Refração

Tive um pesadelo, um dos mais estranhos... você estava nele. Sabe aqueles sonhos que você não sabe como começa ou termina e que você só lembra trechos? Então, meu pesadelo foi assim.

Acho que o começo foi uma parte em que éramos como um corvo e um lince "brincando" um com o outro, foi uma das partes mais confusas, por que às vezes a coisa ficava em terceira pessoa (eu via a mim mesmo), às vezes eu via tudo em primeira pessoa, como eu mesmo, e às vezes eu via como se fosse você (ou talvez fosse eu discutindo comigo mesmo, não sei).

Em momentos eu era o lince e você o corvo, em outros momentos os papéis se invertiam, nas piores partes nossos rostos humanos apareciam nos corpos animais. Só teve uma parte agradável em que você ficou mais humana, apenas com traços animais (do lince), toda ferina, toda esguia e arisca... Não gostava de você como corvo, dava medo.

Também lembro de uma viagem que fazíamos de carro, parecíamos recém casados em espécie de lua de mel, mas sempre que eu tentava segurar sua mão ou me aproximar você me dava um beliscão e dizia: "Sabe que ainda não chegamos lá...", mesmo assim eu não parava de tentar. Engraçado que parecia que nunca conseguíamos chegar onde quer que estivéssemos indo, eu sempre me perdia na estrada, parecia voluntário, parecia que eu tinha medo... De que? Por que? Você ficava cansada da viagem, pedia pra parar o carro e dizia: "Ficou tarde, vou embora..." enquanto sumia no horizonte.

Eu me via sozinho e perdido, sentia sua falta e uma constante dor no peito não parava, parecia que eu não respirava, que tudo estava frio, só a dor continuava. Minha mão ficava fora de controle e ganhava vida própria, estava toda enrugada e macabra, com escamas avermelhadas a cobrindo e garras enormes no lugar das unhas. Ela abria meu peito e arrancava meu coração, não sentia dor nenhuma apesar de estar assustado, apenas uma dor no coração que não era física. Mesmo depois de arrancado meu coração ainda batia na minha mão (que não era minha).

"Oi." escutei atrás de mim, me virei e vi você, sorrindo, mas com lágrimas saindo dos olhos e borrando maquiagem (você nunca foi de maquiagem, estranho né?). Minha mão estendia o coração a você e nesse momento eu ri, só pra perceber logo depois que também chorava. Você pega meu coração e começa a comê-lo pedaço por pedaço, isso pouco depois de dizer: "Eu não queria fazer, mas preciso muito." e eu não me importava, não doía, apesar de ainda sentir as batidas do coração e aquela dor espectral que estava lá, agora na sua mão e indo pra sua boca.

De alguma forma estranha eu percebi que seu próprio coração não batia e só depois disso percebi que você estava pálida... Mórbida. Depois de comer meu coração todo eu senti as batidas dele ainda fortes como se, mesmo tendo o comido pedaço por pedaço, ele estivesse inteiro dentro de você, e que não só isso, mas ele não estava no seu estômago e sim no seu peito. Tentei dizer alguma coisa contra minha vontade, minha boca parecia se mexer como minha mão, não sei o que queria dizer, as palavras não saiam. Tentei gritar com força e toda minha vontade, mas dessa vez a boca não obedecia. Respirei, juntei todas as minhas forças e consegui gritar o que queria, mas as palavras pareciam ter saído como num idioma estranho e daí eu acordei.

Sentei na cama e levei a mão ao peito, o coração ainda batia, ainda estava lá... A dor também.