O homem que não refletia

Já se passaram muitos e muitos anos desde a última vez que decidi não me olhar mais no espelho.

Ainda era um moleque de calças curtas quando resolvi que nunca mais veria a própria imagem refletida. Desde então, tenho me mantido fiel a esta resolução.

Durante todo tempo, sinto na pele que os anos transcorreram devido os olhares dos outros. Hoje, sei que sou mais velho porque garçons, porteiros, o jornaleiro e minha empregada - ou mesmo qualquer transeunte na rua - me chamam de “senhor”.

Poucos sabem que não me olho. A maioria deste pequeno grupo que tem conhecimento da decisão que tomei, pertence à minha família. São primos, primas, tios e tias mais velhas, poucos da nova geração estão conscientes de que recuso a me olhar.

Eles só descobrem o fato quando alguém mais velho do clã – um primo ou tia que primam pela ironia e o deboche – querendo assustar a figura mais jovem, logo dizem que sou vampiro e que, por isso, não posso ver a minha imagem refletida no espelho. Bobagens, tento não ligar.

Contudo, me incomoda profundamente quando um adolescente me olha de esguelha com um olhar ao mesmo tempo de fascínio e medo, dividido na incerteza gótica de um romantismo pós-moderno.

Criei a fama, agora deito na cama, conforme diz o ditado. Aliás: obrigaram-me a deitar.

Nunca senti falta de me olhar. Acho que sou igual àquela pessoa que acorda um dia, e ao ver um bife diz: não estou com vontade de comer carne. Passam-se os anos e não se dá conta que os dias foram se somando, transformando-se em meses, e os anos em décadas.

Porém, não olhar a própria imagem, tenho que admitir, causa pequenos transtornos. O pior que enfrentei foi quando ainda era jovem, e não tinha pelos suficientes para compor uma impávida barba. Coisa de adulto: serrada, cheia, criada com o acúmulo dos dias.

Com a chegada da idade, o que era antes um tufo aqui e outro ali, se transformou numa respeitável, primorosa e densa floresta negra que foi se modificando também, aos poucos, e hoje está dividida entre a brancura do algodão e o cinza das asas de um pombo.

Resultado:

hoje, vou a um barbeiro mensalmente para apenas aparar a barba, não deixando que cresça no estilo selvagem. Sempre quando estou na sua cadeira, fecho os olhos e deixo ser cuidado por suas habilidosas mãos profissionais.

Mesmo não me olhando no espelho, consigo chegar a esta conclusão apenas olhando para os pêlos do meu peito, vejo a textura de minha pele. Não preciso ver minha imagem refletida para ter consciência de que a velhice se instalou completamente.

Uma vez me perguntaram, era uma estudante de psicologia com pretensões filosóficas, se não querer me olhar era uma forma de fuga freudiana.

Como pouco entendo sobre Freud e suas teorias edipianas ou não, nada respondi. O que sei, e isso posso garantir, é que passo muito bem a minha vida sem querer me ver. Leio muito e os livros refletem as imagens que quero enxergar. Não preciso de espelho para ver o mundo e a mim mesmo.

Dizem as más línguas que sou anti-social. Pode ser. Não levo muito a sério, pelo menos tento não levar, as opiniões que os outros têm de mim.

Carla Giffoni
Enviado por Carla Giffoni em 11/06/2011
Reeditado em 23/07/2012
Código do texto: T3029055
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