Bicho de estimação

O andarilho pegou aquela pulga imensa, aquela trufa gigante viva saborosa derretente, gosmenta babada pulsante, pegou do chão de asfalto churrasquento emborrachado grudante, e a trouxe até os restos do bolso ao lado de sua ex-calça. Pegou com suas mãos trêmulas de suor e cansaço, carcomidas grossas rudes empretecidas, espécie de luvas de asfalto coladas nas suas palmas, pegou e deixou que a pulga trufa de asfalto se contorcesse entre os esgarçados panos do que seria o forro de sua ex-calça, e ela se contorcendo arranjasse um jeitinho de enterrar e penetrar seu ferrão trufento no canto da virilha do andarilho, depositando seu milhão de pequeninos ovos quase microscópicos, seu caviar miserável de piche e sujeira, se espalhando entre as pernas suadas calcinadas, penetrando nos esparsos pentelhos contorcidos no saco de pano podre, na pele pobre e fraca de humanidade, na humidade asquerenta virulenta nojenta, enquanto o sol – brilhando muito além do ouro, queimando muito além do magma, penetrando muito além da paixão, castigando muito além da inquisição – o alimentava de cima para baixo, de fora para dentro, de lado a lado, de trás para frente, de frente para trás, de canto a canto, de hora a hora, de segundo a segundo, de quilometro a quilometro, de milímetro a milímetro, e o empurrava naquela imensa onda quente e abafante e incandescente, ele indo se arrastando lentamente, suavemente, grosseiramente, deslocadamente, se incrustando nas pequeninas britas pontiagudas tortuosas torturantes margeantes na estrada grande de asfalto quente, se animando com a novidade pulsante pinicante coçante lhe emprestando um tanto de vida alérgica alegre álgica azucrinante. Se tivesse uma nuvem negra enérgica assombrada, gastaria um tanto de modos e movimentos das mãos apatadas e ensaiaria um esfregar coçar acariciar torcer, movimento luxo em andarilho econômico alimentado há dias e anos por raios escaldantes de sol, bebendo do próprio suor escorrido sujo da testa e olhos e narinas, juntado nos fios grosseiros cobrindo sua boca desfeita. Mesmo se conseguisse se lembrar de algo, já não se lembraria de sua última mijada, de tão secos seus rins, suas artérias, suas veias, suas entranhas, seu cérebro quase oco e esfarinhento. A trufa cascuda pulguenta estendendo suas patas peludas por todo o seu púbis, as ondas de calor desfocando cada vez mais e mais e mais os seus contornos outrora humanos, algo se curvando ondeando, se arrastando se arrenteando se partindo se perdendo, indo indo, pulando em infinitos pedacinhos trufas, pulguinhas de asfalto espalhadas nas poeiras cinzentas mortas.