ESCREVENDO A PRÓPRIA HISTÓRIA

PRÓLOGO

Sertão. É, estamos no sertão dos excluídos. Sertão que não tem água, não tem sonhos, não tem nada.

Casas feitas de madeiras entrelaçadas e cobertas de barro, fogão à lenha na cozinha, rede no quarto e pouco feijão na panela preta de carvão.

Ali, naquela casa de terreiro grande e vermelho, com cerquinha de finos gravetos, mora Marizéia, filha de Severina e Romoaldo, irmã de Marinete, Maricleuza e Toinho. Uma família que dá duro na roça, no corte de cana.

Ali, naquela outra casinha um pouco afastada da casa de Marizéia, mora Erinelso, filho de Conceição e João, irmão de Rita de Cássia e Bentinho.

Marizéia e Erinelso se conhecem desde que nasceram, não sabem exatamente quantos anos têm, mas calculam que seja por volta dos doze ou treze anos, Marizéia é a mais velha dos irmãos e Erinelso é o filho do meio.

Os dois, nos raros momentos de folga gostam muito de prosear, geralmente ao cair da tarde, quando a noite está chegando. O céu do sertão é muito lindo. As estrelas parecem maiores, a lua brilha mais, o ar é fresco e dá uma “priguiiiça”!

Ali estão Marizéia e Erinelso, deitados sobre o monte de lenha seca, contemplando as estrelas... a lua...

-Nerso?

-Qui é?

-Será qui inxisti mermo o São Jorge?

-Osh! Ocê num tá veno ele não é?

-Ah, eu vejo é uma mancha iscura, mais quem agarante que é mermo São Jorge?

-É pecado duvidá, visse?!

(Sinal da cruz.)

-Ave Maria, Nerso, ocê tem a razão!

(Silêncio, contemplação...)

-Marizéia?

-Diga...

-Ocê quiria cunhecê o céu bem di pertinho? I lááá nas istrela? Devi di sê lindo né. Si eu pudesse ia lá e trazia um saco cheio di istrela e pregava tudo drento di casa qui era pra modi ficá tudo alumiado.

-Vixi, qui ia ficá lindo pur dimais, já pensô?

Dois corações a devanear, a ter sonhos como qualquer outro adolescente, claro que “muuuito” mais inocentes que em outras partes do mundo.

Suor nos corpos raquíticos, o corte de cana judiava, qualquer pessoa “normal” não agüentaria, mas o povo forte do sertão, já calejado, parece não perceber o quanto esse serviço pesa. Ainda no final do mês, quando recebem seu miserável salário, têm muita disposição para ir “forrobodiá” na cidadezinha mais próxima. Quando é festa de São João então... “Vixe, nem se fala!” A disposição se multiplica por mil. É só festa e alegria.

-Vamu dançá eu mais ocê, Marizéia, êta qui essi forró é porreta!

Agarram-se, saem dançando esquecidos da vida. “Marizéia tá tão bonita! Até um batom vermelho a danada passou. Seu vestido também, apesar de ser um velho conhecido de Erinelso, todas as vezes que ele vê Marizéia vestida nele sente muita admiração. É como se fosse a primeira vez que a visse assim... tão... linda! Fitas no cabelo, óleo de lavanda... Êta muié cherosa!”

O forró não se cansa e os casais que ali rodopiam também não. A poeira sobe, o suor desce, mas dali ninguém arreda pé. É uma cachacinha aqui, outra ali, um correio elegante aqui, outro ali, um aperto de mão, uma cafungada no cangote, às vezes até um desentendimento. Quando isso acontece, a “pêxera” risca o ar e a festa se acaba, mas não... isso não está acontecendo agora. Agora todos estão felizes. Erinelso e Marizéia estão em sincronia com seus corpos, esquecidos da vida. Erinelso está muito “bunito”, “vixe” que até “butina” ele tá usando, passou trim no cabelo e tá muito “prefumoso” .

-Licença Marizéia. –Era o correio elegante que chamava-. Tem um correio pra você.

-Osh! Pra mim? Di quem será? Vamu minina, leia isso logo pra mim, vá!

Erinelso sorri.

A mocinha do correio elegante sabe que a maioria daquele povo não lê nem escreve, mas ninguém se avexe com isso não, dão uma moedinha a ela e o recadinho chega tal e qual lhe é ditado. Isso é muito divertido, além de render-lhe um trocadinho.

“Marizéia, você parece uma flor de tão linda que é. Assinado: um admirador secreto, tente adivinhar, meu nome começa com E.”

-Viixe, minha nossa! Eu tenho um admiradô secreto!

E o forró continua, mas a noite já vai terminando e com ela os sonhos. Todos voltam ao corte de cana, ao feijão ralo, à busca pela água no açude que parece estar mais seco a cada dia. Mais lamacento.

Estão voltando com a vasilha de água na cabeça, apoiada por uma rodilha feita de pano. O caminho é longo, mas o costume fez com que ele se encurtasse um pouco. O bom era a prosa.

-Marizéia?

-Hã?

-Eu quiria tê um dedo de prosa c’ocê, quiria ti dizê uma coisa?

-Qui é, Nerso?

-Eu sô é cabra muito macho, num vô mais iscondê as coisa d’ocê não, visse?

-Osh! E ocê anda a iscondê coisa di mim é? Ara!

-O admiradô secreto que manda os correio procê sô eu. (acabrunhado)

-Osh, mais issu eu já sei, eta homi besta, pensava que mi inganava. (ri).

-Num si ria não, visse. Um amô assim feito o meu te agaranto qui num incontra outro ingual.

-Tô rinu d’ocê não abestado.

-Osh! I tá rino di quê intão?

-Ara, sei lá! Tô rinu di nóis.

-Vô pidi sua mão a seu pai. Quero me ajuntá.

-Vixi, será que pai aceita, ocê num tem nem uma tapera di pé ainda.

-Osh, levanto essa tapera em dois dia.

-Quero vê.

Mutirão “das redondeza”. Dois dias tapera em pé. Fogão à lenha, rede, panelas doadas.

Não pode faltar a festança. Não pode faltar o forró. O padre arrumou emprestada uma charrete para trazer os noivos até sua nova morada. Felicidade.

“Eta” que chegou a noite de núpcias. Novidade para os dois, mas já sabiam o que tinha de acontecer, e aconteceu. Qual era a idade dos dois mesmo? Ah, talvez agora já tivessem por volta dos quinze, quem sabe?

EPÍLOGO

Narrador: Eu devia “di” terminar essa história aqui com um sonoro “ ...e viveram felizes para sempre.” Mas como vocês podem ver não temos nenhuma princesa e nenhum príncipe por aqui, portanto....

O INUSITADO

Erinelson -Ei, ei!

Narrador -Ué, quem tá falando comigo?

Erinelson -Como assim, quem tá falando com você? Não foi você mesmo quem me criou?

Narrador -Erinelso?

Erinelson -Sim! Erinelso!

Marizéia -É! E eu também, Marizéia!

Narrador -Osh! Erinelso e Marizéia? Vocês não podem falar comigo, vocês são personagens da minha história, vocês são fictícios! O único que existe aqui sou eu: o narrador.

Erinelson -E daí? Só porque somos fic... fic sei lá o quê, você vem dizê que nessa história não tem princesa? Osh! E minha Marizéia é o que pra mim então? Fique sabendo que ela é pra mim uma princesa, é a flor mais linda desse sertão.

Marizéia -E o Erinelso pra mim é um príncipe, eta homi valente, por minha causa briga até com o narrador, quem dirá com um dragão que cospe fogo pelas venta.

Narrador -Peraí vocês dois, isso não pode acontecer! Quem decide dentro da história sou eu. Eu imagino um final que chamará a atenção de todos os meus leitores e termino a história. Aliás, a moda agora é escrever sobre os excluídos socialmente como vocês e quanto mais fiel à realidade mais a escrita faz sucesso entre os “intelectuais”, por isso a história vai terminar da seguinte maneira: Vocês continuam no corte de cana (tudo muito normal), vão ter oito filhos, não vão conseguir sustentar essa filharada toda, pois ganham pouco e num belo dia,... quer dizer... num trágico dia... tudo se acaba. O leite do peito de Marizéia seca, o feijão que já era pouco se acaba e todos morrem esquecidos dentro da tapera. Os poucos sobrevivente dessa grande seca migram para outro lugar e num futuro (que já é o final dessa história) inexplicavelmente, por cima da tapera de vocês, que já estará desmoronada pelo tempo, nascerá lindas flores e todos os que por este caminho passar ouvirá belas histórias sobre o casal e seus filhos que ali viviam.

Erinelson -Pode parar, seu narrador! Quem disse que eu quero virar lenda?

Narrador - E quem disse que você tem que se meter na minha história?

Erinelson -Ara, essa é boa. Ouviu Marizéia? Ele tá dizendo que a gente tá se metendo na história dele, mas ao que me parece a história é minha e de Marizéia. Você é que tá se metendo na nossa história. Você não acha que tá tendo uma inversão nisso tudo?

Narrador -Acho, acho sim! A história, realmente é sua e de Marizéia, mas quem a está criando sou eu. E tem mais, chega de discussão que eu vou terminar a história do jeito que eu previ.

Marizéia (Muita tristeza) -Ele tem razão Erinelso, somos meros personagens de sua imaginação e criação, temos que nos sujeitar ás suas vontades, ele escreve e nós representamos sua “realidade”, a que ele imaginou. Se temos que morrer para satisfazer seus “leitores” que podemos fazer? Ele vai nos matar e pensa que colocando umas florzinhas em nosso túmulo já tá bom demais...

Narrador -Não são flores no túmulo, são flores que nascerão numa tapera abandonada, isso é de um lirismo profundo.

Marizéia -Dá no mesmo. Será nosso túmulo por toda a eternidade, com ou sem lirismo.

Erinelson -Calma Marizéia, deixa que eu converso com ele.

Narrador (Irritado) -Ai, ai, ai! Chega de conversa mole, meus leitores estão querendo saber o final dessa história, já não estão mais agüentando essa ladainha, essa lamentação.

Erinelson -Já sei, seu narrador, por que não pergunta aos seus leitores qual final eles preferem, se o nosso, com final feliz, ou seja, eu e Marizéia casados, trabalhando, com... pode até ser oito filhos, mas todos com saúde e perfeitos. Já que o senhor é o criador dessa história e tudo pode, bem que poderia fazer chover no sertão, fazer crescer flores nunca dantes vistas por aqui, mas não flores no nosso túmulo e sim flores para enfeitar os belos cabelos de Marizéia. De repente até colocar uma escolinha pra gente ensinar essa molecada a ler e a escrever pra que ninguém queira enganá-las escrevendo o final de suas histórias. É, é isso mesmo. Já pensou se eu e Marizéia soubéssemos escrever? Poderíamos nós mesmos escrever o final dessa história, mas... (Muita tristeza e resignação) Não temos esse poder, então o senhor tem toda razão, o senhor é o dono das letras. Vai, pode nos matar, seus leitores estão esperando.

Narrador (Pensativo) -Acho que não posso matá-los.

Erinelson -Por que não? Não é o senhor o dono de nossos destinos?

Narrador -Pela primeira vez, mesmo que muitos achem um absurdo, personagens lutam para melhorar o destino de sua própria história, e isso meu amigo, eu não posso apagar, vocês me deram uma lição de vida. Quando queremos e lutamos, podemos mudar qualquer coisa. Vocês têm razão, Temos que dominar a escrita para escrevermos a história a nosso favor, a maior arma do ser humano é a palavra. A palavra , bem dita e bem colocada tem o poder de mudar o rumo da história. E essa história termina aqui, ou melhor, começa aqui, pois cada leitor poderá escolher o “final” que quiser. E isso, tenha certeza, não é ficção.

Eu não poderia terminar essa história sem dizer...

“...e todos escreveram suas histórias felizes para sempre!”