VERONIK - HOMEM SEXO FRÁGIL

CAPÍTULO 01

Na tela de cristal líquido com propaganda de vinho, o termômetro marca cinco graus, mas a sensação térmica está abaixo de zero. Ele encaixa as luvas levanta a gola de lã da camisa e desce as escadas da casa de cor cinza. Um bangalô do século dezenove, que destoa e muito dos prédios que parecem espremer o pequeno imóvel. Já havia uma semana que não se aventurava ir à rua. Também não era para menos, grandes quantidades de neve bloqueavam tudo ao redor e ele sentira uma necessidade muito íntima de permanecer recluso. Mas hoje o tempo ajudava.

Dali onde morava, dava para ver o rio, que antes desfilava marulhos sensuais e que agora parecia um espelho, tal a quantidade de gelo da superfície. Ao atravessar, desequilibra-se e mergulha o rosto na neve abundante da rua. Ainda estava com a cara enfiada no gelo quando sentiu a mão de alguém a puxá-lo de forma vigorosa. Virou-se, levantou os olhos e enxergou uma bela mulher que o encarava com um largo sorriso.

- Não é fácil caminhar nestes tempos de neve – Disse a moça tirando os óculos escuros, desnudando os belos olhos azuis. Os cabelos pareciam fios de ouro. Achou-se sem graça, ridículo mesmo. Levantou-se, sacudiu as roupas e agradeceu.

- Muito prazer, Veronik. Não quer me retribuir a gentileza me oferecendo uma taça de vinho – Disse a moça, deixando-o meio sem jeito. Esta era a última frase que esperava ouvir naquele momento.

- Claro – Disse quase murmurando.

- Ótimo, meu carro ta logo ali, conheço uma casa de vinhos a uns quinze minutos daqui. Já caminhava para o carro quando foi surpreendido mais uma vez.

- Você costuma aceitar carona de estranhas?

- Acho que não tenho muita escolha. Estou me sentindo meio que seqüestrado – Falou expressando um sorriso tímido.

Andaram mais uns dez metros. Ela desativou o alarme e graciosamente abriu a porta para ele.

- Isto não deve estar acontecendo. Devo ter batido a cabeça, eu devo estar sonhando

- Não. É real. Por que homens acham que sempre devem estar à frente de tudo? Por quê não são capazes de aceitar como normal uma gentileza de mulher? A propósito você tem nome?

- George, muito prazer – Diz estendendo a mão agora sem as luvas. Ela segura-lhe a mão tocando-a com cuidado e precisão.

- Sua mão é muito macia, aposto como nunca pegou em serviço pesado – Diz sorrindo.

- Você está deixando sem jeito. É verdade, sou crítico de arte e algumas vezes escrevo pequenos romances que permanecem inéditos.

- Nossa, que perigo, espero não virar personagem de suas estórias – Disse Veronik ligando o dvd do carro. O som do Coldplay se espalha em todas as direções.

- Não é possível – Diz o moço balançando a cabeça.

- O que não é possível ? – Diz esboçando curiosidade.

- é minha música preferida!

- Adoro que você tenha gostado. Compro tudo deles. Fui a dez shows da banda pelo mundo.

- Como é possível?, você vive de férias?

- Digamos que meu trabalho me permite alguns prazeres e eu aproveito. Pronto, chegamos. Lá dentro a temperatura deve estar mais amena.

Os dois desceram do carro e avistaram um pub em estilo rústico de pedras cinzas na fachada. Trepadeiras verdes, levemente tingidas de branco pela neve davam um ar especial. Vidros escuros impediam de ver os movimentos de pessoas do lado de dentro.

George não conseguia raciocinar direito. Há uns meses havia descoberto uma fuga da namorada que interessara-se por um amigo de infância e mergulhara numa solidão, numa espécie de ostracismo voluntário. Uma semana já se passara e ele estava saindo à rua pela primeira vez, como um urso que encerra mais um período de hibernação, ainda com poucos reflexos, sono pesado a ponto de escorregar na rua. Até aí tudo bem, mas nem em suas fantasias mais loucas dos escritos escondidos, pensara em receber ajuda de uma estranha e bela de gestos espontâneos e olhar apaixonante.

- Calma George, isso deve ser uma pegadinha da tv – Pensa. Olha em volta procurando câmeras escondidas. Nada. É seqüestrado de seus pensamentos, quando ela o toma pela mão encaminhando-o pela escada de degraus cobertos de neve. O toque de Veronik lhe faz lembrar o Rusk siberiano da adolescência, a mão parecia feita de pelúcia de tão macia.

- O que você tanto pensa? Você é sempre assim tão tímido?

- Tímido, eu?

- A sensação que tenho é que você está sendo levado ao altar para um sacrifício – Fala sorrindo mostrando os belos dentes e lábios bem desenhados.

- Também não é assim – Fala abrindo a porta para ela com um gesto gracioso.

- Homens, que seres estranhos. Tão fortes e tão frágeis – Ela fala enquanto caminha para um canto aconchegante. A mesa tem toalha bem arrumada de cor verde e arranjos de orquídeas, logo atrás uma cachoeira artificial provoca um barulhinho bom. Antes que ele puxasse a cadeira ela adianta-se e puxa primeiro com um sorriso malicioso.

- Por favor – Diz, arrancando dele, desta vez, um largo sorriso.

- Se você não existisse eu teria que inventar você.

- E um elogio ou uma cantada? – Ele não responde, apenas sorri, sentando-se em frente a ela. Uma estranha sensação invadiu-lhe a mente. Um monte perguntas sem resposta.

- Que mulher seria aquela? – Pensava, a cidade de Norfwalk, não era assim tão grande, tinha pouco mais que noventa mil habitantes. De onde ela saíra? Por quê tinha que passar exatamente no momento em que escorregara?. Estava tão perdido em pensamentos, que nem percebeu o gesto gentil do garçom impecavelmente vestido à frente, mostrando cardápio.

- Ei, George, acorda – Disse com voz suave. O garçom não consegue disfarçar um sorriso.

- O que senhor deseja ?

- Vou pensar um pouco – Fala voltando-se para Veronik.

- Posso ajudar, sugerir?

- Claro

- Cabernet Sauvignon, é a casta vinífera de maior prestígio no mundo, cultivada em todas as regiões produtoras e degustada por todos. Muitas pessoas se referem a ela como sendo a "rainha das uvas tintas". Sua origem está associada à região de Bordeaux, Médoc, e é resultado do cruzamento entre as castas: Cabernet Franc e Sauvignon Blanc. Seu nome já aparece em registros do final do século XVIII. Pra comer traga carne grelhada com pouca gordura.

O garçom afasta-se e George continua sem palavras.

- Você tem alguma outra sugestão, me parece meio confuso.

- Não. Pra mim está ótimo.

- Enfim sós – Diz ela, puxando conversa – Me fale dos seus trabalhos.

- é uma coisa meio enfadonha. Passo a maior parte do tempo lendo.Trabalho para uma grande editora que vende principalmente seus livros na Internet, a book house. Os autores, mandam seus livros, eu leio, faço umas considerações que são disponibilizadas na Rede e podem ajudar na decisão de compra dos mesmos.

- Hum legal, e seus romances ?

- é pura diversão, nada sério. É mais para preencher o pouco tempo que me resta.

- Entendo. Pelo jeito, você não costuma muito ir à rua, não com freqüência.

- Como é que você sabe, ou melhor, é isso mesmo. Compro tudo pela internet ou por telefone com entrega em domicílio.

- Sério?! – Fala demonstrando surpresa.

- Que graça tem isso ?

- Não parei para pensar sobre isso. Os dias vão passando e é só.

- Qual foi a última vez que você foi a um teatro ? – Ele pensou, pensou e antes que respondesse ela continuou – Aposto como show não faz parte da sua rotina.

- Eu compro todos os dvd’s dos principais shows.

- Não me faça rir. Não é a mesma coisa. O calor das pessoas, a energia da banda, troca de energia. Você tem namorada? – ele não responde, mas ela dispara sem pensar.

- Aposto como ela deve ter se mandado. Não segurou a onda.

Ele remexe-se na cadeira, tem vontade de sair dali correndo. Que mulher é esta, que parece ter bola de cristal, manual de instruções ou alguma coisa parecida – Pensa.

- Já sei você deve pensar que sou do serviço secreto da Rainha e que andei seguindo você revirando sua vida em sites de relacionamento.

Odeio internet. Gosto de gente, do rosto de gente, do cheiro de gente, do gosto de gente. Não consigo mergulhar nesta loucura do virtual. Webcam não substitui um colo quente, um abraço terno, um olhar no olho.

- Quantas horas por dia você passa na Internet?

- Umas dez horas, às vezes mais, já fiquei vinte e quatro horas.

- Sua casa tem plantas, bicho de estimação ou coisa parecida, ou você tem tamagotchi.

- Já tive, mas o bicho “morreu”.

- Não falei, onde já se viu bicho de estimação virtual.

- Sou alérgico a pelos.

- Melhor ter ataques alérgicos, assim pelo menos a gente descobre que não morreu ainda. Durante o ataque ao world Trade Center, o que manteve em alerta sobrevivente foi a dor, que era naquele momento o único jeito de saber que estavam vivo.

O discurso de Veronik foi interrompido pela chegada do garçom empurrando a mesa de rodinhas, trazendo o grelhado com o vinho e balde de gelo.

- Salvo pelo gongo pensou. Pelos menos mastigando pode calar um pouco – Pensava.

O garçom dividiu o grelhado em porções meticulosamente distribuídas nos pratos para em seguida servir o vinho. Enquanto ela arrumava o guardanapo ele resolver contra-atacar.

- Pelo jeito eu estou na berlinda. Até agora só tenho ouvido você decifrar meu código genético-social-político e emocional – Ela por pouco não derrama o vinho que estava na boca.

- Desculpe – Fala esticando a mão direita e tocando-lhe suavemente a mão. Apesar de tudo que ouvira sobre si mesmo, não sentia-se chateado. De certa forma sentia-se aliviado diante de revelações tão precisas. Começava a gostar da idéia da presença daquela bela e curiosa mulher. Enquanto pensava, ela continuava a observá-lo partindo o pedaço de carne em porções menores, é como se quisesse ler seus pensamentos.

- Ta bom deixa eu falar um pouco de mim. Não sou agente da Cia, FBI, Scotland Yard. Sou estudante de arte contemporânea, estou cursando o último período, sou filha única e meu pai fez uma boa fortuna vendendo tapetes-persa, vivo com minha mãe numa cobertura de frente para uma grande montanha, tenho um Dálmata, uma arara azul, tenho um piano ao lado do meu jardim de inverno, já atravessei a América do sul de carro, já pilotei lancha e estou pensando seriamente em comprar um acento em um destes vôos que os Russos estão fazendo incluindo passageiros comuns.

- Bem.

- Ah, tem mais, nas minhas horas vagas, afinal eu também tenho, estudo teatro grego, só pra exercitar.

- Me belisca o braço – Fala estendendo-o.

- Deixa de ser bobo, sou de carne e osso e sentimentos, e sei quando estou diante de um homem interessante – George engole seco e quase se engasga com um pedaço de carne.

- Quer mais vinho – Ela diz, com uma certa ironia e sorriso maroto.

- Não obrigado. Não bebo muito. A propósito você tem namorado, noivo, marido...

- ah, o moço também pergunta. Não!. Digamos que estou de férias.

- Eu sei como é isso. Você um belo dia acorda com uma idéia na cabeça, vai ao cabeleireiro, muda o penteado, escolhe um estranho na rua e resolve exercitar o poder de sedução.

Pela primeira vez o rosto dela fica levemente sério, mas logo se recupera e volta ao brilho natural.

- Vai dizer agora, que você não está gostando.

- é,

- sim ou não, sem truques.

George mastiga com cuidado o grelhado, parece ganhar tempo diante de mais uma assertiva da moça. Não fala nada, mas o rosto corado é a prova inconteste do estado de espírito que tomou conta dele em tão pouco espaço de tempo. Já nem conseguia sentir nada pela ausência da namorada, e o milagre tinha nome e forma; Veronik.

- Qual o seu clássico favorito – Perguntou disfarçando e mudando o foco do assunto.

- Mozart. Adoro Mozart, sou capaz de ficar horas ouvindo.

- Eu também gosto de Mozart, embora conviva melhor com Chopin.

- Se você quiser posso dar um concerto só para você.

- Jura?

- Claro, minha mãe foi pra Hannover visitar uns irmãos. Vai passar uma semana por lá. Então..

- Acho que não vai dar.

- George, a vida é curta demais – Fala com o rosto sério, encarando-o firmemente.

- Tenho muitas resenhas para fazer e estou meio atrazado.

-Tudo bem. Você vai e leva tudo, se quiser pode levar até o computador. Vamos, não custa nada.

- Não vou te atrapalhar, tirar tua privacidade.

- Não. Vai me tirar da solidão.

George chama o garçom e prepara-se para pagar a conta. Ela toma a comanda provocando riso do simpático atendente.

- Eu convidei você, logo, a conta é responsabilidade minha.

Ele apenas sorri, começa achar tudo natural. Ela parece ter rompido muitas barreiras em pouco espaço de tempo. Sente-se leve. Descem as escadas entram no carro. Minutos depois estacionam em frente ao bangalô de George. Ele salta sobe as escadas correndo.

- Não demoro.

- Não tenho pressa.

Ele entra na casa e ela se entrega a pensamentos.

- Não estará sendo apressada? Mal o conheceu e já está levando para casa?. Enquanto pensa, liga o som, Coldplay parece aquietá-la - Vai dar tudo certo – Pensa. Ainda está entregue a pensamentos quando ele se aventura escada abaixo carregando notebook edredom, e sacolas com roupas.

- Que é isso, não precisava edredom, a não ser que você queira se mudar lá pra casa.

- Desculpe, fui pegando sem pensar.

- Estou só brincando moço, Vamos! .

George está transfigurado. Um ar infantil, alegria de quem ganha um presente há muito esperado.

Chave na ingnição e o Miura desliza na pista congelada.

- Devagar, a pista continua escorregadia.

- Não confia na motorista ?

- Claro.

- George, o que te faz mais feliz?

Ele pensa, disfarça, pensa mais e responde.

- há muito não me sinto tão feliz com alguém. É tão bom que me assusta.

- A vida tem sido assim tão dura com você ? – Fala roçando a mão no rosto dele.

- Sabe quando você pensa que algo vai ser legal, quando você aposta todas as suas fichas numa relação e pinta uma decepção?

- As pessoas não são perfeitas George. A gente sempre pinta as pessoas que amamos com as cores que a gente quer, mas na prática, a pintura do quadro real é bem diferente da nossa fantasia. Deixe eu pensar; ela deve ter se apaixonado por um amigo seu?

- Não quero falar sobre isso.

- Bingo!, mas já passou. A gente só está afim de se divertir. Pessoas são energias, que cruzam com outras energias todos os dias. Uma hora dessas num destes toque, há uma troca, aí mistura-se tudo e a gente já não consegue distinguir o certo do errado, o belo do feio, o azul do vermelho.

- é verdade.

- Quando a gente menos espera, as tintas já misturaram e quase sempre, o solvente não consegue mais desfazer as misturas. Cada um para seu lado, cada um leva um pouco do outro e deixa um pouco de si.

- O problema é que tudo acontece sem que você saiba, e mesmo assim respingos da mistura vão se misturar à tua alma de forma sutil, mas para sempre. Nenhuma lavanderia pode retornar a cor original.

- Chega de filosofia. Chegamos.

À frente um grande portão de ferro preto, se abre lentamente dando acesso a uma estrada de tijolos amarelos. Lá no fundo um prédio de cores pastéis com dois andares é um convite ao aconchego. Na frente dele flamboyants tingem o chão de vermelho.

Chegam ao acesso do elevador exclusivo que os leva juntamente com o carro até a cobertura. A vista do alto é estonteante; a montanha é um convite à tranqüilidade. Saem do carro tirando o material de George e entram pela grande sala com móveis de cana de índia e almofadões para todos os lados. O piso é de madeira de cor clara. Trepadeiras e samambaias completam o cenário. Ela toma o controle remoto subindo as cortinas e deixando a claridade entrar no ambiente. A sacada é imensa com várias redes armadas. Uma pequena academia de ginástica é separada da sala por cortinas feitas de parte de latas de refrigerante.

- Bem, estamos em casa. Vou tomar um banho. Você pode usar o banheiro da academia.

Ele vai na sacada. Lança um olhar ao redor e refaz mentalmente o dia todo até ali.

- Surreal, esta talvez seja a palavra que faça mais sentido naquele momento – Conclui, para em seguida tomar toalha e seguir para uma boa chuveirada.

Quarenta minutos depois, estavam os dois no mesmo ambiente.

Ela colocou uma roupa em estilo cigano deixando as curvas visivelmente à mostra. Ele finge que não percebe, mas sente o coração disparar quando ela se aproxima enfiando os dedos nos cabelos dele.

- Você usa sempre o cabelo grande?

- Não, é que estou sem tempo.

- Você parece o coelho de Alice, nunca tem tempo. Mas aqui o tempo é diferente. Esqueci de avisar que você está em uma dobra do tempo, portanto, podemos viajar no presente no passado e no futuro ao mesmo tempo – Disse rindo e encaminhando-se para o ponto da sala onde está o piano.

- Eu sei que você tem muita coisa pra escrever, mas será que eu posso desejar você na minha platéia ?

- Claro – Balbucia.

Ela senta-se, concentra-se. Ele pega uma grande almofada e deita-se preguiçosamente olhando extasiado para ela. Ao invés de música clássica, os acordes são de love of my life do Queen. Parece atingido por um raio, quantas vezes ouvira esta música em outros braços. Ela percebe o embaraço, mas não pára de tocar. Enquanto os dedos dela, alvos, quase mármore, deslizam pelas teclas, ela fita-o com uma ternura de mãe. Tenta em vão alcançá-lo, ele parece tão distante, como se uma grande tela imaginária tivesse sido aberta à sua frente. Se pudesse o tomaria logo no colo, diria coisas gentis, acariciando seus cabelos até que adormecesse. Não sabia o que dizer. Resolveu trocar de música. Os primeiros acordes de viva la vida ecoaram pela sala despertando-o.

- Viva la vida George !!

- Viva – Disse levantando-se e caminhando em sua direção. Não falou nada, aproximou-se, enfiou os dedos por entre os cabelos loiros, ela mal respirava. Tirou a mão dos cabelos e começar massagear os ombros dela suavemente. O som do piano misturou-se à respiração ofegante dos dois, na sacada um pássaro de penas vermelhas e azuis pousou e pareceu observar a cena. Quando terminou de tocar a música, o rosto estava banhado de uma lágrima diferente, sem dor, suave, uma catarse há muito desejada. Trocaram de lugar, ele sentou-se no banco, ela sentou-se no colo dele enroscando-se como uma trepadeira que busca apoio na árvore frondos, e assim ficaram por longo tempo, sem nada dizer. Ele agora entendia a questão do tempo, é como se pudessem parar o relógio, mudar a velocidade, desacelerar. A lágrima do rosto dela, agora molhava o peito dele, enquanto ela ouvia as batidas de um coração apressado vindo do coração de George.

Há quanto tempo ele desejara esta paz. Quem era afinal esta mulher, que lhe escancarava as portas de uma forma tão impactante, que lhe tirava as algemas, que expulsava seus medos, exorcisava seus demônios. De súbito lembrou-se que na história passada, também começara assim, que ela era afetuosa, bela, sensível, que fizera juras eternas de amor, e que mesmo assim o trocara. Não estaria novamente no prenúncio de céu e inferno. Afinal, não jurara para si mesmo que nunca mais passaria por isso?. Então por quê estava novamente ali vivendo uma nova experiência. Desalojou-a do seu colo e caminhou para a sacada confuso. Ela pareceu entendê-lo e apenas o seguiu com um olhar, pensou que precisava de paciência, voltou para o piano, respirou fundo e começou tocar clocks. Cada acorde parecia chicoteá-lo. Agora também cantava : “the lights go out I can’t be saved....come out of things unsaid...you are, you are and nothing else compares..oh nothing else compares.

Ele não se aguenta, levanta, olhar para o mulher que toca e canta e já não pensa naquela que se mandou com o amigo – E daí, acho que ganhei com isso, senão nem estaria aqui agora – Pensa com leve sorriso nos rosto.

- Você fica bem melhor assim, sorrindo – ela fala e continua tocando. Ele aproxima-se e canta junto, meio desafinado, mas continua assim mesmo...I could not stop, singing that you know...Am I a party of the cure?..you are, you are, cantam olhando um para o outro como se buscassem respostas.

A música acaba e os dois se aproximam como se um grande imã os juntasse de forma arrebatadora. Inevitável, bocas se juntam de forma suave e ao mesmo tempo inquietas, frenéticas, ansiosas. Se separam e agora é ela quem vai para um canto, como se quisesse recuperar o fôlego.

- Acho que você tem uma resenha para fazer, vou lá dentro preparar alguma coisa pra lanchar.

- Vem aqui – ele fala com firmeza.

O coração dela dispara. Isto não era muito comum, de um modo geral, sempre estivera no comando de tudo que vivera, mas agora, a estranha fragilidade dele desmontava toda sua fortaleza, as pernas tremiam enquanto caminhava em sua direção. O rosto dele apresentava uma paz imensa, ela chegou mais perto, ficou na ponta dos pés e enlaçou-lhe o pescoço, abraçando-o com ternura, no que foi retribuído com um apertar lento, como se ele quisesse decorar a geografia do corpo dela. Afasta-se um pouco para fitá-la.

- Não sei existirá amanhã, confesso que não sei conviver muito bem com surpresas. Rasteiras da vida, mas se morresse agora, posso afirmar com certeza, que vi de perto o paraíso. Ele tem teu jeito, teu cheiro, tua cor, teu sabor...

Ela o interrompe com um beijo carinhoso. Ficam assim por um longo tempo. Lá fora a arara azul sacode as asas livrando-se da neve que cai mais intensa, a montanha também ganha contornos de branco. Eles não pensam, não programam, não calculam, apenas buscam um ao outro como se seus olhos refletissem as próprias almas.

CAPÍTULO 02

A noite passara muito rapidamente. George passou boa parte da noite e madrugada redigindo no notebook. Por várias vezes pára e atende ligações da Editora cobrando o trabalho e de Érica fazendo juras de amor. Quis desligar o celular, mas depois resolveu deixá-lo ligado no silencioso. Passou a noite iluminando o quarto sem que ele resolvesse por atendê-lo. Já passava das quatro da manhã quando resolveu dormir. O quarto era confortável com cama destas que podem se embutir na parede, tudo muito prático, uma escrivaninha, uma rede opcional, cores pastéis nas paredes um jardim de inverno com trepadeiras, que favorecia a visão da montanha.

Passava das onze horas, a luz do sol já invadia o quarto e Veronik estava alí observando-o há mais de uma hora. Não cansava de ver aquele homem deitado na cama dormindo o sono dos justos. Por vários momentos chegou bem perto e até esticou a mão quase alcançando-o, mas conteve-se e permaneceu alí quieta, como quem ouve uma sinfonia. Apesar do sol forte, a neve continuava caindo, enquanto ela permanecia no chão do quarto.

Já nem lembrava do tempo em que fora feliz, na verdade já nem sabia se fora feliz. Lembrou dos romances de fim de semana, de festas, das viagens. Sempre fora do tipo que não levava muito a sério as relações, sempre achava tudo uma grande roubada, portanto para que investir se o dia seguinte sempre trazia tsunamis que levavam tudo sem deixar vestígios. Então por quê estava alí a velar o sono daquele desconhecido. O que havia de semelhança entre ela e ele, por se permitira esta invasão de privacidade, se as outras histórias sempre aconteciam a quilômetros dali, se este ambiente de casa sempre fora guardado como um paraíso.

Ainda estava perdida nestes pensamento, quem nem se deu conta de que ele já acordara e já estava a observá-la por um bom tempo.

- Ei volte para cá moça.

- Hum - Falou espantando-se. O coração disparou, como se tivesse sido pega em flagrante delito.

- Bom dia meu anjo da guarda. Venha aqui. Acho que dormi como uma pedra.

Ela levanta-se, pés descalços, caminha devagar, como se conferisse os passos até o objeto de desejo.

- Bom dia George.

- Há quanto tempo está aí?

- Mais de uma hora seguramente.

- Tava me ouvindo roncar - Fala sorrindo.

- O ronco até que era baixinho, nem chagava a incomodar.

- Há tempos que não durmo tão bem.

- Que tal um bom banho, o café já está pronto.

- Preciso mesmo, pra acordar direito. Posso ganhar um abraço?

- Claro - Disse aproximando-se e enlaçando-o com carinho. Se ele pudesse veria os olhos dela brilhando, quase em êxtase, um prazer diferente, uma sensação de paz, sentida por aqueles viajantes de dias na estrada. Mais uma vez engalfinhados, ficam ali juntos, como se tivessem encontrado o aconchego há muito desejado. Com dificuldade se separam e ele segue para o banho seguida pelo olhar de Veronik.

Passados uns quarenta minutos já estão sentados na ampla sala com mesa de madeira envelhecida.

- Você quer qual suco ?

- Nossa, isso aqui é melhor que hotel cinco estrelas.

- Tudo de última hora - Disse ela escondendo um sorriso. Mal sabia ele, que ela acordara bem cedo para preparar a mesa. Logo ela, que não tinha muita habilidade nesta área.

- Fico feliz que você goste, fique à vontade.

- De um modo geral, improviso tudo de alimento no dia a dia. Não é todo dia que posso usufruir deste tipo de serviço e em menos de 24 horas você já me proporcionou duas oportunidades.

Ela apenas ouve o que ele diz, com orgulho satisfação, contidas.

- Não costumo receber gente por aqui.

- Fico muito honrado por sua gentileza.

- Tenho certeza que você é merecedor.

Ele quase derrama o café na mesa, ela apenas sorri. Parece boba, não entende muito porquê. Já até ouvira as amigas falarem deste estado diferente de personalidade. Racionalidade sempre fora o seu forte. Sua formação e criação rígidas, sempre a levaram para a racionalidade sem muitos lampejos de fantasia, no entanto, sentia-se como que dissolvida, como se pudesse perceber a intimidade das células, átomos em plena atividade, tremia a perna, as palavras já não saíam com tanta facilidade.

- Que coisa mais boba - Pensava.

George continuava a refeição. Enquanto isso ela mergulhava numa profusão de idéias; visita a teatros, passeios ao lago congelado, bosques.

- Veronik, tenho impressão que estou tomando café sozinho.

- Não é nada disso meu amor. Estou só organizando umas idéias para nós dois.

- Hum, fiquei curioso.

- Vai colocar mais roupa, lá fora tá muito frio.

- é pra já.

- Estou gostando de ver sua disposição.

- O nome do milagre é Veronik!!

Ela apenas sorri e vai para dentro trocar de roupa. Entra no quarto e começa atirar peças na cama, cheia de dúvidas.

- Que loucura, nunca liguei pra que roupa ia vestir - Falava olhando para o espelho e experimentando blusas e casacos.

Já haviam se passado vinte minutos, desde que ela entrara para se trocar. Quando chegou na sala ele já a esperava dedilhando teclas do piano.

- Você sabe tocar?

- Não. Nunca aprendi.

- Posso ser uma professora dedicada.

- Vai ser preciso muita paciência.

- Não se preocupe, paciência, tenho de sobra. Vamos lá.

Ele responde balançando a cabeça afirmativamente e olhando-a de cima abaixo fazendo-a baixar a cabeça encabulada. Seguem para o elevador, o percurso não dura mais que seis segundos. Entram no carro, ele liga o som; coldplay, fix you.....

CAPÍTULO 03

Apesar do sol alto, o lago, agora congelado, era um grande convite à patinação. Devidamente preparados, começaram exercitar o deslizar pelo gelo, as golfadas de ar pareciam congelar no ar no frio congelante. Pareciam dois adolescentes, patinando, escorregando, caindo, parando aqui ali para uma troca de olhares, como se olhassem no próprio rosto refletido no rosto do outro, como partes de um mesmo todo, almas gêmeas, separadas, por muitos anos, por muitos quilômetros, mas conscientes agora do sentido do encontro, da beleza do encontro. Nem um terremoto 9.0, mudaria naquele momento a harmonia dos dois, mas um toque de celular explodiu como um tsunami. Ela pára enquanto ele finge não ouvir o toque.

- Atenda.

- Não quero.

- Atenda, não é melhor encarar esta história de frente.

O toque insistente do celular persiste e o sorriso sai do rosto dele, transformando-se em uma máscara estranha.

- George, acho melhor você atender.

Ele afasta-se um pouco, deixando-a a uns des metros. O led do celular mostra a motivo da mudança de humor; Érica. Aperta a tecla verde.

- Alô - fala com voz ríspida. Do outro lado uma voz aflita responde.

- Bom dia George, como vai meu amor ?...

CAPÍTULO 04

George apoia-se na grossa camada de gelo do lago enquanto tenta ouvir as palavras que chegam pelo celular. Do outro lado Érica tenta prender-lhe a atenção, se ela pudesse vê-lo agora, enxergaria um rosto pálido, apesar do momento tão bom, ele ainda sentia-se desconfortável com o contato.

- O que você quer falar comigo Érica?

- To com saudade.

George sorri nervosamente.

- Não me fraça rir Érica. Saudade de mim. Você deve ter ligado pra curtir com a minha cara, Já sei, ele tá aí pertinho e você resolveu fazer uma gracinha.

- Não é nada disso meu amor.

- Amor ?, você nem sabe o que é isso. Você me colocou como um boneco, personagem do seu teatro dos vampiros, você quer dizer.

George não se sentia muito confortável falando. Veronik observava tudo à distância, procurando não se envolver com a conversa. Impossível não estar envolvida. Entendia agora como essa questão era tão mal resolvida na cabeça dele. Inquieta por dentro, procurava não demonstrar nada, apenas fitava-o com carinho.

- Érica, acabou seu espetáculo. Confesso que você é uma ótima atriz e confesso, com você vivi grandes momentos, embora saiba agora, que eu fui apenas cobaia de seus desejos mais secretos. Como um ratinho de laboratório, você experimentou tudo de forma cruel e espero que um dia você nunca passe pelo que passei e creia, passou. Se você não se importa, tenho mais a fazer agora.

- Não desliga George, por favor. Quer dizer que nada do que vivemos ficou na sua lembrança. Como é possível esquecer tudo o que vivemos?

- Quando a gente "tecla" algo que não faz sentido, há sempre a opção da tecla del.

CAPÍTULO 05

Este talvez não fosse o melhor momento para uma conversa adiada por muitas vezes. Quilômetros separavam George de Érica, a presença de Veronik, a alguns metros dele, o frio congelante.

- O que mudou desde a última vez que nos vimos George.

- O mundo mudou. Digamos que caiu a minha ficha. Aliás ela tava presa não sei onde.

- Não creio que alguém possa esquecer tanto em tão pouco tempo.

- Acho que no fundo você sempre achou que podia manipular todos ao mesmo tempo com sua beleza, sua sensualidade.

- Não é nada disso, você está enganado.

- Uma espécie de roteiro definido que você sempre seguiu de forma meticulosa.

- Não é nada disso.

- Penso que diariamente você treinava exaustivamente cada fase, cada gesto, para executá-lo com todos aqueles que você sempre teve a seus pés. E sabe de uma coisa, não acho de tudo errado, se não fosse assim, eu passaria a vida toda achando que tudo que você vivia comigo, o que me falava, era só comigo. Como fui idiota. Mas tudo bem. Não quero mal a você. Se você se sente feliz assim, não poderei julgar.

- Oh, George, você é único que eu realmente amo. Acredite.

- Érica, não te desejo mal. Você é maravilhosa. E tem muito amor pra dar, e é tanto que precisa distribuído para muitos.

- Pelo amor de Deus, isso não é verdade. Como você pode ser cruel assim. - Deixa eu te ver agora. Onde você está ?

- Estou ocupado – Diz olhando para Veronik.

- Quem é esta que mudou sua cabeça. Você não é assim. Você nunca me tratou assim. Deixa eu te ver agora, por favor.

- Acho que podemos conversar, mas não agora. Me desculpe, preciso desligar, depois a gente conversa.

- Telefone desligado, George desliza até onde Veronik aguarda com absoluta calma.

- Você não acha melhor ter uma conversa com ela cara a cara?

- Não tenho mais nada para conversar com ela.

- Se você quiser, pode ficar livre, você se resolve, depois se achar legal faz contato. Eu vou estar esperando você.

- Veronik – Fala encarando-a com gravidade – é muito difícil pra mim falar sobre certas coisas. Sou estranho esquizotímido, retraído e mais um monte adjetivos estranhos, mas eu sei que o que estou sentido agora é calmo, é revigorante.

- Você não quer voltar para sua casa agora?, não se preocupe, eu vou entender.

- Meu amor, tudo que eu quero agora é aproveitar este momento que é tão tranquilo, sem stress. Por que você não me convida para tomar um bom vinho.

- Você não estaria fugindo deste problema?, não seria melhor encarar e dar um ponto final?

- Tá bom, confesso, que esta história ainda me deixa um pouco fora de sintonia, mas agora já posso sintonizar outra frequência, entende.

- Não desejo ser apenas como um comprimido desses que o faz fugir da realidade, sou de carne e osso e não quero começar uma relação com alguém que ainda guarda um monte de coisas mal resolvidas.

- Veronik, olha bem nos meus olhos. Estas últimas 24 horas fizeram uma grande revolução. Você não tem noção da transformação que está acontecendo.

- Posso perguntar uma coisa?

- Pode.

- Não seria este jeito meio estranho de ser um motivo para as escapadas de sua namorada?

- Ex- namorada.

- Como queira chamar. Este seu jeito de viver como um eremita, preso ao trabalho, tendo como o mundo uns metros quadrados de um apartamento.

- George pára um pouco, pensa, mas logo volta ao ataque.

- Não, se ela quisesse, poderia até morar lá em casa. Eu não saía de casa mesmo, e ela sempre teve livre acesso. Chegava e saía quando quisesse. Você acha que o fato de eu querer passar a maior parte do tempo em casa poderia ser motivo pra que ela se aventurasse como quem vai à caça.

- Não quero fazer conjecturas sobre a intimidade de vocês. Só não desejo começar uma relação com um homem dividido.

- Veronik, não estou dividido, mas vou aceitar sua sugestão. Acho que preciso ficar mais uma vez sozinho pra resolver esta história de uma vez.

Érica, que tinha sugerido a idéia, agora não sentia-se tão segura. E se ele , em uma conversa olho no olho, resolvesse voltar à relação com Érica, pensava a linda moça.

- Posso levá-lo em casa, vamos.

- Deslizaram no lago congelado até o carro, tiraram os patins e seguiram para a casa dele.

Não trocaram uma palavra até chegarem ao apartamento dela, onde apanharam o notebook e alguns pertences dele. Havia uma atmosfera pesada entre os dois. - Mesmo assim trocaram um longo beijo antes de sair do carro e subir as escadas.

- Faça a coisa certa.

- Vou tentar – Diz ele com um sorriso amarelo. Sobe as escadas apressado fechando a porta atrás de si. Veronik fica ainda um pouco parada enxergando a fachada do prédio. Fecha os vidros do carro, liga o som e sai. O tempo fechado há muito havia escondido o sol, uma névoa cobria o caminho reduzindo a visibilidade a uns trinta por cento, obrigando-a a uma atenção ainda maior na estrada.

No apartamento dele, nada havia mudado, restos de comida sobre a mesa, roupas por cima dos móveis, edredon no chão do quarto e a secretária eletrônica entupida de mensagens.

- Bip...Meu amor, sou eu, por favor retorne minha ligação...

- Bip...George, me deixa te ver, to com saudade...

- Bip...Eu sei que posso ter cometido algum erro, mas posso te provar que você é o único...

- Bip...quando chegar, por favor me liga...vamos parar com esta bobagem...

- Bip...Não é nada do que você está pensando, alguém inventou história...

George ouve tudo, para em seguida deletar da secretária eletrônica. No fundo sabe que não é tão fácil deletar, mas assim mesmo aperta a tecla e vai apagando uma a uma das mensagens. Tenta colocar o apartamento em ordem, depois toma um banho bem quente, liga o computador, acessando suas contas no orkut, facebook, twitter, todos contém mensagens de Érica. Mas o pensamento dele estava agora em Veronik, parece arrependido de ter ido para casa, ela fora tão gentil levando-o para casa dela.

Na estrada Veronik tenta manter a atenção na pista escorregadia e enfumaçada, por pouco não saiu da pista, quando um caminhão com combustível passou por ela. Resolveu para um pouco para tomar algo quente. Avistou uma casa de chocolates, estacionou, entrou e foi recebido por uma garçonete gentil, que levou-a para a mesa oferecendo-lhe o cardápio.

Na mesa ao lado, um homem que aparentava uns 60 anos, surpreendido pela beleza dela, levanta a cabeça, fitando-a com espanto e admiração. O homem apresentava o rosto com barba espessa e rugas na testa. Fez um aceno com a cabeça para a jovem, que virou o rosto e fixou o olhar no cardápio. Ainda procurava por uma sugestão do cardápio que nem percebeu quando o homem chamou a garçonete entregando-lhe um bilhete escrito no guardanapo. A garçonete aproximou-se e entregou o bilhete.

- A senhora já escolheu?

- Chocolate amargo, por favor.

- Mais alguma coisa?

- Não, é só.

- É pra já, com licença – Diz afastando-se, enquanto Veronik abre o bilhete evitando olhar para o homem.

- “Acabei de rodar trezentos e cinquenta quilômetros até aqui, e posso dizer, que valeu à pena, rodaria mais trezentos e cinquenta por um sorriso seu”.

Veronik, evita olhá-lo, mas não consegue esconder o sorriso depois de ler o texto. Sentia-se feliz pela iniciativa do estranho, mas o pensamento estava mesmo no moço estranho que ajudara a levantar-se no dia anterior. Onde estaria agora, teria ido encontrar Érica, ou ela teria ido vê-la.

A garçonete chega com o chocolate no bule de porcelana trabalhado, despeja boa quantidade na xícara e afasta-se. Uma fumaça densa sai da xícara, parece ver o rosto dele refletido e começa refazer as últimas 24 horas vividas com ele. O almoço, o vinho, o piano, a música, o abraço carinhoso, o beijo cheio de ternura. Começou acreditar que isto tudo não passara de uma aventura de um dia de sorte, mas que logo tudo voltara ao normal. Tomou o chocolate, pagou a garçonete, passou a uns metros do galanteador, que fez uma aceno gracioso, ela apenas sorriu, sentindo uma aumento na auto-estima. Na rua foi para o carro entrou, fechou a porta, ficou ali parada por um tempo, ligou o som e mais uma vez ouviu coldplay. Ia ser difícil ouvir a banda sem lembrar dele.

- A senhora esqueceu sua bolsa – Diz o homem de barba espessa batendo no vidro do carro – A senhora está bem, posso ajudar em alguma coisa? - Veronik levanta a cabeça revelando os belos olhos azuis deixando o homem ainda mais impressionado com sua beleza.

- Não sei como lhe agradecer senhor.

- Apenas sorria, seu rosto é belo e fica ainda mais bonito quando você sorri – Ela não resiste e sorri de forma espontânea.

- Pronto, assim fica melhor. Tenha uma boa noite.

- Obrigado, o senhor é muito gentil.

- Michel. foi um grande prazer conhecê-la senhorita, ou senhora?

Senhorita.

- Boa noite – Diz o homem despedindo-se com um largo sorriso,

Na casa de George a campainha toca. Ele toma um susto. Respira fundo e vai até a porta para atender. Abre a porta e Érica aparece, calça jeans bem apertada, bota de cano longo preta, blusa vermelha e casaco escuro. Os cabelos misturam fios amarelados em meio a maioria escura. Os olhos estão visivelmente vermelhos. George fica parando observando-a sem falar.

- Vai me mandar entrar ?

- Claro, entre – Fala quase sem graça. Érica fecha a porta atrás de si e abraça-o com força. Não consegue disfarçar a ansiedade, chora convulsivamente. Curiosamente George já não consegue sentir a mesma emoção das vezes anterior.

- Tava com tanta saudade meu amor.

- Saudade de mim ? - Diz com uma certa ironia

CAPÍTULO 06

Havia uma época em que mesmo distante, sabiam-se lá. Mesmo a quilômetros um do outro conseguiam se perceber, agora estavam alí, cara a cara, mas pareciam estranhos, de países e línguas diferentes, pareciam dois desconhecidos. Um silêncio sepulcral. A queda de uma agulha que fosse provocaria um "grande" barulho. Permaneceram assim, como se buscassem o fio da própria história. Não havia mais encanto, o brilho de uma tela há muito desbotada pelos episódios, sabidos e sentidos pelos dois. Mentalmente buscaram cenas que pudessem reconectá-los, mas no meio delas, haviam pequenos, mas marcantes capítulos de fatos que criavam hiatos imensos, quilômetros os separavam e já não havia mais tempo, nem vontade, nem paciência, nem desejo, algum motivo que fosse, para que retomassem a história há tempos quebrada. Como um vaso chinês que cai da mesa e se quebra. No silêncio que se tornava cada vez mais pesado, eles compreendiam agora que já não havia mais tempo, que não dava para juntar os pedaços deste vaso criado com tanto carinho, moldado com os sentimentos mais singelos, sabiam que poderiam até colar os pedaços, mas o vaso nunca mais seria o mesmo, seria alguma coisa parecida, mas nunca mais teria o mesmo brilho, milímetros que fossem, definiríam diferenças inimagináveis.

Alí, agora, sentados um em frente ao outro, exercitavam um um diálogo de silêncios permeados de frases guardadas no íntimo de cada um, por momentos se descobriam sorrindo, talvez lembrando os bons momentos, outras vezes chorando com as lembranças das dores do quebrar de vasos ainda tão presentes, apesar do tempo.

Ele esforçava-se para encontrar naquele rosto tão desejado um pouco que fosse de sentimentos que pudessem ao menos dar uma esperança de futuro, não conseguia. Tarde demais, repetia, não com alegria, mas com um misto de sentimentos ainda confusos no meio de uma guerra interna. Foi à cozinha apanhou um pouco de água na geladeira, ofereceu a ela, fitando-a. Ela apanha o copo apertando-o entre as mãos quase quebrando-o. Tomou a água lentamente como quem ingere um remédio, uma destas panacéias que trazem a cura para todas as dores. Enquanto a água descia goela abaixo, empurrava um nó que se fez na garganta e que iria permanecer por muito tempo. Agradeceu, esboçou um leve sorriso.

- Nunca fomos santos George, cada um sabe a dor e prazer de ser o que é. Não desejo acreditar que o fato de você ser tão arredio, esquisito, meio eremita, tenha sido a causa da minha busca por algo que necessito tanto. Não podemos fugir de nossa natureza tão complexa, voar às vezes, é a única maneira de sobreviver em meio à solidão, a distância que tu me impusestes. Não desejo te julgar pelo seu estilo de vida. Desejei sim, que pudéssemos dividir um monte de coisas, coisas simples, por do sol, nascer do sol, jogar petecas na rua, tomar banho de chuva, escurinho do cinema, atirar pedras em lagos e observar as ondinhas, viajar sem rumo definido, andar por entre ruas e imagens hoje perdidas no tempo, dividir café na cama, ler poesia em voz alta, deitar na praia em noite de lua, ir ao teatro, tomar chocolates em noites fria, tomar limonadas em dias quentes, empinar pipas, andar descalço nos parques na primavera, se esconder debaixo do edredom nos dias congelantes, ter filhos, vê-los crescer, ter netos e estragá-los com um monte de idéias subversivas, contar estrelas, descobrir formas engraçadas em nuvens, fazer tricor na velhice, dar as mãos e esperar a morte lado a lado. Será que pensei demais?

- Não, não responda. Não quero respostas, o vento tem a resposta. Nunca fui santa, bem sabes, acho que sempre soubestes, mas de alguma forma, tu fostes a fonte onde lavei minhas roupas manchadas pelas tentativas de ser feliz ao longo dos anos. Todas as vezes que cheguei manchada, foi na tua cachoeira de sentimentos bons que me aconcheguei e sacudi a poeira dos dias.

- Érica.

- Não diga nada. Você pode me levar até lá fora?

- Claro.

- Quero guardar esta tua imagem. Não se culpe por não compreender meus desejos em relação a ti. Fiz minhas escolhas, e sou produto de todas elas, cada um no seu cada um. Há muito o que contabilizar, mesmo em meio à guerra dos dias que vivemos, na verdade tudo acaba mesmo em despedida, mas haveremos de carregar conosco as marcas do que dividimos em tempos de paz. Tatuados eternamente em nossas almas George, haveremos de agradecer a Deus pelo encontro que tivemos.

- Como é mesmo o nome dela?

- Veronik.

- Ela deve ser muito especial pra tirar você da caverna. Ela conseguiu o que tentei tantas vezes, logo deve haver algo de muito diferente com ela. Desejo que você encontre em nossa experiência subsídios para superar as guerras que poderão acontecer, tire proveito do que não deu certo em nós. e trate de ser feliz. De longe, muito longe, continuarei com bons pensamentos em relação a você.

Ela toma-lhe pela mãos levando em direção à porta, lança um olhar em volta, como quem sabe que não vai repetir o gesto, fica na ponta dos pés e beija-lhe o rosto suavemente e desce as escadas. Entra no carro e sai sem olhar para trás. De pé na porta da casa, George permanece envolto em sentimentos confusos. Entra apanha as chaves do carro, joga edredom, notebook e outras ferramentas do dia a dia. Apanha o celular e disca um número.

- Posso ir para onde você.

Veronik sente o coração disparar, nem acredita no que ouve, mas resposta é simples, objetiva, verdadeira.

- Claro meu amor, é tudo que eu mais desejo.

- Chego daqui a pouco.

Enquanto dirigia, começava compreender a sentido de tudo; a necessidade de mudar, a urgência de terminar com a longa hibernação, descobrir o valor de pequenas coisas, de viver estas coisas. Sabia agora da beleza da experiência da relação com érica e da necessidade de um começo diferente com Veronik. Pensou na necessidade de abrir-se mais para o mundo, de dividir mais com todos ao redor. Este fora o melhor presente de Érica, não desperdiçaria esta nova chance que a vida lhe dera.

Depois de trinta minutos na estrada, está ele novemente em frente ao portão de acesso à casa de Veronik. Mesmo de longe dá pra ver a silhueta dela na sacada. O portão se abre, acelera e logo chega na ampla sala. O piano, a arara, os móveis, e uma possibilidade de viver de forma diferente. Ela aproxima-se e atira-se em seus braços e fica enroscada em seu pescoço, o corpo estremecido, uma sensação de alívio. No fundo achava que ele não mais voltaria, Mas ele estava ali e isto bastava.

Bem distante dalí, Érica descansava embaixo de uma imensa árvore congelada, tira do porta luvas pedaços de papel, numa espécie de terapia. No meio deles, uma folha amarela com versos de Neruda....

Já não se encantarão os meus olhos nos teus olhos,

já não se adoçará junto a ti a minha dor.

Mas para onde vá levarei o teu olhar

e para onde caminhes levarás a minha dor.

Fui teu, foste minha. O que mais? Juntos fizemos

uma curva na rota por onde o amor passou.

Fui teu, foste minha. Tu serás daquele que te ame,

daquele que corte na tua chácara o que semeei eu.

Vou-me embora. Estou triste: mas sempre estou triste.

Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.

...Do teu coração me diz adeus uma criança.

E eu lhe digo adeus.

Pablo Neruda

Lembrou-se que em um dia onde reinava absoluta paz, George tinha-lhe entregue estes versos. Naquele tempo de paz não compreendeu direito o sentido do gesto, mas agora em meio à loucura dos dias, tudo fazia sentido, mas nada mais fazia sentido.

CAPÍTULO 07

Quando George entrou pela ampla sala a arara azul abriu as asas e sacudiu a neve fina que as encobria. Subira sem trazer nada nas mãos. Notebook, edredom, roupas, tudo ficara no carro. No momento tudo o que desejava era um abraço, um aconchego, daqueles desejados pelos caminhantes de longas distâncias. Não disseram nenhuma palavra, apenas se olharam nos olhos, longamente.

Dava para ver no rosto dela o brilho das melhores manhãs de verão. No íntimo, ele ainda trazia um pouco das dúvidas e inseguranças das lutas passadas, mas trazia também a esperança de vencê-las, uma a uma, em uma nova possibilidade alicerçada no diálogo franco, sem truques, sem jogos mortais.

Veronik aproximou-se e como se percebesse as muitas perguntas do íntimo dele, abraçou-o com carinho enfiando-lhe os dedos nos cabelos a partir da nuca, demorando-se num aconchego silencioso e significativo. Como se falasse.

- Eu sei o que você está sentindo. Sei dos seus medos e desconfianças. Sei que te deixa inseguro. Não tenha medo. Você não precisa se esconder, nem cavar trincheiras, construir muros altos.

Como um menino assustado agarrou-se a ela enlaçando-a pela cintura beija-lhe os olhos, um a um, depois a testa, toca o nariz dela com o seu, depois roça o lábio suavemente. Continuaram assim num diálogo silencioso buscando nos gestos um modo especial de revelarem seus sentimentos tão aflorados no início de caminhada. No blue-ray, Samantha Shelton, maybe. Lá fora a neve continuava caindo.

Ela toma-lhe as mãos frias colocando-as no próprio rosto como se quisesse aquecê-las.

- Preparei chocolate quente. Deixa eu te colocar mais um casaco, parece que você vai congelar.

- Preciso mesmo. Mas além de chocolate, preciso de beijos e apoio para minhas horas difíceis.

Ela eleva a mãos tocando-lhe os lábios com um dedo, calando-o.

- Calma, nós sabemos de nossas virtudes e defeitos, por isso calma, um passo de cada vez. O que precisamos definir é que juntos, sem brincadeiras de esconde-esconde, daremos um passo de cada vez, em segurança.

Ela encosta a cabeça no peito dele. O coração está disparado, como um passarinho aflito. Sente que vai ser uma longa batalha, mas não muda em nada sua disposição de vivenciar este momento e os que virão.

De onde viria tanto medo? Qual o motivo de tanta insegurança? Qual o por quê de tanta dúvida?.

Ainda estava perdida em perguntas, ainda sem resposta, quando ele tomou o rosto dela entre as mãos beijando-a . Dúvidas, medos, inseguranças, tudo agora não fazia mais sentido. Se lhe oferecessem todos os tesouros da terra em troca daquele momento, ele os recusaria para permanecer ali junto dela. Levaria dias tentando descrever com palavras as sensação daquele momento, uma paz diferente, um êxtase, sim um êxtase diferente, sem sensualidade, suave.

- Posso pedir uma coisa para você?

- O que você quiser.

- Toca alguma coisa pra gente ouvir. - Seu desejo é uma ordem meu rei. O que meu menino quer ouvir?

- Feel de Robin Willians. “I Just wanna feel a real Love”.

Ela sorri vendo-o cantar desafinado, mas entendeu a mensagem. Vai para o piano, eleva os ombros graciosamente, inspirando profundamente e expirando num gesto gracioso. Pés nos pedais, mãos no teclado, começa a tocar. Ele vem para a frente do piano mirando-a como quem vê o paraíso. Por momentos fecha os olhos e mesmo desafinado, tenta cantar, arrancando risos dela.

Enquanto toca a música, Veronik tenta penetrar os mistérios daquele homem tão forte e ao mesmo tempo tão frágil. Por um momento pensa que os pensamentos dele estão longe, mas logo afasta a idéia quando vê ele se aproximando e tocando-lhe o dorso pressionando levemente com os dedos massageando-a. Agora é ela que fecha os olhos e se deixa levar. Os pensamentos dela levam os dois e o piano para o uma montanha bem alta a beira mar. Consegue sentir a brisa, pássaros o som do mar, parece flutuar. Para de tocar a música mas permanece quieta.

- Ei, volte moça – Diz ele sorrindo.

Ela parece acordar de um sonho. Toma-lhe as mãos beijando-as com doçura.

- Tava longe mesmo. Vamos tomar o chocolate?.

- vamos.

Sentaram-se à mesa um de frente para o outro, cúmplices. Nem a água quente para o chocolate conseguia superar o calor que emergia de dentro deles.

Nada previam sobre o futuro. Mas sabiam que podiam tentar. Voar alto, dividir sensibilidades, um vôo desconhecido, mas nem por isso e talvez por isso, apaixonante.

CAPÍTULO 08

O dia seguinte os encontrou sonolentos. Mal conseguiram sair da cama. Tomaram banho juntos, brincando como duas crianças. Fizeram bolhinhas de sabão na banheira, se encheram de espuma, gritaram, pareciam ter descoberto o paraíso, uma espécie de nirvana, sem malícia, quase infantil.

No café da manhã mais brincadeiras; dezenhos de rostos nas torradas, olhinhos feitos de montinhos de manteiga, descobertas de formas na fumaça que brotava do chocolate quente. Tudo perfeito, quase perfeito.

- George.

- Hum ?!

- Que tal a gente brincar de jogo da verdade?

O jovem toma um grande susto e quase derrama o chocolate da xícara.

- Pode ser - Fala sem muita confiança em si mesmo. Ela o observa como se desessejasse perceber alguma fragilidade na resposta.

- Podemos começar - Diz George enfiando a faca no interior do pão, tirando-lhe o miolo e passando uma boa porção de manteiga da Normandia.

- Há quanto tempo você conhecia Érica.

- Você quer dizer, há quanto tempo namorávamos, é isso.

Agora é a garota que engole seco diante da resposta dele.

- Pouco mais de três anos.

- Ah, então já era uma coisa muito séria. Você pensava em noivar, casar?

- Casar não sei, morar juntos, talvez seja a expressão mais correta.

- Este jeitão meio arredio, essa de ficar mais dentro de casa, não ser encontrado em lugares públicos, isto deve ter atrapalhado muito a relação dos dois.

- É provável, apesar de ela não ser muito chegada a estar em lugares públicos. No fundo ela queria mesmo era ficar mais de perto de mim.

As xícaras de chocolate esfriam sobre a mesa enquanto o jogo continua.

- Seu namorado, o que fazia?

- Bom, era de origem asiática, de temperamento também complexo, embora boa parte do tempo fisesse piadas, algumas até sem graça. Trabalha na Bolsa de valores. Posso dizer que me proporcionou momentos maravilhosos; viagens, festas, presentes. Tudo que o dinheiro pode comprar.

- E então por que não deu certo?

- Há coisas que o dinheiro não compra. Há dias em que tudo que eu desejava era um bilhete com uma frase boa, nem precisava ser uma declaração de amor. Um belo bouquet de rosas, das mais caras é lindo, mas as vezes não refletem o sentimentos de quem manda, é pura formalidade, como aqueles cartões de natal de empresas em que o sujeito assina sem saber ao certo para quem está sendo mandado, é tudo mecânico, não há sentimento, entende?.

- Entendo.

Ela apanha a garrafa com chocolate, a mão está trêmula. Renova a quantidade nas duas xícaras com extremo cuidado para não derramar.

- E sua história? o que ela faz?

- É web designer e também cria modelos de roupas que são disponibilizadas na Rede.

- Trabalho interessante.

- É verdade. Ela é muito bem sucedida.

- Por que duas pessoas de atividades mais ou menos próximas, desafinaram?

- Acho que parte da história você já sabe. Num destes dias de hibernação ela foi com amigos para a casa de alguém, um destes amigos do meio e lá acabaram se envolvendo.

Ele abaixa a cabeça, fica em silêncio por um momento, ela levanta-se, vai até ele e faz um carinho nos ombros. Não fala nada. Acha melhor assim. Toma dois pedaço de pão e põe na torradeira.

- Bem passado? - Interroga tentando tornar o momento mais leve.

- Sim - Responde como se voltasse de algum lugar.

- Quer parar com o jogo?

- Não, acho que assim encerro de uma vez por todas esta história.

Ele levanta-se vai até a geladeira apanha uma jarra com água, põe no copo e bebe de uma vez, tentando desfazer o nó na garganta.

- Acho que nesta história a culpa foi minha. Não quero por a culpa nela. Não posso querer que alguém se disponibilize somente para mim, quando eu mesmo não disponiblizo meu tempo para ela. Acho até desumano ter alguém cativo, assim como um pássaro na gaiola, embora ele cante, nada se compara ao conto da liberdade de ir e vir.

- Sei.

- Outra coisa, não posso prendê-la se as necessidades dela estavam acima de minhas possibilidades e provavelmente, se ela passou a viver um relacionamento paralelo é por que de alguma forma ele a completava, entende. Ninguém se relaciona com outro se não houver algo que que esteja a completá-lo.

- Mas não pode ser apenas uma fuga pra não morrer de tédio? Não se matar na solidão?

- Pode. Aí é que eu acredito e afirmo que é melhor estabelecer uma liberdade completa para que ela possa dar vazão a todas as necessidades.

- Impedir isto é mesmo que desejar segurar o vento que passa por nós.

- Mas ela não dava sinais de que amava você.

- Falava milhares de vezes, mas isto não a impedia de se encontrar com ele, dias tardes, noites. Percebe, então as necessidades deveriam ser saciadas, logo, prendê-la e aceitar a idéia dela permanecer saciando seus desejos lá fora, é pedir demais pra mim.

- E você achava justo que ela desejar sua presença e não ter?

- Não. Eu na verdade nunca quiz prendê-la, mas ao mesmo tenpo, também não quero dividi-la.

- Curioso como funciona o pensamento masculino.

- Eu sei agora que não é correta esta minha vida de urso, mas é tarde demais pra voltar atrás. Sei que você vai falar que é papo machista. Mas é difícil você aceitar com naturalidade o fato da tua garota estar contigo e outra pessoa ao mesmo tempo. Se isto é atrazado eu estou muito longe da modernidade. Você tem noção de na hora "H" você lembrar que aquela pessoa no mesmo dia que se entrega pra ti, vai estar se entregando para outro. Se isto é moderno eu continuo um homem das cavernas.

- Acho que quero parar com este jogo. Eu já estou ficando com ciúme.

- Você que teve a idéia. Na verdade acho que cada pessoa é um universo muito pessoal, único, intrasferível e isto deve ser respeitado. Eu desejo que ela seja muito feliz do jeito que ela sabe viver, mas o que ela queria pra mim era pesado demais para carregar.

Ela levanta-se mais uma vez, vai até ele sentando-se no colo e dando beijinhos no rosto. No fundo sabiam que o caminho a trilhar não seria fácil, mas sabiam também que começar com este jogo bem aberto já era um bom princípio.

RobsonJr
Enviado por RobsonJr em 13/09/2010
Reeditado em 13/09/2010
Código do texto: T2495356
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