Dimensão paralela

Embora eu adore os benefícios que a energia elétrica, água encanada e Internet me trazem, estas coisas, pelo menos uma vez por mês conseguem estragar meu dia. Normalmente isto ocorre no dia 20, quando o correio envia uma série de envelopes contendo contas e mais contas para pagar. Nesses dias eu acordo um pouco antes da hora, tomo um banho demorado e reviso minha vida de forma a tentar me convencer de que tudo tem um lado bom. Depois do café da manhã, caminho devagar até minha agência bancária, respiro fundo e entro. Uma das maiores dificuldades para os clientes honestos do banco é precisar passar pela porta giratória com detector de metais, aquelas moedas que achei na rua e guardei no bolso para dar sorte de um momento para outro travam meu caminho e fazem a máquina apitar. Ao primeiro apito o segurança do banco corre em minha direção, representando pela milésima vez no dia seu papel de policial apavorado, que com a mão segurando o cabo da arma na cintura me diz para esvaziar os bolsos.

Celular, moedas da sorte, correntes da sorte e até a fivela do cinto são retiradas para que finalmente eu consiga entrar no banco, sentindo-me azarado e sem nada que segure minhas calças. Sorrio para os outros clientes do banco, eles assim como eu já passaram pelo ritual de passagem e me observam com sádica atenção. Um menino de mãos dadas com a avó pergunta sem nenhum pudor por que é que minhas calças estavam caindo. Não respondi, um dia ele vai entender.

Recuperados meus objetos, calça presa, pego uma senha, sento-me e espero. Enquanto o tempo não passa não existe nada melhor para fazer do que acompanhar outras pessoas e seus próprios sofrimentos pessoais no momento em que desejam livrar-se de seus metais.

Um homem tirou dois celulares, seu bolso deveria ter meio quilo de moedas, mesmo assim a porta não o deixava entrar para a alegria de todos os que assistiam. Ele tirou metade da camisa para mostrar uma enorme cicatriz sob seu braço e gritou que ali dentro haviam pinos cirúrgicos que ele não poderia retirar. Para quebrar o silêncio geral do público que o assistia a criança pergunta para sua avó: “Por que ele não tira o outro celular da calça?” ao que sua avó apenas o repreende.

O homem da cicatriz entra e recupera seus pertences, segundos após, evidencia que o volume em suas calças era uma arma de fogo, e não um terceiro celular como a criança imaginava. Um tiro certeiro na testa do pobre e gentil segurança seguido de um grito do bandido para que todos deitassem ao chão, foi mais do que o suficiente para que todos os clientes e funcionários amontoassem-se em um enorme tapete humano.

O bandido estava conseguindo o que queria, uma terrivelmente pálida funcionária enchia uma pequena sacola com o dinheiro de todos os caixas. O bandido queria mais e a funcionária tentava explicar que o cofre só abriria no horário marcado, mas, ele não queria ouvir e lhe deu um tiro na perna.

Provavelmente um alarme silencioso foi disparado por que logo a polícia cercou a agência. Apavorado o bandido pegou o menino como refém. A avó que protestou aos gritos foi assassinada segundos depois. O Bandido não parava de repetir que não estava brincando e naquele momento, um heroísmo completamente desnecessário se apossou de mim. Quando ele virou as costas por um mísero segundo, pulei sobre ele, empurrei a criança para longe e tentei enforcá-lo com uma chave de braço. Ele se contorceu bastante, venceu a luta e muito rapidamente empurrou-me para longe e acertou-me um tiro no peito. Pude vê-lo sorrindo enquanto atirava também na criança que gritava e escolhia pelo chão uma outra pessoa para ser sua próxima refém.

O mundo escureceu e de um momento para o outro eu estava descendo a rua para ir a agencia. Era uma sensação muito esquisita lembrar do que eu lembrava. Sempre acreditei que não estamos apenas em um lugar, mas, nunca antes tive alguma evidencia disto. Minha impressão é de que nossos espíritos se dividem em múltiplas dimensões e vivem ao mesmo tempo diversas existências diferentes em realidades muito semelhantes entre si, porém, com algumas diferenças sutis entre cada uma delas. Ainda tinha em mente que eu deveria estar subindo a rua para chegar ao banco, mas, no momento eu descia. Coloquei a mão no bolso em busca de minhas contas e tudo o que encontrei foi uma arma.

Um silêncio desesperador tomou minha mente, que projetava como filmes a explicação para o que estava ocorrendo. Nesta dimensão eu era o bandido. Minha esposa e duas filhas estavam presas na casa de um traficante, conhecido como Serginho. Eu devia a ele muito dinheiro por causa de um jogo de poker. Eu deveria pagar minha dívida ou vê-las sendo prostituídas, escravizadas e torturadas até que Serginho as liberasse. Meu braço doía, havia mesmo feito uma cirurgia para consertar o estrago que o primeiro cobrador de Serginho havia me causado. Ainda lembrava das emoções que sentia em minha vida anterior, mas, as emoções atuais dominavam-me por completo. Entrei no banco sem pestanejar.

Foi bastante simples convencer o segurança a me deixar entrar, eu tirei um celular velho do bolso direito, tirei um celular novo do bolso esquerdo, tirei muitas moedas do bolso da camisa. Na terceira tentativa, levantei um pedaço da camisa de maneira a mostrar apenas o lado do corpo que não portava uma arma e exibir a cicatriz. É fato, basta insistir um pouco que o segurança sempre irá permitir a entrada de qualquer um. Sem um raio-x ele não pode me negar a entrada sem que eu processasse o banco por qualquer motivo.

Eu não queria realmente matar o segurança, na verdade não queria matar ninguém. Só desejava o dinheiro para salvar minhas filhas e esposa, mas, o segurança estava armado e poderia me fazer fracassar. Atirei nele tentando não pensar. Quando vi seu corpo caindo ao chão, ocorreu-me que se eu fosse bem sucedido em meu assalto passaria o resto da existência em um corpo de bandido, fugindo e sofrendo com minhas próprias memórias de outras vidas, mas, era muito tarde para desistir. Eu amava minhas filhas e não poderia deixar que Serginho as transformasse em prostitutas baratas.

A funcionária que colocava o dinheiro em minha sacola estava me atrasando e eu sabia disso. Antes de assaltar o banco estudei cada um dos horários e procedimentos para abrir o cofre. Sabia que ele estava aberto naquele momento e fiquei furioso com as mentiras que ouvia. Atirei em sua perna, não queria mais matar ninguém, só queria respeito, queria pegar o dinheiro e fujir. Imaginei que se as pessoas soubessem que eu não estava brincando, um funcionário qualquer iria me dar o dinheiro que eu precisava.

A polícia cercou o prédio e eu não tinha mais escolha. Estava apavorado. Algo dentro de mim gritava para que eu não cometesse o erro que vi acontecer em outra existência, mesmo assim, eu sabia que minha única chance de escapar seria fazer um refém. Escolhi a velha senhora, que depois da criança seria a pessoa com menos chances de reagir. O menino deitado ao chão, ao ver que eu levava sua avó com uma arma na cabeça começou a gritar. Eu precisava pensar e aqueles gritos me atormentavam fundo na alma. Escolhi a velha para não machucar o menino, mas, atirei nele! Eu não queria, mas, atirei. A velha mordeu-me o braço com sua afiada dentadura e começou a socar meus testículos até que cai ao chão. Em poucos instantes vários clientes furiosos comigo levantaram e começaram e me chutar com força, olhei para cima e reconheci meu antigo corpo, que chutava sem nenhuma piedade. Minha arma foi jogada longe de minhas mãos, a policia logo entrou no prédio e disparou seis tiros em meu peito. Pude sentir cada um deles antes de morrer, rasgando e queimando minhas vísceras. Enquanto o mundo escurecia eu imaginava o cruel destino que impus a minha amada esposa e minhas lindas filhas. Era eu quem deveria pagar pelos meus erros, não outras pessoas. Pensei no menino que havia morrido por minhas mãos sem nenhum motivo e acreditei ser merecedor de cada dor ou sofrimento que o futuro me submetesse.

Senti finalmente uma paz interior que é difícil de descrever, alguém segurava minha mão com carinho. Olho para cima e vejo minha avó, que pacientemente esperava ser atendida. Eu estava tão feliz, era o meu primeiro dinheiro, minha avó havia me dado. Iriamos abrir uma poupança para que quando eu fosse maior pudesse comprar um carro, uma casa, um avião e tantas coisas que eu sonhava em ter. Um rapaz entra no banco com as calças caindo, eu me divirto e pergunto para ele por que é que ele não segurava com as duas mãos. Minha avó aperta silenciosamente minha mão, uma forma carinhosa de me avisar que eu estou constrangendo o pobre rapaz. Eu conheço ele, eu já fui ele. De um momento para o outro memórias fundem-se em minha cabeça infantil. Sorri para ele e ele devolveu-me o sorriso, talvez ainda reconhecesse um pouco de si mesmo no brilho de meus olhos. Após isto, um outro homem tentava entrar no banco. Enquanto todos olhavam para a cicatriz que ele exibia no braço esquerdo, reparei no volume que existia no lado direito da calça. Sem pensar perguntei alto para quem quisesse ouvir: “Ele tem um revolver no outro lado?”. Minha avó me repreendeu, mas, o segurança ouviu, percebeu o volume e sacou sua própria arma.

Todo mundo estava assustado, eu apenas me divertia de ver tudo acontecer outra vez de uma maneira diferente. A arma foi descoberta e o bandido foi rendido antes de dar o primeiro tiro. As pessoas estavam muito nervosas com tudo aquilo, mas, precisavam resolver seus assuntos mesmo assim. Minha avó mal conseguia respirar com o medo que sentia, mas, abriu minha conta da mesma forma.

No final do dia, com minha caderneta de poupança aberta, contei para meus pais tudo o que havia acontecido. Eu queria ajudar a esposa e filhas do bandido, mas, as memórias fugiam da minha mente quando tentava falar. Dentro de mim existe a sensação de que eu também serei elas em algum momento, assim como já fui tantos outros. Esta sensação me dizia que tudo iria dar certo no final, que sendo elas eu saberia como fujir, que sendo Serginho eu saberia como perdoar. Meus pais não ouviram uma única palavra, mas, quando eu for meu pai irei fazer diferente. Quando eu for minha mãe darei mais atenção. Finalmente, quando eu for adulto e tiver minhas próprias contas para pagar, usarei o débito automático.

=NuNuNO==

(Que quando for você, o leitor, irá gostar da história)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 22/04/2011
Reeditado em 23/04/2011
Código do texto: T2924261
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