Posso entrar?

O sol não apareceu esta manhã. Ou não se deixou ver, pois meus olhos só alcançam um clarão refletido nas nuvens escuras e espessas, nada daquela esfera fumegante que brilha fundo e nos aquece não somente onde a temperatura alcança. Que dia melancólico!

Aliás, o sol não tem aparecido em minha vida há muito tempo. Já não sei mais o que é sentir o aconchego de seus raios luminosos que, mesmo aqueles que ofuscavam, deixaram saudade. Não saio de casa há meses, mas não tenho outra opção. Certo dia arrisquei um passeio no jardim, mas quando cheguei até a soleira da porta parei. Fui detido por um medo intenso, um frio percorreu minha espinha e fiquei ali parado, olhando a maçaneta enferrujada.

Há algumas semanas atrás recebi uma visita. Daquelas esperadas, desejadas, dignas de sonho, mas não para esse momento, não nessa situação. Ela queria saber se eu estava bem e o porquê do meu exílio solitário. Não pude responder e, mesmo que pudesse, não o faria. Aquele dia posso dizer que pelo menos um raio de sol transpareceu – só um, se não me falha a matemática. Foi como o começo de um sorriso de lábios, no canto da boca de uma bela mulher: não se sabe ao certo o que significa, mas te tira o sono por vários dias conjecturando um propósito.

Hoje desci e tomei, como de costume, meu café às oito. Li o jornal e fiquei confortavelmente sentado em uma poltrona de couro velho, admirando o balanceio que a brisa fraca provocava nos galhos mais finos das arvores lá fora. Tudo parecia lento. Os ponteiros do relógio moviam-se bem devagar, mais do que de costume – posso jurar que em alguns momentos vi-o voltar as horas. E eu fiquei ainda ali, disperso, confundido com os móveis imóveis da sala de estar. Acompanhei com os olhos um pequeno pássaro que batia forte suas asas, pois apesar de o vento não estar muito forte, seu tamanho em nada favorecia seu vôo. Mas era gracioso! Ficou ali alguns minutos voando, deixando-se levar, fazendo piruetas no ar, como se estivesse a brincar e, como cansado pelo seu espetáculo, pousou em um galho firme da amoreira carregada.

Depois daquilo não havia mais o que apreciar do lado de fora, até tive a impressão que a brisa parou de soprar, como se perdesse o propósito ao não ter mais o pássaro para atrapalhar. Resolvi penetrar em alguma leitura. Caminhei até o escritório e procurei, dentre todos aqueles títulos conhecidos, algo novo ou que pelo menos eu não tinha em memória próxima a leitura. Foi difícil. Primeiro coloquei em mãos alguns volumes do bruxo, mas pensei bem e desisti. Lancei um olhar em um livro de contos esparsos e folheei até chegar ao índice. Já havia lido quase tudo, a maioria não me interessava, mas um veio de encontro ao meu dedo enquanto este listava a página velha. Era um conto sobre um jardineiro, escrito por aquele já rotulado – merecidamente ou não – critico dos que não fazem arte no passado e nem no presente. A leitura foi agradabilíssima, porém provocou uma dor de rasgar a alma. Aquela poesia colorida, plantada e cultivada pelo jardineiro me esmiuçou todas as questões e não questões do coração. Quis sair lá fora.

Coloquei os chinelos e caminhei lentamente até a porta. O medo ainda estava em mim. Não sabia porque sentia medo, seria mais adequado sentir culpa ou repugnância, mas sentia. Esforcei-me para sufocar aqueles sentimentos e continuar caminhando. Quanto mais chegava perto da porta, mais medo sentia, mais meu coração batia, acelerado pelo temor. Não havia o que temer, nada para além daquela porta poderia me fazer mal e, mesmo se pudesse, esse mal seria de boa dose para um acerto de contas com a consciência. Toquei a maçaneta que imaginei estar fria, mas ao contato demonstrou-se um pouco mais quente que minha mão.

Girei-a. Meu coração parecia querer saltar à boca. Estremecia a cada raio fraco de luz, a cada vento que soprava pelos espaços da porta se entreabrindo, enfim, a cada contato com o mundo exterior. Com a porta já na metade de seu percurso eu podia ver as folhas secas e velhas que cobriam o gramado demasiadamente alto. O jardim estava sem cuidado há meses, mas isso me fez saltar um leve sorriso, talvez de alegria, talvez de desespero. Com certeza eu não era Timóteo – pensei – pois minha poesia estava tão desajeitada e descuidada que era triste, não que fosse assim em sua essência, talvez houvesse debaixo daquele manto pálido e seco um poema alegre e florido, mesmo assim era difícil.

Abri finalmente a porta por completo e a brisa fria me acertou em cheio. Respirei fundo – não foi tão ruim. O céu estava ainda acinzentado e cada vez mais perdendo o brilho, mas isso não tirou a beleza da visão. Aliás, penso que qualquer coisa que eu visse ou sentisse lá fora seria melhor do que havia sentido em meses cozidos a paredes e cantos escuros.

Caminhei ao redor da casa, guardei algumas ferramentas que estavam espalhadas pelo quintal, colhi algumas amoras doces, fiz uma infinidade de coisas banais que eram como as mais importantes coisas que se há de fazer e que dão prazer. Passei ali, no jardim, mais algumas horas e, consultando meu relógio de pulso, confirmei o que meu relógio biológico já anunciava: era hora do almoço.

Como estava nos fundos da casa, tive de dar a volta nela por completo para chegar a porta da frente – não havia levado as chaves para entrar pelos fundos. Caminhei sem pressa, sempre achando alguma vegetação morta ou galho seco pra afastar com os pés ou mesmo entreter-me por alguns instantes.

Quase chegando a porta da entrada principal percebo uma movimentação na rua. Não sei se já estavam ali quando sai – se estivessem eu não havia percebido. Caminhavam lentamente, com roupas de tom escurecido, em uma procissão fúnebre. Entoavam um daqueles cantos religiosos que se aprende por repetição, mas que para os devotos tem tanto valor quanto um poema saudoso para um poeta, critico ou leitor aflito. Na frente iam algumas senhoras e os padres e seus auxiliares – os únicos que mudavam a aparência daquele rebanho de gente monocromaticamente vestida. Um dos padres trazia ainda uma haste onde havia um retrato – o outro trazia a imagem de uma santa. Tentei ver quem era, mas, como não conseguia fazê-lo dali, corri um pouco até o fim direito do jardim para me adiantar a frente do pelotão. Quando enfim parei e olhei para trás percebi – pela interrupção de meu compasso cardíaco – que não devia ter me precipitado para vislumbrar a pessoa retratada.

Corri para dentro no instante em que reconheci quem era. Tranquei a porta com as mãos muito tremulas e fui direto para meu quarto, chorando e proferindo ofensas a mim mesmo.

Joguei-me em direção a cama e afundei no colchão mole, em meio aos lençóis desarrumados. Fiquei ali por horas apenas sentindo a dor e todo aquele sentimento de meses atrás, na mesma intensidade. Culpava-me. Culpava-me a todo o momento por não estar lá quando preciso, culpava-me pelo que aconteceu um dia antes do dia fatal, culpava-me por sair ao jardim e ver o seu retrato novamente. Meu corpo estava pesado, preenchido de culpa, dor e solidão. Ah! Como eu odiei aquilo.

Fiquei deitado ali a tarde toda, até começar a anoitecer. Pensei com todas as minhas forças em acabar com meu sofrimento. A solução era bem simples, porém difícil ao pensar em realizá-la. Foi difícil, muito difícil, mas não tive escolha.

Fui até os fundos novamente – até o cômodo de ferramentas. Peguei alguns galões velhos que exalavam um cheiro muito forte e levei para dentro de casa. Joguei tudo pelo chão – o cheiro era terrível. Andei por alguns corredores e entrei no escritório deixando, enquanto girava as fechaduras velhas, selada a privacidade que o momento me pedia.

Caminhei por toda a extensão do escritório. Li, re-li e alguns volumes apenas olhei para guardar lembrança. Olhei todas as paredes do cômodo, todos os ângulos, a organização das prateleiras, dos livros e instrumentos de trabalho. Coloquei tudo na bagagem e me preparei para aquela viagem perturbadora. Acendi o ultimo charuto e lancei a binga ainda acesa ao chão.

Já era noite e me lembro que tudo virou dia. O sol invadiu a casa e tudo irradiava calor, muito calor. Fumegava o meu desejo mostrar reciprocidade a minha visita. Via todos os meus livros soltar, como a fumaça de um bom cigarro, sua essência e eu a tragava, tragava prazerosamente. No começo doeu muito, até um certo desespero se apossou de mim, mas eu sabia que era um caminho sem volta e sabia o que queria. Meu jardineiro de poesia feia queria tentar os ares, ou novos ares.

Há algumas horas atrás eu ainda estava lá, me lembro bem ainda. Mas hoje resolvi fazer tudo diferente. Depois que recebi aquela visita, não podia deixar de retribuí-la.

Agora já contei-lhe meu motivo e como cheguei aqui. Peço só que não me julgue precipitadamente e, mesmo se for fazê-lo, que me deixe concretizar esse encontro, nem que apenas uma ultima vez. Posso entrar?

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 28/10/2010
Reeditado em 08/10/2011
Código do texto: T2583428
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