IMENSIDADES E INSANIDADES

    Oito e meia da noite. Havia um tom sombrio no ar. Nos olhos, tristeza e medo. Apreensão. Não em todos. A dor não é a mesma em todos. Filhos sofrem mais. De resto alguns amigos, e amigos de amigos acompanham forçadamente uma sinfonia. Cumprimentos costumeiros, o preparo da anterreza pelo anfitrião. O motivo é nobre. O “terço de Pe. Liberio” pela cura ou salvação da alma da geratriz.

    Sento-me ao meio fio. Meu olhar parece meio perdido. Aproxima-se-me um cunhado. Como fala, sem perceber que não estou ali!

    - Sua TV é Sky, Pecola?

    - É.

    - A Oi ta com uma promoção boa agora, você viu? Boa NE?

    - É.

    - Acho que vou desligar meu telefone e contratar a oi. Colocar um ponto na roça, que acha?

    - An ram.

    - Cê vai na roça amanhã?

    Sem resposta. Uns momentos depois, afasta-se silencioso. Mas vejo resmungos na mente do vulto.

    Contemplo todo o cenário dentro do alpendre. Um primo profere que irá iniciar o terço, em citação de uma passagem bíblica. Levanto-me. Vago. Entro.

    O primeiro rosário ainda é tolerado. Não resisto. Saio. Agora não mais me sento. Deito-me no passeio, como quando era criança. Há quanto tempo não via as estrelas assim! Ouço as vozes. Sinto os semblantes e as mentes em dor. Inaltero-me.

    Meus filhos não se aquietam. João Paulo é o pior. Grita, sapeca, faz arte, alheio a tudo que acontece. Deixo-o livre. Não o deixam. A mãe quer controlá-lo. Não consegue. Minha irmã tenta controlá-lo. Em vão. Um pedido a mim para controlá-lo. Não tenho a mínima vontade de levantar a voz. Muito menos meu corpo do passeio.

    Ouço já o avanço pelo terceiro rosário. Olhando as estrelas, sinto imensidão. Ela me vem à mente. É imensa. O Deus a quem rezam parece imenso. As estrelas acima, juntamente com negros espaços entre elas é imenso. A dor e a angústia da geratriz no leito é imensa. Tudo se agiganta. Tento me controlar. Nada. Estou navegando em imensidades em mim, deitando naquele pedaço de meio fio.

    João Paulo se aproxima. Deita-se por alguns momentos perto de mim. Olha também para cima. Sinto o afago do filho, sem tocá-lo. Ensaio mostrar umas estrelas.

    - Está vendo? Conte as estrelas, filho.

    - Um, dois, três, quatro.

    Não mais. Não conhece o cinco. Rapidamente se vai. Interessou-se mais nas sapequices. Ainda me abstraio. Retorno rapidamente às imensidades.

    A birra com João Paulo continua. Gosto de o ver assim. Não me pergunte por quê. Meu filho liberto. Grita na dor, sem a conhecê-la. Pula. Sorri. Uma leveza na intempérie.

    - Dá um jeito no seu filho! – Minha esposa está nervosa.

    - Deixa o menino.

    - Você não liga? Estão rezando!

    Sem resposta.

    Marília se aproxima. Acho que se cansou das repetições da reza. Deita-se também do meu lado. Abro as asas. Ela se apóia em meu ombro. Diferentemene de João Paulo, aguça a curiosidade e eleva um pouco o olhar.

    - Papai, o homem pode ir numa estrela dessas?

    - Creio que não, filhinha. São lindas não é? Um dia saberá mais sobre isso.

    - Por que não?

    - Estão muito longe, filha. Tão distante, mas tão distante que levaria milhares, milhões de anos para se chegar lá, à velocidade de ano-luz, o que não é possível.

    - O que é anos-luz, papai?

    Percebo imediatamente que fui técnico demais, ou burro demais. Tento remediar, num pequeno sorriso amarelo.

    - É só uma expressão que usam para dizer que é muito rápido filha. O mais rápido que se pode. É como o “The Flash”.

    - Mas na lua podem ir, né?

    - Sim filha. A lua fica mais perto. Já foram até. Podem sim.

    Passa um pontinho andando no céu. Parece próximo às estrelas.

    - Papai, ta vendo uma estrela andar? Ou é um avião?

    Bem sabia ser avião. Mas por que quebrar o momento? Estávamos ali e era hora de um pouco de sonho na dor.

    - Filha, sei não, viu? Esta muito alto para ser avião, não? Parece perto das estrelas, que estranho!

    - Tá sim, papai. E se fosse avião, piscava, né?

    - Sim, filhinha. – eu tentava me concentrar ali.

    A mãe a chama. Odiei isso. O momento era nosso. O sonho era nosso. E a quanto tempo não sentia minha filha assim? E nunca havia contemplado com ela as estrelas! Mas nada digo. Sou silêncio. Sou aceitação. Das artes de João Paulo, das broncas da mãe, das rezas que fazem. Aceito silencioso. Inerte. Não pareço ter forças. Nem quero ter forças.

    Sozinho novamente no último rosário.

    - “Eu vim para que todos tenham vida, e todos tenham vida em abundância...”

    A música sai de dentro do alpendre, em cada passagem de rosário. A música me toca muito mais que as palavras repetitivas. Estas me desgastam e me aleijam. A música que ouço me retorna a imensidade dispersada por alguns momentos.

   Então, contemplo novamente sozinho o céu. Ela me vem novamente. Ela é imensa. Invoco em frações mínimas a imagem do amor feito numa estrela. Imagino-a se contorcendo comigo.

    - Naquela estrela. Naquela lá. Olhe para ela!

    E a amo em pensamento com o olhar na estrela. Ela tem o olhar também na estrela. Teleporte de mente. Orgasmos sem corpo. Amor desconhecido. Entrega. Desejo. Amplitude. Na quente estrela. E ela nem sonha que a amei ali, em frações de minutos, com a intensidade do não-corpo, e com a mente em delírios de imensidades.

    A mãe sofre no leito. A geratriz. O terço está acabando. Os olhos faíscam. Não sou mais menino. Por que olho para as estrelas agora? Por que vejo outras imensidões que não a dor que me dilacera no momento e o amor que sinto?

    - Mantenha o olhar distante, filho, quando as coisas não estiverem boas. – Lembro de meu avô.

    Sim! Vejo!

    - As luzes vão se apagar rapidamente, Vô. As estrelas não se apagam. – Respondo em pensamento.

    E ela nem sabe que, após a amar naquela estrela, continua em mim imensa. A dor de minha mãe no leito é imensa. O Deus a quem oram no alpendre é imenso. As estrelas e o firmamento onde estão são imensos.

    Termina o terço. Despedem-se. Despeço-me. Pego João Paulo e carrego até o carro. Minha filha me abraça.

    São imensos!

    Chego em casa. A imensidão de tantas coisas ainda me deixa perdido. Subo as escadas que dão a meu quarto. Só. Vou ao banho. A água cai. Deliro. Sofro de grande dor. Choro. Amo-a. Amo-a também. Não estou em mim. Acelero.

    Tenho de escrever algo.
 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 17/02/2012
Reeditado em 18/02/2012
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