FOI NAQUELE DIA... (CRÔNICA)

 
     O forte sol revezava-se com o vento a me tocar naquele dia esquecido. Um como o outro eram meus. Só meus. E o olhar estava para o curto espaço, delimitado por casas à volta, alguns passares despercebidos de pessoas pelas calçadas e os guris convidando a uma partida de futebol sobre o chão encascalhado da rua. Como se a espreitar por entre as coisas, via ao horizonte as serras e montanhas que circundavam parte do bairro. Isso é que os meus olhos viam, mas eu não estava ali, senão no frágil e pequenino corpo de um garoto decrépito. Não que eu estivesse acima e tudo pudesse contemplar. Nem sabia o significado desta palavra. Mas tudo estava em mim sem precisar dos olhos. Aliás, os olhos apenas me limitavam naquele dia. E os olhos, como os demais sentidos, é que, no porvir daquele momento, fizeram-me perder algo que até hoje não mais encontrei. Algo que ficou como aquele dia esquecido de minha infância.

     Foi naquele dia que nem o costumeiro cheiro da carne de porco, acebolada (tão pequeno e já tão humano), fritada por minha mãe, ao qual logo respondia com apresso, sem ser chamado à deglutição, pôde me trazer de onde estava. Nem sei onde estava. Talvez tivesse vazado em outra dimensão, da qual pudesse ser ou não ser. Mas era. Sentia e vibrava com o meu sol e o meu vento.

     Mas eu almocei naquele dia. Ou não almocei? Disso já nem me lembro. Se eu comi algo, foi tão sem mim que nem notei. Naquele dia, o uniforme escolar estava diferente. E o andar para a escola não foi um andar normal. Acho que voei até lá. Sei que em tudo estava ausente. E tudo por isso magnificamente belo se tornava. E o meu riso não estava em meu rosto. Lembro-me que não chorava por dentro. O que sentia? Também não sei. Apenas sentia e tudo era tão meu. O cheiro dos gizes de cera, das tintas impregnadas nos livros. O aroma dos lanches que saboreavam a hora certa. O recreio, regado a brincadeiras e a gritarias das demais crianças. Era tudo tão puro e belo com a minha presença ausente.

     Ninguém notou que eu não estava ali. Fui um ótimo ator em meu casulo de carne e osso, franzino. Meus olhos eram inexpressivos. Ou será que ninguém é que não os percebeu? Sei que não fui notado e não queria o ser. Eram tão humanos todos!

     Naquele dia, lembro-me bem quando cheguei a casa. O afago da mãe e do pai foi breve por eu querer estar só. E os chamados para participar das brincadeiras cotidianas com os amigos foram recusados. Queria sentir o fim do dia, como que se soubesse que jamais se repetiria. Os olhos novamente voltados ás montanhas e serras que por entre as casas eu via me conduziam a lugar nenhum. Apenas pintavam o horizonte, agora com o fraco sol, através do qual eu contemplava muito mais. Mas o quê eu contemplava? Eu nunca soube.

     O fim foi menos repentino que o início. Primeiro as montanhas começaram a tomar meu sol. Foi quando mudei de lugar para o contemplar mais. Consegui alguns momentos, mas a fome da serra era maior. E o meu sol se foi indo. Foi neste dia que ganhei o topo do mundo...


Menkent
 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 31/01/2012
Reeditado em 01/02/2012
Código do texto: T3472913
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