QUEIXAS NA FACE


     - Por que gritas tanto?
     - Porque uma das minhas obrigações é avisar ao Ser Humano quando o perigo é iminente!
     - Mas exageras, Boca.
     - Exagero? E quem é você para me criticar?
     - Sou um simples Nariz, mas estou atento a tudo que se passa próximo a mim.
     - Você é um ser asqueroso que só serve para excretar secreções, que me enojam.
     - Engano seu, estou sempre apontando para o perigo.
     - Você é um ser inoperante, apontar nada resolve!
     - Não te esqueças de que, através do odor, evito que faças uso de alimentos estragados.
     - Em troca disso eu tenho que suportar a sua constante coriza e ficar calada?
     - Lembre-se de que te mostro, juntamente com os Olhos, os alimentos apetitosos que tanto comes, e depois ainda lambes os lábios.
     - Não me venha falar daquele par de faróis inexpressivos, presas fáceis da emoção, que freqüentemente me banham com rios de lágrimas.
     - Êpa! Esse papo chegou aqui em cima e não estamos nada satisfeitos com o que estamos vendo aí embaixo!
     - Danem-se!
     - Você fala demais, Boca. O Nariz está com a razão. Estamos cheios com essa história de que o Ser Humano “come com os olhos”, e se alguém comete o pecado da gula, esse alguém é você!
     - Contentem-se com a simples função de ver, sem emitirem opiniões, porque elas são destituídas de qualquer valor, e, como dizem por aí, “a justiça é cega”.
     - A justiça não é cega, ela é preguiçosa. Nós lhes mostramos os fatos, ela demora a analisá-los e tomar as providências necessárias.
     -Isso é balela, se eu não agir nada ocorrerá! Vejam na televisão e no rádio como eu dou um verdadeiro espetáculo quando denuncio, todos acreditam no que digo!
     - A sua irresponsabilidade é tão grande que você não guarda segredo de muitas coisas que vemos e que as Orelhas escutam!
     - Não me venham colocar na história aqueles covardes que se escondem sob os cabelos!
     - Covardes? Não! Tanto você, Boca, como os Olhos necessitam da nossa ajuda.
     - A Boca pode precisar dos seus préstimos, Orelhas, no entanto, nós podemos viver sem a sua ajuda.
     - Olhos, quem é que segura os óculos quando vocês estão cansados e começam a falhar?
     - Isso é um pequeno favor!
     - E o que vocês fazem quando ouço sons agradáveis ou palavras carinhosas? Fecham-se, simplesmente!
     - Quem proporciona momentos de prazer sou eu, a Boca! Não existe no mundo algo mais agradável do que um beijo, que é executado pelos meus lábios, sob o meu comando!
     - Você gosta de dar ordens, Boca. No entanto, deveria nos dar mais atenção antes de agir!
     - A única utilidade de vocês, mais especificamente da sua região externa, é servir de instrumento para se castigar o Ser Humano quando faz alguma travessura durante a infância. Eu desempenho o mais importante trabalho na comunicação humana. Todos precisam de mim!
     - Sim, em parte é verdade. Mas os mudos também se comunicam. Muitos animais não emitem qualquer som e nem por isso deixam de se comunicarem.
     - Refiro-me à comunicação humana na sua forma oral.
     - Tudo bem, mas quantas vezes você colocou o Ser Humano em situação difícil por não seguir o nosso conselho? O mais importante antes de falar é ouvir. O silêncio muitas vezes comunica mais do que as palavras.
     Os dias passaram. A boca calou-se. Os olhos cerraram-se. O nariz deu o seu último suspiro. Os ouvidos puderam assim experimentar o inexorável silêncio absoluto, o silêncio eterno.