Haviam crescido lado a lado no mesmo canteiro de um vasto roseiral. A rosa branca provinha de um tronco anoso, áspero e curtido pelo sol de muitos verões. A rosa vermelha nascera de um ramo novo, plantado de recente, ainda inexperiente do fluir inexorável da vida. Branca e Vermelha amaram-se desde o princípio.

          Era uma fresca manhã e um vento aromado expulsava os derradeiros resquícios de inverno para além do arvoredo, talvez para trás dos cumes escuros que se divisava contra o céu sanguíneo. O roseiral estava agitado. Oscilava ao sabor do fôlego da natureza. Caules jovens dobravam-se ao rés do chão, amedrontando os pequenos e delicados botões semi-ocultos em viçosas folhas verdes. Quando o fluxo de ar amainava, a ramagem voltava repentinamente, impelida pela força de arcos retesados, e os tenros botões deixavam no solo alfombrado e morno suas prematuras lágrimas de orvalho. E foi assim que Branca e Vermelha se tocaram pela primeira vez. Vermelha vergava em direção à terra, impulsionada pela sua haste flexível. Branca movia-se quase imperceptivelmente no espaço entre dois caules espinhosos. Fora um encontro fugaz e macio. Mal puderam revelar o tom de suas pétalas que não ousavam ainda romper o casulo vegetal. No vai-e-vem dos ramos, roçaram-se novamente e Vermelha depositou uma gotinha límpida entre as dobras aveludadas de Branca. Debalde Branca tentou conservar aquela primeira e preciosa dádiva de amor. O sol, uma gema enorme, altipotente, queimando sobre os montes esverdeados, secou-a sem piedade.

          Abriu-se outra manhã, mas o vento não soprou. Não se tocaram nesse dia. A escuridão de uma noite sem lua encontrou-as tristes e trêmulas de expectativa de outro alvorecer. Como ansiavam por uma lufada, uma aragem que fosse, que as aproximassem! Como Vermelha desejava — sabia-se impotente — achegar-se a Branca! Que felicidade seria poder acariciar uma vez mais aquele cálice sedoso! O disco amarelo surgiu, assomando sua juba luminosa, inundando de luz o vale verdejante, caminhou incansável o dia todo pela abóbada azul, e depois, no limiar da tarde, tornou-se grande e escarlate, até, finalmente, mergulhar nas águas calmosas do lago distante. A noite aquietou os pássaros e os insetos. O roseiral estava silente, adormecido. Só de vez em quando, um notívago pirilampo chamejava fortuitamente seu lampejo de esmeralda. Para as duas rosas amantes, bastava tão somente a simples presença do ser amado, porquanto o contato era um sonho impossível. Por isso sonhavam com a alvorada. Sobressaltavam-se ao menor movimento do sítio. Arrepiaram-se de prazer quando um galo das vizinhanças estalou suas asas e saudou as primeiras horas da madrugada com seu canto repetido, modulado e melancólico.

          E nessa manhã, quando o raio de sol mais afoito atingiu o roseiral, Vermelha e Branca quase desfaleceram de surpresa e de júbilo. Atônitas, mudas, deslumbradas, quedaram imóveis em mútua admiração. Haviam desabrochado completamente. Branca era alva como a mais alva nuvem que já viajara por aqueles céus. O cálice verde, quase escondido nas curvas suaves das pétalas, abrira-se desmedidamente, oferecendo ao mundo o mais requintado perfume que cuidadosamente preservara em sua concha. O velho tronco armara-se de ameaçadores acicates para defender tão mimosa filha. Entre duas pétalas eriçadas no centro da flor, Branca ostentava um belíssimo e cristalino aljôfar que reverberava em tons de arco-íris. Vermelha não era menos maravilhosa. Tinha a cor de sangue fresco, a textura de asas de borboleta, a fragrância mais envolvente e a leveza de movimentos sobre o talo verde-claro, elástico, agressivo. As pétalas externas, de bordas crespas, abraçavam-se e escondiam no centro as outras, úmidas, enoveladas, como se a flor receasse dar-se ao sol já totalmente descoberto sobre as colinas. Dir-se-ia que ocultava pudicamente seu perfume mais íntimo para oferecê-lo a Branca. Ressentia-se contra a natureza que a forçava ir se abrindo, mostrando-se, descobrindo-se e, finalmente, revelando-se em toda sua plenitude de rosa.

          Branca e Vermelha atravessaram o dia em êxtase de amor contemplativo. Não ouviram a passarinhada chilrear por entre os ramos, nem sequer se deram conta das chocas e seus pintainhos dourados a ciscarem, por entre os troncos, a terra fofa. Ficaram indiferentes à ardência do sol do meio-dia sobre suas pétalas sensíveis e não saborearam os pingos da chuva fininha que caiu no início da tarde. O cheiro gostoso de terra molhada não impressionou as corolas recém-floridas. Só tinham sentidos para si mesmas, todas as forças da primavera renovada pareciam dirigidas unicamente para o deleite de ambas. A noite desencantou-as e elas choraram pétalas de dor.

          No segundo dia após o florescimento, as rosas despertaram ainda mais deslumbrantes. A superfície de alabastro de Branca refletia a luz do novo sol com tamanha intensidade que a fazia cintilante, quase uma estrela. Vermelha, inteiramente revelada, era majestosa em suas mil nuances de tom acerejado sob luzes e sombras. Branca era pureza. Vermelha, calor. Branca oferecia-se com inocência. Vermelha recatava-se de pudor. Uma era amante. A outra, amor.

          Um zumbido inusitado vibrou o ar próximo às duas flores enamoradas. Era uma abelha e pousou nas pétalas delicadas de Branca. Vermelha enrubesceu tomada de violento ciúme. Quis mover-se, mas uma rosa não se move. Quis gritar, mas uma rosa não tem voz. A abelha continuava a possuir Branca e colhia das entranhas da flor violada o delicioso néctar. Branca delirava de volúpia. O recato, a candura, o amor por Vermelha haviam sucumbido sob as patas ágeis do ávido inseto. A abelha, contudo, tão logo se satisfez, abandonou-a. Vexada e consciente de seu arroubo, Branca não ousava encarar Vermelha.

          Pouco depois um belíssimo colibri voejou sobre o roseiral e preferiu Vermelha entre todas as rosas. Com emoção ela o recebeu. O longo bico filiforme penetrou-a e beijou-a no mais recôndito de sua corola. Afastou-se. Tornou a beijar. Branca empalidecera de tanto ciúme. Afinal o vândalo reluzente alçou vôo e disparou rumo ao arvoredo mais além. Vermelha ainda suspirava de excitação pelo assalto do ágil invasor. Envergonhou-se depois ao pressentir o sofrimento de sua amada.

          Ao final da tarde estavam arrependidas e reconciliadas e foi quando a tesoura de podar decepou-as dos ramos em que haviam florescido. O tronco jovem e impetuoso bem que feriu a mão do homem que ceifava no auge da beleza, sua primeira filha. O tronco velho nem se mexeu, sabendo inútil qualquer tentativa de defesa. Já vira muitas vezes suas rosas serem levadas. Repetidas perdas haviam-no embrutecido e o tornara impassível aos agravos do tempo e do homem.

          Branca e Vermelha foram atiradas em cestos de vime. Quis o destino das flores que mais uma vez ficassem apartadas. É certo que em cada cesto adjazia uma multidão de outras flores. Eram cravos, dálias, margaridas, violetas, amores-perfeitos, lírios, gerânios, açucenas, e principalmente outras rosas — róseas, brancas, amarelas e vermelhas. Estavam deixando o roseiral, o jardim, o sítio onde haviam nascido. As copas compactas da aléia sinuosa desenhavam escuras silhuetas contra o azul imaculado e esmaecido do céu. No sacolejo dos cestos, levados pelas mãos de um menino travesso e saltitante, as pétalas frágeis de Branca e Vermelha iam se ferindo nas esporas aciculadas de outros caules. Que tristeza para ambas não poderem compartilhar as horas finais da vida vegetal que ainda restava nelas! Se ao menos estivessem unidas no mesmo vime, quão mais doce seria a lenta morte! Para onde estariam sendo levadas? Certamente teriam o destino de todas as flores bonitas. Enfeitariam salas luxuosas da cidade e espalhariam generosamente suas últimas fragrâncias. O verdor de suas hastes e o viço de suas pétalas seriam mantidos ainda por algum tempo em jarras de porcelana em cujos bojos se embeberiam de puríssima água e absorveriam alimento químico. Talvez ornassem apenas uma saleta modesta de uma casinha branca e limpa, alegre de vozes infantis e de um canto de mulher em estado de graça. Quem sabe, um galante rapaz as comprasse em um bem arranjado ramalhete e as dedicasse a uma moça gentil que, orgulhosa de ser querida, acariciaria com mãos finas a maciez das pétalas e aspiraria com delícia o olor de seus cálices.

          Mas, era um velório. Seriam rosas de funeral. O corpo ainda não fora trazido. Mãos hábeis mergulharam nas cestas e retiraram todas as diversas flores. Só permaneceram as rosas. Sem entender, Branca e Vermelha observavam a viúva chorosa compor os vasos, enquanto a filha dispunha-os pelos móveis da humilde saleta. Dois arranjos de crisântemos e palmas-de-santa-rita foram depositados sob os braços da cruz na cabeceira do jirau que susteria o ataúde.

          Pela primeira vez Branca e Vermelha viam a luz morrediça do sol ir se apagando sem as presentear com aquele banho de luminosidade crepuscular. As cestas estavam num canto da sala, esquecidas. O retângulo da porta que dava para a rua enlutara-se também. De quando em quando, alguém se punha a tecer história do morto e, mulheres, até então sentadas quietamente, irrompiam em soluços entrecortados de pêsames. A noite arrastou-se longa e interminável. Vozes abafadas, respeitosas. Gritos de criança. Às vezes um lamento. Silêncio. Passos ressoando surdos no chão de madeira. Alguém que  conta um caso qualquer acontecido com outro finado. E, de repente, alta madrugada, um reboliço. Alguém clamando pela misericórdia de Deus, choros convulsivos, o barulho de um portão de ferro se abrindo contra o muro, rogos desesperados, e o esquife adentra a sala, nas mãos fortes de seis homens de feições contristadas e olhos vermelhos. Descansam a urna sobre os cavaletes. Retiram a tampa. Imediatamente a filha do falecido toma umas das cestas de vime e passa a arrumar as rosas em volta do corpo inerte. O morto tem a testa alta e uma expressão serena. Está vestido de camisa xadrez e terno escuro sem gravata. Enroscado nas mãos cruzadas sobre o ventre, tem o terço que muitas vezes repassara com os dedos calejados dos martelos da funilaria. Branca é colocada sobre o peito do homem, com sua haste enfiada na casa do botão do paletó. Vem a segunda cesta e, uma a uma, as rosas completam a cama perfumada do finado. Vermelha é a última rosa e a moça hesita em colocá-la no caixão. Talvez, admirada da beleza ainda evidente da flor, guardasse-a consigo. Entretanto, depois de um tempo que pareceu a eternidade das rosas, a moça, talvez para homenagear a formosura de Vermelha, depõe-na junto a Branca, na mesma fenda do vestuário. Enfim, Branca e Vermelha estarão unidas para sempre. Hão de fenecer lado a lado sobre o peito do morto na escuridão da cova. Vão desprender suas pétalas e confundir seus odores com a fetidez do corpo que volta ao pó. Uma devota puxa o terço. Branca e Vermelha assistem comovidas às preces rezadas à beira do caixão. Dir-se-ia que essas orações as conduzirão ao céu das rosas, onde a beleza da flor não tem outono e o perfume não se extingue jamais.

          O féretro deixou a casa sob a luz inclemente do sol das três. Entretanto, as duas amantes estavam imersas nas trevas da urna fechada. Quando a tampa se abriu, enxergaram uma cúpula imensa, cercada de vitrais que deixavam filtrar réstias coloridas de luz oblíqua, manchando a flor alvinitente e mesclando de cores a rosa rubra. Círios acesos bruxuleavam suas chamas na missa de corpo presente. As vozes se elevavam uníssonas e ecoavam pelos pilares, pelo coro, pela nave principal. Gotículas de água sagrada respingavam o rosto do falecido e as pétalas das duas rosas. A alma do morto foi encomendada para a vida eterna e outra vez o negrume se fez.

          Agora o esquife está aberto ao lado da sepultura. Branca e Vermelha olham o céu pela última vez. Que maravilhosa essa imensa lousa anil, onde os cúmulos imaginam perfis indecifráveis! Que belas as nuvens que fogem do sol, incendiadas de ouro! Que espetáculo os raios solares a esparramarem-se numa coroa magnífica por trás desses imensos castelos de algodão! Aquém, pássaros sobrevoam os ciprestes do cemitério, indiferentes à dor dos homens e das rosas. Alguém avisa que o ataúde vai ser lacrado definitivamente. Adeus aos pássaros, adeus às nuvens, adeus aos céus, adeus ao último pôr-do-sol das rosas. Resta-lhes tão somente o consolo de estarem juntas, enlaçadas, vivendo o derradeiro momento de luz. A pesada tampa começa a descer. Devagar se apaga a beleza eterna do firmamento, o mundo transitório dos vivos, a dor pungente dos mortais. De repente, um grito de aflição: “Espere” — soluça a filha do finado. O homem contém a tampa. A moça debruça-se sobre o cadáver e afaga-lhe demoradamente a fronte pálida. Uma lágrima ardente brota-lhe dos olhos, avoluma-se, escorre-lhe pela face e, eventualmente, cai sobre Branca. “Vai com Deus, pai” — diz em voz sumida, e, bruscamente, endireita o corpo, levando Vermelha na mesma delicada mão que acariciara a face do pai. O caixão é fechado e a escuridão sepulta Branca para sempre.


 
HFigueira
Enviado por HFigueira em 10/08/2011
Reeditado em 02/04/2022
Código do texto: T3150841
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