"ALMAS IGUAIS, MUNDOS DIFERENTES".

Era uma terra nova para ela, um mundo todo novo e diferente, muito diferente daquilo que ela conhecia. Outros valores, outra cultura, outra maneira de viver.

Mas ela se adaptava sempre, não tinha dificuldade em experimentar coisas novas, mudanças e costumes. Já fora mais medrosa antes, mas depois que experimentou uma, duas e três vezes ficara até animada e passara mesmo a gostar de conhecer esses novos e às vezes mágicos mundos. Nem sempre eram boas as coisas vividas, mas valia a pena tentar, nunca se sabia o que poderia encontrar, que tipos de pessoas e sensações... Era tudo tão fascinante!

Pois bem, estava ela ali, em uma manhã normal para eles, o dia começara e as preparações para dar início a jornada de trabalho estavam acontecendo. Ela estava a um lado observando tudo, atenta aos detalhes. Tudo lhe parecia importante, não queria perder nada. Um grande caminhão estava com a traseira aberta, coisas eram colocadas dentro, tão depressa que ela nem conseguia discernir o que era. A sua frente uma espécie de carreta comprida, e de puxar à mão, esperava a vez de ser usada, carregada, ou sabe-se lá qual era a sua função. Ela não conseguiu deixar de associá-la àqueles carrinhos em que se carregam os caixões de defuntos em cortejos fúnebres, mas parece que essa não era a serventia daquela carreta. Afinal não havia mortos ali, ela riu-se com o pensamento tolo.

Ele estava junto dela acompanhando tudo, olhos atentos e autoritários. Ele era temido por todos, tinha a fama de ser enérgico, mau, rude e exigente. Ele realmente agia assim, era intolerante, não tolerava erros e nem dava-se a conversas fúteis, vivia ocupado demais. Cercado por agrados e tentativas de aceitação - em outras palavras, muito usadas em seu mundo real, “puxas – sacos” mesmo. Ele era muito rico e poderoso, tudo ali lhe pertencia. E ele vivia mesmo como se fosse um poderoso e mesquinho rei. Gostava de ser temido, gostava de luxo e poder. Divertia-se vendo as pessoas se desdobrarem para agradá-lo. Não fazia questão nenhuma de mudar sua imagem, às vezes até se esforçava um pouco para continuar com aquela fama de mau, embora de fato não precisasse de esforço algum, ele era mesmo mau. Ele era mesmo poderoso, e ser como um rei era natural para ele, ele não conhecia outra realidade. Aquilo era a vida dele e ele simplesmente a vivia, agia como esperavam que ele agisse e pronto.

Ele era o motivo dela estar ali, eles se conheceram, se entenderam, ela quis conhecer seu mundo e seus domínios. Ela queria saber se era possível viver ali com ele para sempre.

Então viera, e até agora estava gostando desse mundo novo e totalmente louco dele. Era louco só para ela, ele achava tudo natural, é claro.

O que realmente ela vira nele? Como um moça delicada e simples poderia se apaixonar por um homem grosseiro como ele? Ela era meiga, doce e gentil. Tinha uma personalidade simples, gostava das coisas e das pessoas simples. Não tinha luxos e nem sabia se portar como uma pessoa rica ou sóbria. Ela gostava de conversas fúteis. Ela gostava das comidas simples. Ela gostava do contato com as pessoas do povo. Na verdade ela se identificava com eles. Jardineiros, cozinheiras, arrumadeiras, carregadores, todos eram pessoas interessantes para ela. Todos recebiam atenção; ela ouvia suas histórias, interessava-se por seus sentimentos e frustrações, entendia e até admirava seu modo de viver. Era com eles que ela gostava de passar a maior parte do tempo e sempre que ele se ocupava com algo importante e ela ficava sozinha na casa, ia para perto dos empregados. E conversava com eles e ouvia e aprendia tudo que se tinha para aprender sobre aquele lugar. Eram coisas tão fantásticas, tudo tão mágico e novo. Tudo tão lindo e diferente.

Parece que ele não se importava com isso, até gostava mesmo de vê-la fazendo parte de sua vida e de sua casa. Era lindo observá-la de longe. Olhos atentos, admirados. Cada simples porcelana na hora do chá a deixava extasiada como se uma jóia rara estivesse sendo colocada diante dela. Cada vaso de flores recebia atenção, como se ela nunca tivesse visto uma flor na vida. Ela era muito viva. Espontânea e descomplicada, tudo lhe interessava, tudo lhe chamava a atenção. E era linda demais, pele rosada e aveludada, cabelos castanhos vivos. Esguia como uma princesa de contos de fadas, mãos delicadas, gestos contidos; e tinha o mais belo sorriso que ele já vira na vida. Um sorriso que mostrava a alma. Ele se inebriava com o sorriso dela. Ficava tonto e pasmado; ainda bem que ela parecia não perceber o quanto ele ficava frágil diante dela. Mal acreditava que ela se dispunha a viver a seu lado e em seu mundo. Ele estava muito feliz por dentro. Por dentro, porque por fora ainda era aquele homem duro e sério. Ele não sabia como expressar em seu exterior os sentimentos novos que experimentava desde que a conhecera.

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Estavam então, os dois olhando os preparativos para o início do dia, era bem cedo, o sol mal saíra. Os empregados já estavam acostumados a presença dela agora, gostavam dela, estavam felizes e animados. Sorriam enquanto trabalhavam, nem pareciam pobres. Na verdade pareciam ricos e bem sucedidos, dada a felicidade deles. E era isso exatamente que a fascinava nessas pessoas simples; eles eram felizes.

Era incrível como ele sendo tão rico e poderoso era infeliz e mal humorado e seus empregados pobres e mal vestidos eram tão felizes. Ele dizia que era a responsabilidade o peso de ser responsável por tudo aquilo que possuía. Mas qual a graça de se ter tudo aquilo e não poder sentir-se feliz? Melhor seria então não possuir nada. Realmente ela não entendia, tinha a esperança de poder ajudá-lo nisso. De tornar sua vida mais leve e menos cheia de regras. Porque na verdade ela via sua alma de menino. Ela conseguia ver através de seus olhos o seu interior doce e meigo e sabia que podia ajudar a trazer aquele ser frágil e doce para fora. Aquele ser desarmado e acessível que seus empregados não conheciam. Sim ele era muito doce, muito lindo e muito gentil por dentro e por isso se apaixonara. Com ela ele era a mais perfeita e gentil criatura dos dois mundos. Ela não precisava de mais nada além dele e de sua força e presença. Era tudo que ela queria na vida.

Ele lhe disse que também não entendia o por que de seu empregado estar cantarolando feliz, enquanto ele estava de mau humor. Na verdade dissera-lhe que estava sempre de mau humor. Ela então segurando gentilmente seu rosto com as duas mãos, olhando bem em seus olhos e vendo então sua alma de menino, disse-lhe: _Você está mau humorado, simplesmente porque pode ser mal humorado, seu dinheiro e posição lhe permitem isso. Seu empregado não pode ser mal humorado, ele não tem esse direito, por isso só lhe resta a opção de ser feliz, ou seria demitido. Não é verdade? Ele olhou-a em silêncio. Só ela podia lhe falar dessa maneira, só a ela ele permitia. Incrível como ela o desarmava sempre. Ela era atrevida e adorável ao mesmo tempo.

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Eles iriam sair em comboio hoje, ela não sabia ao certo o que iriam fazer, nem qual a importância dessa jornada, mas estava animada. Parecia algo importante e ritualístico, tinha todo um preparo e pouquíssimas pessoas poderiam acompanhá-lo nesse trabalho, somente os mais confiáveis, e escolhidos a dedo, tinham esse privilégio. E ele queria que ela fosse junto aquele dia, então ela sabia como era importante para ele e na vida dele e isso a fazia imensamente feliz.

Partiram no estranho comboio, iam a pé, puxando aquele carrinho estranho, pareciam mesmo um funeral, mas não era nada disso, era apenas um trabalho, uma coisa que era feita de tempos em tempos. Coisa importante e necessária naquele mundo. O empregado que puxava o carrinho ia atrás, e parecia se sentir muito importante puxando aquela preciosa carga. Que aliás ela não fazia idéia do que era. Antes de saírem esse empregado embalara um estranho e gigantesco pão caseiro. Era gigante mesmo, tão grande que era fatiado no chão. Ela estranhou aquilo, quem comeria um pão fatiado no chão? Pensou consigo: Esse pão deve servir para alimentar os pobres. Estava acostumada que os pobres fossem tratados como seres desprovidos de direitos ou higiene. Ela ficara sabendo que em seu próprio mundo, existiam alguns que comiam as comidas achadas no lixo. Quando soube disso ficou chocada, e sempre que tinha que jogar alguma coisa de comer fora, pensava nas pessoas que iriam querer comer aquilo, então tratava com todo cuidado e embalava de forma a chegar limpo até elas. Se isso era realidade até mesmo em seu mundo, não se surpreenderia se no mundo dele aquilo fosse assim também.

Perguntou-lhe se ele já havia comido daquele estranho pão e ele lhe disse:_Não com freqüência, mas quando criança gostava muito. Porque?

Ela respondeu: _ Como alguém pode comer um pão que foi colocado no chão?

Ele apenas riu dela. Não deu explicações e nem pareceu se importar com o espanto que o pão lhe causou.

Meu Deus! Pensou consigo mesma _ Ela comeria aquilo?

Lembrou que, como o pão era gigantesco as fatias também eram, e bastava então, cortar a parte que tocara o chão. Simples. Porque ela complicara tanto?

O empregado que agora puxava o carrinho cortara as fatias do pão e embrulhara uma a uma com plástico transparente e fino. E acomodara as fatias no carrinho, isso ela vira. Talvez quando chegassem ao final da jornada entenderia a importância do pão e todo o resto. Não pediria explicações, estava acostumada a ir deixando as coisas acontecerem e ir aprendendo conforme fosse vivendo. Era assim mesmo que gostava. Não gostava de saber antes o que fariam ou para onde iriam. Gostava de se deixar conduzir, assim tudo era uma surpresa e ela amava surpresas. Talvez por isso gostasse tanto de experimentar novos mundos e novos costumes.

Eles estavam em apenas quatro pessoas, ele, ela o empregado que puxava o carrinho e uma senhora, ela era a pessoa em que ele mais confiava, quase uma mãe. Fora babá dele quando criança e agora ocupava um cargo como as nossas governantas. Era gentil e a tratava como se fosse uma princesa. Sempre explicando tudo, como ele gostava, como devia ser feito, para que ele não se irritasse. Ela ria-se dessas regras que a ela pareciam tolas e sem sentido. Sabia que ele sequer se importava se ela as descumprisse as vezes, embora ela tentasse seguir todas a risca. Não queria de fato alterar as coisas ali. Estava amando tudo aquilo, todos aqueles estranhos rituais. Então mesmo sabendo que ele não se irritaria com ela, ficava atenta as orientações da velha e bondosa senhora, queria mesmo aprender.

Eles andavam devagar, mas parecia a ela que o tempo era um fator importante. Porque embora o lugar fosse lindo não se importavam em parar para observar nada. Talvez por estarem já acostumados com aquela paisagem deslumbrante. Mas ela não, ela queria observar de perto cada flor, cada pássaro cada borboletinha colorida.

Entraram por um caminho de terra sinuoso e cercado por árvores baixas e floridas. Seus galhos batiam em seu rosto e o orvalho ainda nas folhas molhavam tudo com suas gotas abundantes, mas eles pareciam não se importar. Parecia que a água gelada só perturbava ela. Então decidiu não dizer nada e deixar seus cabelos se molharem e se perfumarem com as flores e folhas encharcadas que batiam neles.

Cada curva da estradinha, que em alguns pontos era tão estreita que só passava uma pessoa por vez, revelavam uma paisagem nova e linda, salpicada de pequenas flores, de cores variadas, indo do roxo ao branco passando pelo rosa e lilás. Que coisa mais linda! Ela ficava deslumbrada com aquilo e parava para olhar tudo. Ele não se importava muito com as paradas dela, parece até que através dos olhos dela ele podia de fato ver a beleza do lugar e na verdade nunca havia parado para ver ou sentir o perfume das flores, admitia que também se surpreendia de nunca ter observado a beleza de seu mundo. Só os empregados pareciam se incomodar com ela e seu deslumbramento. Talvez por temerem que ele se irritasse e descontassem neles sua irritação, ou talvez por estranharem sua calma e controle e temiam essa pessoa desconhecida e nova a qual eles não estavam acostumados ainda.

Ela passou ao lado de um arbusto muito conhecido em seu mundo, e ela se lembrou das brincadeiras de criança. Esse arbusto possuía uma florzinha delicada e forte, com cheiro suave e delicioso, e de várias cores. Essas flores pareciam contas de colar e ela e suas amigas passavam horas colhendo as flores e depois usando um pendão de capim de caule longo e flexível como cordão, faziam elaborados e coloridos colares de flores. Colocavam os colares no pescoço e nas cabeças como se fossem tiaras de pedras preciosas. De repente sua divagação se esvaneceu pois passou por baixo de uma árvore também sua conhecida. Um pé de amoras silvestres. As amoras eram as maiores que ela já vira, do tamanho de morangos grandes. Pretas de tão maduras, doces e deliciosas. Ela comeu uma, duas, três... eram tantas que ela não vencia pegar todas. E o caminho agora era todo cercado de amoras por todos os lados. Como um corredor comprido e doce de amoreiras carregadas nos dois lados do caminho.

Ela disse para a governanta: _Porque não me avisou que tinha tantas amoras? Eu teria trazido uma cesta para levar algumas.

A governanta pareceu não entender o fascínio dela pelas amoras e perguntou: _ O que faria você com tantas amoras? Ela pensou: verdade, não daria conta de comer todas. Apesar de estarem macias e doces, eram grandes e viçosas e eram muitas mesmo. Pensou que poderia fazer geléia com elas. Mas lembrou-se que estava em um mundo onde tudo se fazia por mágica e as geléias nesse mundo surgiam como mágica, bastando um simples toque no pote de vidro vazio, ele se enchia com geléias cremosas e perfeitas de todos os sabores imagináveis.

Se frustrou um pouco. Para que tantas frutas lindas se nem precisavam delas para fazer geléia e ela nem vencia comer todas? Resolveu apressar o passo e tentar ignorar as frutas que pareciam chamá-la atraindo seu olhar.

Enfim o corredor de amoras acabou e ela limpou a boca e as mãos no vestido, pois estavam manchadas com o doce vermelho das frutas. Chegaram a um lugar com um alto capim feioso. E uma enorme árvore frondosa fazia uma sombra. Pararam, pois parecia que tinham finalmente chegado ao destino final. Ainda não era a vez deles serem atendidos e então aguardaram ali, sentados. Ela viu sair de entre o capim um homem estranho e de aparência má. Ela na verdade podia sentir a maldade que emanava dele. Não sabia porque exatamente, mas não gostava daquele homem e parece que era com ele que fariam negócios. Parece que era para ele que traziam aquelas coisas tão importantes e era por causa dele que aquele cortejo se fazia tão necessário. Parecia que vários daqueles cortejos vindo de outras terras vinham trazer suas coisas ali para serem apreciadas ou vendidas, ela não sabia bem como eram tratados os negócios. Um cortejo que chegara antes deles, estava sendo atendido no momento e ela ficou observando de longe e tentando ouvir o que falavam. O senhor que trouxera as coisas sentou–se sobre uma pedra e parecia estar nervoso. Parece que seu cortejo não agradara. Não entendia-se porque, mas era visível a irritação do homem mau. Porém ele serviu duas taças de um suco de limão gelado. Ela ficou imaginando como seria a limonada daquele lugar mágico. Deveria ser mesmo especial. Uma taça foi entregue ao homem e a outra ficou nas mãos do homem mau. Ele tomou um pouco da taça e o em seguida sorveu todo o conteúdo numa vez só. O senhor o imitou e tomou todo o conteúdo do copo também. E ele caiu morto em seguida. A limonada estava envenenada. Ela ficou estarrecida com a cena. Seu coração bateu em disparada. Que mundo cruel era esse? Como podia viver lado a lado, tanta beleza e tanta maldade? Ninguém ligou, só ela, eles estavam acostumados aquilo também. Ficaram impassíveis, tão impassíveis diante da maldade quanto ficaram diante da beleza da paisagem.

Então ela entendeu o por que dele ser tão duro e tão fechado. Essa era a única maneira de sobreviver nesse mundo. E ela estava prestes a quebrar-lhe as barreiras que o protegiam e que a protegeriam também. Porque ela não possuía esse domínio e auto controle emocionais, ela era sensível demais para sobreviver sozinha ali. Ele precisava dela para fazê-lo sentir o lado bom daquele mundo, mas ela precisava dele para poder sobreviver a crueldade que imperava naquele estranho lugar. Ela voltou do cortejo diferente e modificada. Não era mais a mesma pessoa. O choque da maldade a transformara. Conseguiria ela manter o equilíbrio necessário? Ou terminaria seus dias como os outros ali? Indiferente a beleza ao redor? Como preservar sua essência e ao mesmo tempo sobreviver?