UMA ESTRANHA VISITA

     Depois de um cansativo dia de trabalho, recolhia-me ao meu leito. Todos dormiam. O silêncio noturno foi subitamente quebrado pelo toque agudo e repetido da campainha. Sentei-me na cama, olhei para o relógio e vi que já passava da meia noite. Descalço, saí com pressa para ver quem chegara àquela hora.
     Abri a porta curioso e a surpresa foi enorme ao me deparar com aquela coisa esquisita. Dei dois passos para trás, coloquei os óculos que trouxera nas mãos e o que vi à minha frente me deixou atordoado: a coisa era comprida, multiforme, tinha antenas ou laços quase tocando ao teto. Parecia mais com um rolo de arame farpado um pouco esticado. Confesso, francamente, que não gritei porque perdi a fala. Ela, não: com uma voz rouca e entrecortada, falou:
     - Boa noite!
     - Boa noite! – respondi, com certo esforço.
     - Posso entrar? – perguntou-me sem qualquer inibição.
     Minhas pernas tremiam e, sem forças suficientes para empurrá-la para fora, perguntei-lhe:
     - Quem ou o que é você?
     Ela, afobada, vejam só, deu um chute na porta e, quase gritando, disse:
     - Então não me reconhece? Era só o que me faltava! Passo o dia todo dando duro como uma escrava, sem qualquer recompensa, e você chega e diz que não sabe quem eu sou.
     - É...Realmente não sei! – respondi-lhe temeroso.
     - Pois saiba que eu trabalho com você todas as horas do dia: sou sua caligrafia – respondeu-me.
     Fiquei imóvel, perplexo, sem pestanejar. Sabia que alguma coisa teria que ser feita com urgência. No entanto, não conseguia raciocinar direito.
     - Agora posso entrar? – perguntou-me.
     Antes que respondesse, ela foi lentamente entrando na sala em direção à poltrona. O andar era desengonçado, descompassado, parecia uma centopéia claudicante, sendo seguida por três simpáticas bolinhas que, contrastando com o seu mal humor, pulavam com alegria de um lado para outro da calda. Esparramou-se na poltrona, ecoando um áspero som, como se fora uma velha catraca enferrujada, deixando alguns braços caídos lateralmente e as pernas quase tocando ao solo.
     Saindo da minha inércia, criei um pouco de coragem. Peguei uma cadeira e sentei-me a dois metros de distância, decidido a enfrentar aquela insolente visita, cara a cara.
     - Afinal, o que você quer comigo? – perguntei-lhe, demonstrando firmeza.
     - Quero fazer alguns esclarecimentos – disse-me, mais calma – e acho o momento oportuno. Primeiramente estou muito chateada com o desprezo que você vem me dando.
     - Desprezo? Eu...
     - Sim – tomou-me a palavra -, você me usa constantemente, entretanto, nada me dá como prêmio. Envergonha-se de mim e chega ao ponto, em ocasiões importantes, de substituir-me por essa pedante, essa tal de “Letra de Forma”. Ela é vulgar, artificial, sem personalidade e se deixa usar por todos.
     - Ciúme? – retruquei mais descontraído.
     - Não é ciúme – continuou o desabafo -, você não sabe o que é a dor que sente no peito uma caligrafia traída. É duro relembrar o quanto fiz por você e o que faço no dia-a-dia. Há alguns anos eu até que era bonita: mais cheia, tinha um pouco de charme e cheguei até a ser elogiada em algumas ocasiões. Mas você, com sua pressa desenfreada, conseguiu, com o passar dos anos, deformar-me totalmente.
     - Se isso de fato ocorreu, foi acidente de trabalho! – repliquei prontamente.
     - De qualquer forma o culpado foi você! – exclamou com veemência. – Eu já estou cheia de tanta humilhação. As pessoas, às vezes, olham-me, viram-me de cabeça para baixo e, em tom de deboche, ainda dizem: “Que diabo é isso?”. Como o meu problema é da coluna vertebral e dos membros, exijo que me examine e que encontre um tratamento eficaz para as minhas deformidades.
     - Tudo bem – respondi, resignado.
     Puxei a cadeira mais para frente. Sentei-me um pouco mais no meio da cadeira, para melhor examiná-la. Naquele emaranhado, eu teria que identificar primeiramente o que era coluna, braços e pernas. Sentei-me um pouco mais na ponta da cadeira e...caí. Caí da cama e acordei.


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