouvia um choro incontido.

Todos vestindo roupas escuras, concentrados na cerimônia não perceberam que pela porta da frente da igreja entrou uma mulher muito alta, quase três metros, esquálida, vestida de noiva e com o véu branco cobria os cabelos e parte do rosto. Em uma mão trazia um terço muito comprido, de contas pretas, e na outra um buquê de flores roxas.

Permaneceu em pé e imóvel junto à escada que dá acesso ao mezanino do coro, que estava silencioso e vazio. Quando o sino começou a bater mais forte e a missa encaminhava-se para o final, deu cinco passos à frente andando muito ereta e deixou o buquê de flores sobre o último banco da igreja. Desapareceu atrás de uma grossa coluna, impassível e silenciosa como chegara.

Em seguida seis homens mais fortes adiantaram-se e pegaram o caixão já fechado, pelas alças. Houve choro convulsivo de algumas pessoas e todos se dirigiram em cortejo para a porta de saída. Nesse momento um raio clareou os vitrais e um único trovão explodiu sobre a igreja. O padre assustou-se, arregalou os olhos claros atrás dos óculos de aros pretos, e se benzeu.

No dia anterior havia chovido muito, as ruas não eram pavimentadas e havia muito barro nos novecentos metros que separam a igreja do cemitério. Seria um cortejo penoso para todos e principalmente para os amigos que se revezariam para carregar nos braços o caixão de imbuia escura, por si só muito pesado. O barro vermelho grudado aos sapatos nos trechos lamacentos faria aquela marcha fúnebre extenuante e interminável.

Na escadaria da igreja todos perscrutaram as nuvens e os relógios e conversaram baixo e respeitosamente. Pelas nuvens escuras não era recomendável prosseguir, mas pelos relógios era imperativo prosseguirem. A tarde já esmaecia e as andorinhas logo mais revoariam buscando abrigo na torre da igreja.

Não chovia e o enterro prosseguiu sob as nuvens pesadas, grave e silenciosamente. O entardecer com o canto distante dos quero-queros e das fogo-pagôs, nas pequenas cidades é naturalmente de uma monotonia enorme. Hoje a cidade vivia uma tristeza imensa.

Por onde passava mais pessoas engrossavam o cortejo que já era longo desde o início. Aos poucos se iniciaram as rezas e a multidão caminha pesarosa, contrita e determinada. Pouco tempo à frente cai uma chuva grossa e tudo continua como vinha. Quase anoitecendo, faltando percorrer os últimos cem metros para o cemitério, ao rumor das preces sobrepõe-se um ruído que embora muito mais alto, parecia o barulho das máquinas de costura. Troveja forte, a multidão se cala e aperta o passo. E lá vem ela.

Do nada, da direção do cemitério, do tamanho da boca de um tonel, surge uma bola branca se desfazendo em véus a percorrer os fios entre os postes de eletricidade que transpunha aos saltos dando gritos estridentes. Passa em frente a um terreno baldio e assusta o bando de anus brancos acomodado nos pés de mamonas. Há uma revoada. Aos gritos dela assomam-se o canto desesperado das aves e os gritos da multidão. Ela salta sobre os fios, grita, roda e rodopia até o poste que se encontra em frente ao ataúde. Desce pela hélice comprida dos véus brancos esvoaçantes como se fosse um pé-de-vento. Fica a dar voltas rapidíssimas em torno do caixão emitindo sons estranhos: zum zum zumzumzum quiáaaa, zum zum zumzumzum quiáaaaa...

A multidão totalmente aturdida, apavorada ouve o estrondo e vê o clarão em que a bola branca desapareceu deixando sobre o caixão o terço de contas pretas, um atestado de óbito e um cheque preenchido.