O MUNDO DAS PERSONAGENS

O MUNDO DAS PERSONAGENS

Já não sei em que mundo vivo! Acho que transito em qualquer um. Tanto convivo com meus pares quanto com os do mundo externo. Sei lá! Confesso que ando confuso. Essa vida dupla, tripla, quíntupla talvez, me faz perder a noção tanto da realidade como da supra-realidade. Outro dia mesmo falei com meu camarada José Dias , o agregado, e ele até me questionou em que mundo eu estava?! Mesmo que esse questionamento tenha sido denotativo, isto é, a partir do estado de abstração em que eu me encontrava, ele serviu para me fazer refletir.

Sim! Em que mundo ando? Confesso também que o mundo da realidade me apavora um pouco. O da supra-realidade apresenta as mesmas coisas que o da realidade, isso é verdade, mas eu sempre me tranqüilizo sabendo que tudo não passa de mera ficção. Porém, o que tenho encontrado no mundo real não, lá morte é morte mesmo, assalto é assalto mesmo, corrupção é corrupção de verdade, mentira é mentira e traz seus efeitos. Sei lá, não nego que até estou feliz de conseguir invadir mundos tão distintos e tão parecidos, mas estou assustado.

Até o mesmo Brás Cubas , que, pela ficção talvez tenha feito a mais profunda análise da não-ficção, me disse que não carece ficar assustado, a vida lá é essa mesma, sempre foi assim, que eu falasse com personagens de outros livros que eles me contariam tintim por tintim, sem cobrar nada, como eram as coisas naquelas priscas eras, nunca foi diferente, nunca foi diferente!!! Eu sabia disso, eu narrei todos os livros!

De qualquer forma, louvável a atitude de Brás, tentando me acalmar. João Romão , supra-real que usou e abusou da corrupção ao explorar os moradores do cortiço de sua propriedade, ria de mim, seus olhos indicavam algo que eu ainda não tinha decifrado, mas que o sorriso me esclareceu logo: “o que você esperava de atitudes humanas senão isso!?”.

Ele, ladino, queria se autojustificar, mostrando que suas atitudes, principalmente com a pobre da Bertoleza, tinham raízes sólidas naqueles que lhe serviram de modelo. Espertalhão! Por isso saiu da miséria para a riqueza e depois disso mudou sua vida da simplicidade para a sofisticação. É que ninguém sabe como ele vive hoje, depois que acabou a história lá no livro.

Ao lado dele estava o Fernando Seixas tentando provar o contrário. Ele teve tudo para explorar alguém, tudo para levar uma família toda à falência e não ter a mínima dor de consciência! No entanto, não, foi honesto, cumpriu suas obrigações e teve lá seu prêmio.

─ “Mas ele agiu assim porque tinha o amor como respaldo ao seu caráter, e o amor é um sentimento forte que deixa os homens abobados, senão você ia ver se ele cumpriria suas obrigações! Tendo o coração preso àquela criatura maravilhosa da Aurélia Camargo, até eu me submeteria” – bradou aos meus ouvidos o truculento Paulo Honório , que não se deixou vencer pelo mesmo amor. ‘Tadinha da professorinha Madalena, que tentou dar um coração a esse contraditório!

O primo Basílio dá sua risadinha irônica vendo Paulo Honório tentando justificar o injustificável. Os crápulas se entendem e se atraem! Aurélia Camargo ficou feliz com o que disse Paulo Honório. Embora as personagens não sofram mudança de caráter (será!?), sempre há alguma rebeldezinha. É possível que Aurélia estivesse querendo provar o que era um insensível, um monstro social!? Gozado! Cheguei a sentir que Luísa torcia por isso. Aí teria mais uma dissimulada para sua companhia. Aquele sorrisinho dizia muita coisa. Ou nada! Deu o braço a Virgília e, elegantemente, saíram sorrindo e conversando sobre futilidades.

E o Bentinho , o Dr. Bento Santiago!? Veja o que ele fez e faria?! Quase mata o filho, a esposa. Tudo pelo seu egoísmo e umbigo. Mas é ficção, e tudo não passa de fantasia, mentirinha. Mas um egoísta do seu mundo aí, esse não. Um cara nada dirigível! Esse prende e seqüestra uma ex-namoradinha, depois mata mesmo. Mata de verdade. Mata com enterro real, com caixão e tudo. Sei lá! A ficção me agrada mais. Narrar o real não é minha praia mesmo! Nasci para a ficção.

Flagrei Capitu me olhando com aqueles inefáveis olhos oblíquos de cigana dissimulada. Aliás, Capitu é a personagem que mais se afasta deste mundo. Parece que a ela foi dada alguma licença especial, um alvará, e ela vive metida, invisível felizmente, aí no mundo de vocês. Adivinhem onde? No Louvre, é claro. Parece que ela tenta decifrar aquele olhar e aquele sorriso de Monalisa, a qual pertence a um mundo mais estático. Passa horas curtindo aquele sorriso indecifrável. Talvez compare com seus olhares! Coisa de fã, de admiradora! Era sua eterna ressaca!

Como amor e paixão movem muito as personagens, o mesmo Jerônimo também me vem à cabeça e o vejo ali! Esse português, que foi joguete da paixão e não do amor, nos olhava cabisbaixo. Ali estávamos João Romão , Fernando Seixas, Paulo Honório e eu. Tentamos, mas Jerônimo não emitiu opinião sobre o que Paulo Honório havia dito. Permaneceu com o ar aparvalhado que, em alguns momentos, lhe caracteriza a eternidade. Quanta injustiça esse criado cometeu com a família, na sua transformação! Pai tão bom! Marido exemplar! De repente, tudo o atropela, pelo calor de uma mulata fagueira e fogosa! Matou Firmo (que também anda por aqui meio contrafeito)! Perdeu tudo! E daí? Sua história comove e causa ódio, mas... é ficção.

Já a sua realidade aí não tem jeito não. Aqui no meu mundo, Jerônimo, um personagem que ainda não conseguiu se livrar da noção de que é apenas uma personagem, de vez em quando fica assim, triste, angustiado por tudo que fez na história de que participou! Mas, mesmo assim, na maioria do tempo curte sua liberdade, sua novela já ocorreu há muito tempo, agora é buscar caminhos. Muitas vezes consegue ser divertido e até convive com a filha e a esposa, que riem dele, porque Jerônimo continua se autopunindo, como se tudo não tivesse sido apenas mentirinha.

Quem eu vejo ali?! Nossa, fazia tempo que não a via. Eita menina arretada! Tatisa ! Vocês se lembram dela? A Tatisa dançarina, pelo menos em relação a carnavais. Agora aqui, depois de emocionar e angustiar vocês na sua história de que participa, ela, a sua empregada Lu e o pai, o moribundo que morreu, se divertem lembrando-se da esplendorosa criatividade da sua criadora ao fazer aquelas lantejoulas correndo atrás da Tatisa escada abaixo. Quem está sempre com eles são Ricardo e Raquel , o ciumento e a interesseira de outro conto da mesma autora, um conto tétrico que opõe magistralmente a vida e a morte. Todos convivem harmoniosamente, curtindo sua precoce aposentadoria. Parecem até governadores e presidentes aí do mundo de vocês.

E assim eu poderia ir relatando como vivem as personagens no seu próprio mundo! Olha ali Diadorim , o/a delicioso/a Diadorim! Espremendo os peitos para esconder sua doce feminilidade, mas, ainda que ‘homem’, endoidecendo de paixão o pobre Riobaldo, que achava que tinha feito pacto com o Diabo e por esse motivo, no seu íntimo não revelado, julgando que estava sendo castigado pelo inconcebível pacto, apaixonando-se logo por um “homem”! Oh! Deus! Que confusão! Até o desgraçado descobrir que sua paixão era por uma mulher! Mas aí foi tarde, o autor matou sua amada! Como não voltaram em outra história, curiosamente os dois se dão muito bem aqui e vivem juntos. Não, não têm filhos não, são só eles mesmos, curtindo os prazeres da eternidade em que estão metidos.

Quem os visita sempre e se dá muito bem com os dois e vive a perene alegria da sua conquista, porque foi decisão tomada e buscada até ser alcançada, é o forte Augusto Matraga . Sua hora e sua vez ninguém desfez! Eita cabra macho! E seu maior amigo aqui é outro grande sujeito, Joãozinho Bem-Bem, o mal-mal, ou mau-mau, da sua história. Matraga devia essa felicidade a Joãozinho. E Joãozinho, no íntimo, já estava mesmo cansado de fazer mal. Ambos se respeitam pelo bem que um fez ao outro. Por isso, aqui são duas canduras. Sem chance de voltarem a trabalhar novamente, colhem os prazeres da aposentadoria das personagens. Essa sim vale a pena, pelo convívio com os pares.

Vendo o que vejo aqui e o que vejo aí, me alegro e me entristeço. Olho aí na realidade de vocês os similares de Fabiano , Sinhá Vitória, o menino maior, o menino menor, a baleia, etc., e morro de pena. Eles aqui não vivem mal não. Continuam absolutamente desprovidos de cultura, isso é eterno neles, foram assim criados e personagem não muda quase nada não, mas têm também a humildade que deveria caracterizar um ser humano, a honradez que também deveria caracterizar mas... Enfim, vivem bem porque, à semelhança do que ocorre no Admirável Mundo Novo , assim e para isso foram criados. Felizes. Os do seu mundo, bem... você sabe como os assemelhados vivem aí. Falta muito para o seu mundo brasílico atingir o mínimo da decência social.

Vou contar uma coisa que só eu posso contar. Sim, só eu porque sou único desde a primeira criação artística verbal. Esse mundo da ficção, a cujo íntimo só eu tenho acesso, porque convivo com todas as personagens, esse mundo é tão restrito e tão amplo ao mesmo tempo, dele ninguém sai (exceto Capitu, como já disse antes), porém muitos entram! Há uma espécie de película que separa seus personagens desse outro mundo astral para o qual são enviados alguns de vocês após a morte. Pois bem, eu, que tenho o poder de viver todos e quaisquer mundos, vejo o que acontece aqui e acolá. Estão curiosos né!

Esperem, vou contar. O meu mundo, à semelhança do seu, também têm espécies de guetos. Cada um com sua língua. Esse sobre o qual estou falando para vocês é o luso-brasileiro. E nem citei quase personagens portuguesas. Limitei-me às brasileiras. Mas o que quero falar é que, do outro lado da película que separa esses dois mundos a que me referi, como que condenados a viver sua própria “eternidade”, estão centenas de criadores curtindo suas criaturas, sem mais poder interferir.

Dos brasileiros, tendo a mesma louvação e primazia que tinha aí, está no lugar mais privilegiado o inigualável Machado de Assis, ao lado de Eça (que vive conversando com o Bruxo, com Graciliano, Clarice e João Guimarães, seus preferidos, debandou do lado português), Graciliano, Clarice, Cecília, José de Alencar, Aluísio, Manuel Antônio de Almeida, Jorge Amado, Drummond, Bandeira, Vinícius, Tom, Guimarães e tantos outros. Olha, é gente que foi a seu mundo só para criar e abastecer outro mundo. Dá gosto de ver como curtem, como absorvem o que fizeram. Talvez, quando voltarem a seu mundo, produzam mais vidas para o meu mundo ficcional. Sei lá, quem sabe!

O melhor é ficar por aqui, porque já estou sendo até injusto falando só de alguns. O problema é que meu mundo tem milhões de criaturas e não daria pra falar de todas. Citei essas aí porque calhou. Foi apenas fruto de uma reflexão a partir das barbaridades que, com a perenidade de um Narrador, consigo observar em todos os mundos. Melhor ficar por aqui mesmo. E me contradigo com o que disse lá na abertura dessa peroração. Sei sim em que mundo vivo. E ele não é o seu, meu caro leitor. Chega!

Leo Ricino

Dezembro de 2008.

Mexido em 22/01/11

OBS.:

Aviso aos curiosos:

1) Este é um conto inacabado, porque posso ampliá-lo sempre que me lembrar de outras personagens de marcantes romances e contos da nossa literatura.

2) No original que tenho comigo, há notas de rodapé informando a que romance ou conto cada personagem que aparece nessa história pertence. Se algum leitor se interessar e quiser receber o original, é só me mandar um e-mail e mando. Aqui, as notas não apareceram.

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 22/01/2011
Código do texto: T2745596