O BOTO DE BURIQUIÓCA

Esta história teve seu início nas areias quentes de Indaiá. Passava das dez da noite. A praia estava quase deserta.
Sombras eram avistadas de quando em quando produzidas por reflexos próprios daquele lugar. No céu limpo, majestosa a lua bem que poderia ser confundida com uma imensa hóstia consagrada. Ali a natureza não poupou esforços nem recursos. Esbanjou...
Vinha do mar a música que se ouvia não das águas, mas das pedras que audaciosas lançavam-se mar adentro, recebendo em seus dorsos ondas espumantes que as banhavam gentis e incansáveis.
No topo da mais alta rocha, totalmente alheio ao perigo, notava-se o vulto do que parecia ser um jovem que inebriado cantava lamuriosamente para a lua, uma cantiga triste e dolente.
Os poucos moradores e turistas que por ali se achavam estavam intrigados. Afinal quem ou o que era aquele que se expunha a tal perigo e tão triste cantava?
Ninguém atinava com o mistério e pouco a pouco se foram.
Pela manhã, somente Rosinha estava estirada na areia em sono profundo. Seus longos cabelos encaracolados brilhavam como o luar da noite passada e exalavam um perfume de jasmim nunca sentido.
Na madrugada seguinte o canto se mudara para o costão de Boracéia. A música parecia ainda mais triste, porém ainda mais arrebatadora. O mesmo luar intenso transbordava pela noite com um aroma de jasmim perturbador. Do cantor misterioso só se percebia o vulto refletido nas escuras águas do Guaratuba. Alguns até se atreveram a acender lanternas, esfregaram os olhos, usaram binóculos, mas qual, impossível descobrir de quem se tratava.
Desta vez foi a menina Filomena que amanheceu em sono profundo nas areias da praia, uma alva flor de jasmim prendia seus cabelos encaracolados e brilhantes. De nada se recordava.
Por uma semana seguida redobrou-se a vigilância nas praias da região. Nada voltou a acontecer.
- Deve ser coisa de algum turista desmiolado. – Afirmavam moradores das cercanias.
- É boto. – Dizia o velho Damião, pescador que conhecia aquelas águas e suas histórias como ninguém.
- Ora já se viu? – Retrucou Dona Josefa, fazendo o sinal da cruz e seguindo rápido para a igreja de São João Batista para acender uma vela.
Duas semanas depois, os ânimos haviam serenado, a calma voltara a reinar e o caso praticamente esquecido. Noite de sexta-feira, novamente lua cheia e por sinal esplendidamente branca, emoldurada ao fundo pelo Morro das Senhorinhas. A música vinha daí. Os moradores das bandas do atracadouro da balsa, junto ao canal estavam surpresos com o aroma de jasmim que repentinamente substituíra a maresia e o forte cheiro de diesel das embarcações fundeadas junto ao cais, aguardando o raiar da madrugada para zarparem em novas aventuras mar adentro.
Mais uma vez só a sombra de um jovem era refletida ao luar e a música plangia melancólica como nunca. A faceira morena Jurema acordou pela manhã estirada na relva junto ao forte de São João, cabelos brilhantes e o inconfundível perfume de jasmim da flor que segurava despetalada entre as mãos.
Nunca mais se ouviu música tão triste ou luar tão majestoso em Bertioga.
Nove meses se passaram. Rosinha, Filomena e Jurema se conheceram na sala de espera da Maternidade de Bertioga. Haviam dado à luz três lindos e rosados meninos. O que intrigava a todos é que, além de não se saber que eram os pais, os meninos recendiam a jasmim e atrás da cabeça, sob os cabelos brilhantes, tinham um inexplicável orifício recoberto por pequenas guelras. Os médicos estavam abismados.
Só o velho pescador, Damião, de nada se espantava.