FANTASMA BONDOSO

FANTASMA BONDOSO

José há vários anos aposentara-se pelo Ministério da Saúde. Fora desde muito moço premiado com uma deficiência visual que em nada o prejudicava desde que usasse os óculos que, sucessivamente, os médicos lhe prescreviam. De tempos em tempos tinha que fazer uma visitinha ao seu médico para a prescrição de novas lentes. Assim foi sua vida inteira, desde seus dezesseis ou dezessete anos de idade. Mas isso não o incomodava, nem era tão oneroso, posto que essa despesa, além de necessária, era útil. Gostava de ler e, de vez em quando, escrevia alguma coisa sobre temas que lhe viessem à telha. Para isso precisava enxergar bem e, para enxergar, precisava de lentes de correção. Agora que se aposentara, suas aptidões para o manejo das letras, mais e mais se pronunciava, tomando forma... e necessidade, pois José era daqueles que não podiam ficar só no ócio. A idade e alguma doença havida, como por acidente de percurso, foram impedindo, paulatinamente, suas lides na horta que, desde tempos imemoriais, limpava de ervas daninhas e replantava com novas hortaliças. Ao mesmo tempo, já não lhe eram permitidas as “peladas” de atleta dos fins de semana. Isso tudo motivava a leitura e a escrita... e tudo ia bem, obrigado!

Sua primeira decepção com a visão foi quando, já com sessenta e oito anos, foi renovar sua carta de motorista. Como tinha muitas dificuldades de caminhar longas distâncias, suas pernas eram o seu fusca e com ele tudo resolvia quando precisasse de alguma coisa no centro da cidade. Mas agora sem a carteira de motorista, dependia de alguma alma caridosa dos filhos ou netos que, no intervalo do trabalho deles, lhe servissem de motorista. O fantasma da visão tomara formas reais e proporcionais às suas necessidades.

Foi ao oftalmologista credenciado pelo seu plano de saúde para que lhe prescrevesse novas lentes e, assim, recuperar o documento que o autorizasse a utilizar seu carro sem a “blitsfobia”. E foi o oftalmologista que lhe deu a má notícia:

– Seu José, você está com um leve processo degenerativo nos olhos. Vou lhe dar uma carta para o Dr. Luciano. Ele é especialista para isso.

– Vou ficar cego, Doutor?

– Não tenha receio. Essa doença não cega, mas não adianta receitar lentes mais fortes. Neste estágio você está no limite do seu grau.

E lá foi o pobre homem. Estava começando uma maratona de peregrinação por diversos especialistas no ramo. Logo ao chegar em sua casa, agendou a consulta com o Dr. Luciano. No dia marcado foi ao consultório. Bastante concorrido, como também o era o consultório do seu primeiro médico. Esperou sua vez de ser atendido, entregou o documento que o encaminhava e ouviu do médico novo encaminhamento para um terceiro especialista para fazer alguns exames. Todas as despesas eram cobertas pelo plano de saúde que José pagava já há longos anos, como, aliás, todas as outras, incluindo cirurgia e internamento hospitalar, se necessário fosse, menos farmácia.

Nesse terceiro especialista, também um moço recém saído das fraldas da universidade, José passou novamente por vários aparelhos e, por fim, o médico preencheu diversas folhas com dizeres técnicos, dos quais ele nada entendeu. Levou a pasta com os resultados dos exames de volta para o Dr. Luciano e ele, lendo-os, afirmou que era mesmo um processo de degeneração e que iria começar um longo tratamento para ver se conseguia reverter o atual quadro clínico.

José foi para casa com a cuca cheia de minhocas. O fato de que nenhum deles se animasse a prescrever novas lentes, queria dizer o que? Deduziu o óbvio: queria dizer que pelo menos até o fim desse tratamento prescrito pelo Dr. Luciano e sua recuperação (se a houvesse), ele teria que dar adeus ao volante. Isso quereria dizer que, daquela época em diante, dependeria dos filhos e netos, deslocando-se a qualquer parte, quando esses tivessem tempo.

Mas José era um cara vivido e teimoso o suficiente para não se sujeitar à primeira opinião que lhe formulassem. Pensou muito na atitude a ser tomada. Conversou com colegas de serviço, também já aposentados. Dessas conversas surgiu uma luz – deveria ouvir uma terceira opinião. Lembrou de um médico de muito boa fama no ramo da oftalmologia, que trabalhara na mesma Instituição há anos passados. Eram amigos de longa data e já trabalhara no plano de saúde dele. Falou com ele pelo telefone e recebeu o convite do médico para visitá-lo em seu consultório, no fim da tarde, menos nesse e naquele dia, pelo fato de estar em cirurgia nos dias tais e tais.

Todas as poltronas ocupadas na sala de espera do consultório, sinal da boa aceitação do profissional. Ótimo. José sentou-se lá no cantinho, onde viu vagar um lugar e esperou. Esperou durante mais de uma hora. Já estava ficando escuro. Afinal, nem reclamar podia, pois seu amigo lhe dissera para “fazer-lhe uma visita” e nada lhe cobraria da consulta. Ficaria por conta dos longos anos de amizade. Finalmente o último cliente foi atendido. O médico, vindo à porta, chamou-o.

– Cansou de esperar?

– Não – disse José, querendo ser gentil com o amigo.

Conversaram uns instantes como verdadeiros amigos que se encontram depois de um longo tempo e, por fim, foram aos exames. José levara a pasta com os resultados dos exames a que fora submetido no outro consultório, mas nada mostrou ao médico antes de ser examinado. Sério e calado, o amigo tomava nota numa planilha sobre a mesa, enquanto migravam de um aparelho para outro. Concluídos estes novos exames, foi informado que era coisa da idade. As “cataratas“ estavam invadindo sua visão. Sem nada dizer, apresentou ao amigo a pasta dos exames anteriores. Quando o médico terminou a leitura, José olhou firme nos olhos do amigo e perguntou:

– Viu alguma coisa disso nos meus olhos?

O médico mexeu em cima da mesa como se procurasse alguma coisa, calando. Se fizesse algum comentário certamente feriria a ética profissional.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 21/03/2010
Código do texto: T2150582
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