EU SOU O SONHO

EU SOU O SONHO

As vezes eu sou o condutor, as vezes expectador, na maioria das vezes sou eu o sonho.

No caso de Fagner e do Sargento Wolpe, fui os dois, lembro que na maioria dos sonhos, eu sou o expectador simplesmente porque são sonhos de coisas e vidas já vividas, são ecos devidamente contabilizado, arquivados e que vez por outra normalmente ou interminantemente em certos casos, são desarquivados e mostrados em sonhos, que podem ser mais vividos que a própria situação, incluindo tudo, visão, audição, odores e sabores, além da quinta sensação do espaço/lugar, e outras sensações não experimentadas na vida real.

Fagner estava revirando na cama do hospital, não tinha ferimentos, estava com febre altíssima, e com uma espécie de delírio, que os médios diziam vir da dita febre. Claro que devido a injeção de altas doses de bebidas destiladas durante dias e noites seguidas, sem a devida alimentação e o descanso, aliado a consciência intranquila, fez deste corpo, um corpo doente física e espiritualmente. Ao observar o seu sonho fui construindo seu pesadelo. Ele tinha acabado de matar um homem, isso ficou claro, este era seu desespero, aliás, era um crime bem sucedido por enquanto, ninguém tinha achado o corpo e ninguém desconfiava ainda dele, se bem que suas reações extremas de alcoolismo e nervosismo já o denunciasse se o crime viesse a tona com o simples aparecimento do corpo.

Mas isso não era tudo, deslindando o caso vi Fagner esfalecer ao lembrar do início que resultou no crime, vi uma lindíssima mulher, mulata perfeita, corpo magnífico, voz de mulher fatal, vestida num curto, justo e prateado vestido que brilhava e mudava de tom ao andar:

- Então, você mesmo me disse que faria por mim, tudo que estivesse ao seu alcance, não disse? Perguntou a mulata em voz inquisitiva.

- Disse, mas não pensei chegar a este ponto, responde Fagner, desta vez estava suando, e bebeu ávidamente sua taça.

- Bem, se não agirmos agora mesmo, Jonas vai viajar e quando voltar certamente entrará com o pedido de divórcio alegando infidelidade, além de denunciar minha retirada do Banco de toda conta, ele descobriu claro antes que nós fugíssemos, e mais, descobriu você. Sei que não tem provas nenhuma ainda, e como é muito reservado e tem fobia a “barracos”, ainda não falou nada com ninguém, sei que tem de viajar para Recife, mas é uma viagem curta, voltará no outro dia, ele tem de morrer e só você pode dar um jeito nisso, aquele velho asqueroso vai me deixar sem grana, e se continuar assim do jeito de sua raiva, vai também me denunciar, e eu serei presa. E Ai “Nezinho” que será de nós, eu presa, “lisa”, e você sem mim?

- Vai viajar no carro dele?

- Sim

- Que horas vai sair?

- As 4 da manhã de logo mais, já são quase 0.15 horas.

- Vou dar um jeito neste infeliz, bebeu mais uma taça, ajeitou a camisa estampada com desenhos infantis sobre o peito largo, que logo se ajustou, e a passos rápidos, sem um gesto de ternura ou carinho, caminhou decidido para a porta e saiu.

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Na enfermaria leste, justo do lado contrário da enfermaria de Fagner, gemia Ricardo Wolpe, o Sargento Wolpe das tropas especiais da Polícia Militar, este enfermo estava gravemente ferido, tórax, cabeça, os dois braços e um pé estava enfaixados, seu sonho também era agitado, e ora era tranqüilo e feliz, isso mesmo, sorrisos leves dançava-lhe nos lábios vez por outra, este sonho eu estava contemplando vendo um menino ruivo, sardento, cabelos encaracolados, olhos claros quase sem cor, sorriso maroto, enfim um verdadeiro fazedor de encrencas infantil, lançava-se contra uma árvore numa corrida maluca, para em cima da mesma fazer um desvio rápido, e caia na gargalhada, até errar e cair de lado gemendo de dor de uns arranhões que lhe ficou do desvio mal calculado. Ao lado dele uma menina cabelos pretos escorridos e lisos, com uma comprida camiseta de um time de futebol como vestido, começou a rir, este riso foi aumentando de maneira a quase sufocar a dona da gargalhada. O Garoto Wolpe olhou magoado para a menina e saiu correndo para a casa que ficava a média distância entre a árvore e a garota.

- Mamãe, mamãe, socorro, Bete me empurrou contra a árvore e eu me machuquei.

A Menina esbugalhou os olhos incrédula, enquanto balançava negativamente a cabeça ainda muda de espanto,

- Não, não fui eu – Conseguiu articular num crescendo – foi ele mesmo que se jogou contra a árvore.

O Sorriso do Sgto. Wolpe ainda bailava nos seus lábios vendo a menina de joelhos, com uma pesada cadeira de madeira na cabeça equilibrada com a ajuda das mãos.

Breve o menino Wolpe era um rapaz que estava no seu primeiro dia na academia militar, o sonho então pulou para os treinamentos, sua férrea vontade de estar logo em serviço, seu aprendizado elogiado, seu primeiro lugar entre todos, sua formatura simples, e sua primeira missão, a primeira foi mesmo um batismo, na entrada da Grota em que foi recebidos a tiros, ele e seus companheiros esquadrinharam vielas, casas que eram passagens entre duas ruas, casas que na realidade eram labirintos de passagens e esconderijos de marginais, seu companheiro risonho foi ferido gravemente na cabeça logo no início das operações, depois mais três policiais foram feridos, e um morreu no hospital, morreu um cara casado, considerado boa praça, um dos que lhe tinha elogiado, era um veterano e estava em vias de se retirar de serviço, com a reforma dentro de quatro meses, o pior de tudo era que o dia seguinte era seu aniversário, que ele comentava com todo mundo que ia ser uma festa tripla, aniversário e batizado do neto no mesmo dia 25 de janeiro. Morreu um cara comum que era herói, mas poucos sabiam, desde algum tempo que era ameaçado na própria comunidade onde vivia, e dava conselhos atuais para os novatos, como não exibir insígnias, não andar de farda, não deixar ninguém da vizinhança saber que era policial, em suma, esconder a farda que era a razão de sua vida, como para Wolpe. Wolpe um dia interpelou o Sargento Ramalho:

- A Gente tem de esconder a farda e que a gente é policial por causa dos bandidos NE?

- Seria até uma honra, seria uma estratagema, assim eu encararia, mas não meu jovem, não é só por causa dos bandidos, é por causa da população mesmo. A Gente enfrenta balas, enfrenta salário que nunca chega a metade do mês, enfrenta ordens ridículas, enfrenta regulamentos e treinamentos ultrapassados, enfrenta coletes vencidos, armas velhas e ultrapassadas, enfrenta bandidos sem alma, poderosamente armados e organizados, enfrenta populares servindo de barricada e escudo, inclusive e principalmente moleques de 12, 13 anos. E Sabe de uma coisa? Isso não significa nada, por causa de bandidos que vestem fardas, nós todos pagamos, a população não só não confia em nós e nos teme, ela nos odeia. Mas o incrível é que nossos chefes políticos também nos odeiam, parece que todos nos odeiam, simplesmente porque combatemos com os métodos que nos ensinam, com as armas que nos dão, combatemos temendo morrer a cada esquina, dentro de um ônibus, na porta de casa, mais que no próprio combate diário com os marginais. E menino, é no combate que vemos que nada diferencia da guerra oficial, combatemos com a moral oficial, mas sem nenhum suporte, físico, financeiro ou moral, e ainda temos um arrojado marketing na imprensa contra nós. Se fores tu o baleado talvez vire notícia, e se virar será um detalhe desimportante “Morreu três bandidos e um policial” A Imprensa não vai entrevistar a viúva, não vai fazer ronda na porta do hospital, se for um popular pobre será assim também mas depende da ocasião e do caso, se for classe média aí começa o show. Mas note mesmo em casos extras, a polícia é a menos visada, quando tudo sai bem, foi dever, e claro foi mesmo, mas nenhum ser humano desprezaria um pouquinho de gratidão, reconhecimento. A Moral da turma está realmente em baixa, tem de se envergonhar até do uniforme, ele pode representar sua morte sem assistência.

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Agora Fagner estava na sala de jantar de barba feita, sua mãe estava assistindo um programa da tarde, em borá já fosse noite, ele desviou-se de um tamborete que era descanso dos pés dela, e foi direto a cafeteira elétrica, depois do cafezinho, olhava pensativo para a TV, conseguiu colocar o carro do velho fora da estrada, conseguira que o carro desabasse num precipício de trinta metros, mas em baixo não havia rio, só mato. Na realidade estava certo que o Velho não morrera, só tinha tomado um susto, não queria mesmo matar o velho, a caminhoneta que Fagner usava só esbarrou de leve no carrão importado e preto do velho, este se descontrolou muito rapidamente, qualquer motorista iniciante tinha conseguido controlar o carro e voltado a pista, mas sem explicação o carro praticamente voou pelo acostamento derrubando um para quedas de metal e se precipitando na queda numa curva bem aberta e numa estrada em bom estado e larga. Bem na hora Fagner se arrependeu amargamente, mas ficou espantado com o resultado, enquanto estava tranqüilo que o Velho apareceria com algumas ataduras e uma suspeita no olhar. Sabia que agora a situação se agravara, mas estava conformado, não era um assassino, nunca mais faria aquilo, por amor a mulher alguma, ou faria? Não tinha tanta certeza, e voltou a desejar que o Velho tivesse mesmo morrido, se achou covarde e fraco, Délia tinha razão, se o velho não morresse agora eram os dois na cadeia, porque o velho certamente o denunciaria mesmo não o tendo visto, era só saber contar dois mais dois, e a polícia não era tola assim.

Na Tv os noticiários de sempre, a Presidente eleita isso e aquilo, a volta do CPMF com certeza, e outros impostos, enfim a volta do desemprego e da desestrutura da educação e saúde que nunca... pere aí, “Assim é encontrado o Dr. Ulisses Malaquias, famoso cirurgião das estrelas, casado com Dona Délia, ex atriz e sambista da Escola.....” encontrado felizmente, claro que deve estar.... “Perícia, e seu corpo foi removido...” eita danou-se, corpo? Removido? Matei o cara.

Era minha vez de entrar no seu sonho

Assim Fagner e D. Délia se saíram do assassinato, inquérito concluiu por uma manobra mal feita, certamente para desviar de algum motorista afoito na contra mão, ou algum animal na pista. Délia foi ao funeral e ao testamenteiro praticamente na mesma semana passava a dona da fortuna de Malaquias e Viúva, agora com caso claro com Fagner, DJ da noite dos bairros periféricos.

Casaram-se em menos de seis meses, e viajaram para os Estados Unidos para a merecida Lua de Mel.

Na noite de 1º de janeiro de dez anos depois, Wolpe limpou seu 38 velho e antiquado, lubrificando-o, na sala estavam muitos policiais fazendo o mesmo, soltando as absurdas piadas que se faz quando se encontra em desesperada tensão, eram qualificados soldados do combate ao crime, tinham passado a moral do tempo, e os calos da ingrata profissão, mas aquela noite a missão era mais cruel, tinham de tomar de assalto uma comunidade inteira, foram treinados exaustivamente para enfrentar uma luta na comunidade onde os moradores eram além de reféns e vítimas dos bandidos, fortes resistentes a polícia, esta tinha elevado índice de impopularidade e rejeição, uma aversão causada pela decepção, desgosto e pelo temor, na ordem decepção de ver a lei e a ordem serem ridicularizadas naqueles representantes da mesma, desgosto de verem suas chances de viver dividida entre a bala dos bandidos, pressão e chantagem dos bandidos, e a bala da polícia, pressão a abuso de autoridade, banditismo policial nos seus dia a dia. Temor além das armas expostas e risos debochados dos bandidos e a farda armada da polícia, para eles, tudo o mesmo elemento. Mas tinha de cumprir o seu dever, honrar seu juramento solene, sua farda, sua profissão, mesmo que isto parecesse cafona e ultrapassado nestes dias violentos de desamor e sarcasmos. Porém incrivelmente, todos ali pensavam assim, e só diziam isso quando violentamente bêbados ou febris.

Naquela noite, um brilho e um rastro cortou o espaço entre algum edifício lá em cima, e a esquina onde ajoelhado espiava para a rua negra deserta, o brilho veio até ele rápida e silenciosamente, deu-lhe um murro na cabeça, lembra do chão no seu rosto, lembra de mais pancadas no seu corpo, nem sabia que estava deitado de banda ainda segurando sua arma.

Este sonho estava acabando eu só podia amenizar o sofrimento fazendo-o lembrar mais uma vez de sua irmã no sítio em São José da Laje em Alagoas, enquanto ele corria e zizaqueava para se livrar das pedrinhas lançadas pela peteca dela, depois de ter feito xixi nas roupas íntimas dela que estavam secando no varal.

Dormiu o sonho sorrindo, e sorrindo me chegou, pequei pela mão e fomos cumprimentar o velho rejuvenescido Sargento Ramalho, que deixou as válvulas de sua emissora de rádio criada por ele, e veio correndo mesmo dar um abraço de boas vindas ao companheiro de armas.

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Fagner voltou cheio de esperança no futuro, jovem forte, ele conquistou o meio artístico com seu jeito moleque e seu talento musical, foi da periferia para os mais refinados palcos, tudo com influência reconfortante do ouro do velho, administrado pela Délia e agora por ele, vez que tinha muito mais que ela agora, era muito mais rico e famoso, enquanto isso Délia murchava, não tendo mais domínio financeiro, via Fagner arrodeiado de lindas garotas todas praticamente de sua geração.

Um porteiro muito alegre foi requisitado, recebendo uma fortuna, atropelou Fagner na saída de um show,

Fagner virou cadeirante, e nem bem saiu do hospital, já na porta de casa, foi assaltado, deram - le pancadas e tiros, voltou ao hospital, depois de estar melhor, ao ter alta, pediu proteção policial, sabia quem estava tramando sua morte, já fora ingrediente daquele veneno.

Entre choro e riso, acordou, chamou a enfermeira e mandou buscar a polícia, tinha um depoimento a fazer, queria comunicar um crime, queria se entregar, queria a consciência limpa.

- Pois é seu delegado, é isso mesm0, fui eu que empurrei o doutor precipício abaixo, a mando de sua esposa, minha amante.

O SONHO OLHOU EM REDOR, SATISFEITO, FUI EMBORA, não sem antes entender porque ainda existe amor na terra, estes humanos são realmente surpreendentes.