A outra.

Aquela manhã parecia igual às outras, não fosse por um perturbador detalhe.

Ela acordara no mesmo horário de sempre, pontual e metódica.

Busca os chinelos ainda sonolenta, todavia sua mente já começa a despertar para mais um dia cheio de afazeres, aqueles, rotineiros e nem sempre prazerosos que ela administra com competência militar.

Percorre o corredor sombrio ainda, mal entram os primeiros raios de sol tímidos pelas frestas da velha casa.

Pensa mais uma vez em trocar as cortinas, mas logo afasta esta idéia, tem tanto com que se preocupar...

Os fantasmas de sempre rondam a casa. Alguns tímidos, outros ousados, sentam-se à mesa junto com a sua família, passeiam no jardim.

Ela já não se incomoda com a sua presença. Até gosta. São companheiros quando a família sai para seus afazeres.

Entra no banheiro, como sempre vai para o espelho lavar o rosto, escovar os dentes.

Todavia, neste dia especial (ela nunca mais esqueceria este dia) ao olhar para o seu reflexo, sente um súbito mal estar. É um frio que sobe do ventre até os cabelos, apertando a garganta e contraindo seu coração que bate acelerado.

Tem uma estranha do outro lado do espelho que olha para ela sorrindo.

A estranha é totalmente desconhecida, nem fantasma é.

Meu Deus, pensa ela enquanto começa a gritar freneticamente.

Cai desmaiada no chão frio.

É encontrada logo pelo marido, que a acorda, muito assustado e nervoso. Correm os filhos, o pai já doente permanece na cama, poupado que é de emoções fortes.

Quando o marido pergunta o que aconteceu, ela estranhamente resolve mentir.

Anos depois estaria se perguntando por que mentiu. Não sabe.

Inventa que foi pressão baixa. Só isto, nada demais, fui dormir sem jantar ontem, lembra?

Todos acreditam.

Receosa, naquele dia não volta mais a olhar para o espelho.

No dia seguinte a cena se repete, levanta, coloca os chinelos, vai para o banheiro e olha para o espelho. Como esperava. Ela está lá. A outra. A estranha.

Assim foi durante toda a sua vida, jamais soube como estava envelhecendo, nunca viu seus cabelos ficarem brancos.

Era sempre a outra que a olhava sorrindo do espelho.

Acostumou. Tornou-se uma segunda natureza, aquela mulher.

Sua libertação só veio com a morte.

Ninguém sabia por que aquele caixão pesava tanto, sendo ela uma mulher alta, mas muito magra.

Mas ela sabia. Dentro do caixão estavam as duas.

Mas seu espírito liberto foi embora, deixou a estranha à mercê de seu destino.

Agora ela iria cuidar de sua vida.

Finalmente livre.

Jeanne Geyer
Enviado por Jeanne Geyer em 01/06/2010
Reeditado em 13/09/2015
Código do texto: T2293619
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