DEUS ME LIVRE !

Certo dia, dispus-me a visitar um ex-colega de seminário que não via há uns dez anos. Sabendo que morava na zona rural de uma cidadezinha do interior de Minas e que ficava bem distante, me propus a sair de casa às 03 h da madrugada. Preparei tudo de vésperas e me recolhi mais cedo que de costume ao leito. Despertei-me a hora prevista e em trinta minutos já me encontrava na estrada sob a fria neblina.

Quando cheguei à casa de meu velho amigo dos tempos de seminário, o dia estava clareando. Estacionei o carro à beira da estrada, no alto de uma colina e lá de cima avistei a choupana onde possivelmente se “escondia” meu ex-colega. Era uma casa não muito pequena de estilo colonial já bem deteriorada pelas intempéries. Pela chaminé saia a fumaça, possivelmente a do café da manhã, que se misturava a neblina que ainda resistia aos raios solares ainda tímidos, mas suficientes para clarearem aquela grota. Fui descendo rumo aquele buraco ladeado pelas montanhas. Descia com muito cuidado para não ser traído pelos cascalhos que insistiam em querer me derrubar naquela poeira vermelho encascalhada que possivelmente me sangraria os cotovelos e as palmas da mão. Escorregões sem fim me proporcionava aquele caminho íngreme e esburacado.

No meio da difícil descida de acesso a casa, avistei um pangaré que no meio da baquearia ressequida, procurava algo para matar lhe a fome, que era muito visível pelas ossudas costelas daquele filho de uma égua. Conseguindo escapar dos possíveis escorregões alcancei a porteira que dava acesso ao curral e à casa de estilo colonial que ficava atrás deste. Ao barulho de meus atropelos, um cachorro já carcomido pelo tempo e pela sarna e com tal magreza, que não perdia em nada para o cavalo que vira momentos antes, começou a latir anunciando, assim, minha chegada. Dava dó olhar aquele filho de uma cadela se coçando e a fraqueza que demonstrava no grande esforço que fazia para soltar seus ganidos e latidos e assim externisar sua insatisfação diante de minha presença que para ele era estranha. Em seguida, alguém, por detrás de uma das vaquinhas, que com mais três formavam o pequeno rebanho daquelas lânguidas vaquinhas de chifres escarpados, raiou com o cão e procurou ver o motivo de tal alvoroço.

Aproximou-se da porteira, sobre a qual esperava debruçado alguma alma viva responder aos meus chamados de “ô de casa!”, um senhor de cabelos grisalhos, sobre os quais se assentava um velho chapéu de palha já esfacelado pelo longo tempo de serventia cumprindo sua missão de proteger os miolos; de pele queimada pelo trabalho de sol a sol; de camisa remendada em toda parte exceto nas casas dos botões, de calça “pega frango” e uma botina “sola de pneu”. Fitei-o bem nos olhos e reconheci naquele retireiro que cumpria sua tarefa diária, o meu velho amigo dos anos de seminário com quem partilhara naqueles anos idos, os desejos e anseios de um profícuo ministério. Emocionei-me pelo reencontro e ao mesmo tempo invadiu-me a alma um profundo sentimento de dó por ver naquele ex-colega, tão dedicado aos estudos e que outrora se mostrara um brilhante aluno de filosofia, os resultados de uma vida dura de trabalho braçal: todo corcunda, carcomido pelo esforço da labuta cotidiana e desfigurado pela subnutrição.

Não tardou e ele também me reconheceu. Igualmente se emocionara e num ímpeto me abraçou com todo o entusiasmo possível faltando me beijar, demonstrando assim a alegria de rever um ex-colega de utopias. Após tão emocionante, forte e prolongado abraço, convidou-me a entrar e acompanhá-lo num gole de café, que estaria acabando de ser feito, com um bom pedaço de broa de fubá.

A caminho da porta da cozinha, foi falando-me da alegria que sentia em rever-me e de ter-me como visita. A cada passo que dávamos parava um pouco e ia falando um punhado de coisas como se não tivesse tempo suficiente para dizer tudo o que queria. Falou de sua vida após ter deixado o seminário, de seus fracassos na capital, de seus negócios mal feitos na cidade e sua fuga para roça. Chorou as mágoas de um amor não correspondido, de brigas de família e tantos problemas que lhe haviam acontecido, que Jô perante ele, era fichinha.

Ao entrarmos na cozinha, um leitãozinho saudou-nos do limiar da porta com roncadinhos amistosos. Deixando-nos entrar foi para junto de uma vara de leitãozinhos que focinhavam numa poça de lama adjacente a porta da cozinha. Meu velho amigo assim que entrou, foi logo espantando da cima da mesa uma galinha do pescoço pelado, que ali depositara o resultado do milho e de seus ciscados do dia anterior. Com a mão mesmo, ele limpou a mesa esfregando-a posteriormente na calça já embaçada que clamava por uma boa quarada. Ao fogão uma senhora de meia idade, de pele negra e com cabelos “esgadanhados” tapados por um lenço sujo que tentava cobri-los e acentuá-los, passava o café com uma das mãos enquanto a outra segurava uma criança que, com grande esforço, tentava tirar dos murchos seios da mãe alguma gota de leite para satisfazer-lhe a fome.

Meu ex-colega de “breviário” apresentou-me a mulher dizendo ser sua empregada e que minutos depois descobri que além de empregada era também companheira de carícias naquele lugar de desolação e solidão ao fim da aurora. Com ela tivera dois filhos. A mulher, com toda timidez, olhou-me por baixo com vergonha de me encarar.

Serviu-me o café numa caneca feita com uma lata de “extrato de tomate” e sobre a qual pairava uma nuvem de moscas em guerra querendo compartilhar comigo do café. Com um abanado de mão ele procurava espantá-las justificando a presença dos insetos devido ao chiqueiro adjacente a cozinha. Com o café serviu-me uma fatia de broa de fubá feita numa panela de ferro.

Após termos tomado o café, ele retirou do bolso um cigarro de palha a fim de saciar a “boca de pito” que o café produzira. Como cigarro, dava boas baforadas ao deixar escapar a fumaça por entre os vãos deixados pelos dentes ausentes na arcada dentária. Puxou novamente conversa enquanto me convidava a ver o restante da casa. Foi falando da dificuldade que era viver naquele lugar, fugindo de tudo e de todos, da desvalorização que o trabalho rural esta tendo. Disse da vontade de reformar aquela velha casa enquanto observava o assoalho tomado pelos cupins remendados com ripas de caixote de verdura. A parede já toda encardida e esburacada, sustentava um enorme quadro do Anjo da Guarda e vários recortes da gravura de São João Batista Menino que vem nas caixas de “Fogos São João”. Um pequeno terço compartilhava com as aranhas um espaço no canto da sala. Um pequeno rádio a pilha soltava rouco os anúncios da “Pharmacia São Judas”. Energia elétrica não havia e os banhos eram de caneca, pois a serpentina havia furado há uns dois anos. A cozinha estava em estado lastimável. O telhado estava sem algumas telhas que foram substituídas por latas de “óleo Heloisa”. As paredes estavam ta negras pela fuligem da madeira queimada que só retirando o reboco para acabar com o pretume. O estado da casa era lastimável e de meu amigo também.

Disse-me, que aos finais de semana, outra coisa não fazia a não ser pescar no córrego para garantir a carne do almoço de domingo. Falou das rezas do terço na capela mais próxima que distava de sua casa umas dez léguas. De suas tristezas afogadas na cachaça e da tristeza que dava em pensar que acabaria os seus dias naquele lugar desolador, longe de tudo e de todos e que ninguém haveria de lhe velar o corpo em decorrência de sua morte para, ao menos, fazer-lhe os elogios próprios de velório dirigidos ao finado. Chorando começou a dizer que ninguém saberia ao menos o seu nome. Nem mesmo os meninos que tivera com a mulher, que dizia ser sua empregada, que nem de pai o chamavam e sim de patrão. Chorou bastante a ponto de me comover. Mas em seguida enxugou as lágrimas e foi dizendo que aquela não era hora de chorar e que estava alegre com a minha visita, que ao menos eu sabia o seu nome.

Neste instante veio-me a memória a idéia de chamar-lhe pelo nome e consolá-lo, no que me assustei quando não conseguia recordar a sua “graça”. Fizera inumeráveis esforços na tentativa de recordar, mas foi tudo em vão, no que lê começou a me interrogar:

_Você sabe o meu nome, não sabe? Você sabe né?

Quando procurava uma desculpa par ame justificar ante eu esquecimento, ele colocou a mão sobre meu ombro e disse-me fitando-me os olhos:

_Não se preocupe. Eu entendo porque você não se recorda e vou dizer-lhe o por que.

Neste instante pronunciou com um tom de voz suave que foi aos poucos tomando um tom sarcástico:

_Você não se recorda porque eu sou você! Há há há há há ...

_Porque eu sou você amanhã! Há há há há há há há ...

Acordando assustado, fui logo jaculatoriando: Deus me livre!

Gleisson Melo
Enviado por Gleisson Melo em 25/04/2010
Reeditado em 16/01/2022
Código do texto: T2219249
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.