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(imagem retirada  da internet-google imagens)
VALE DA SOMBRA DA MORTE


 
            “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo: a tua vara e o teu cajado me consolam.” (Salmo 23.4)

            “Gabriel... Gabriel... Gabriel...” Eram os sussurros, quase gemidos que o rapaz Gabriel ouvia ecoar em sua mente. Vozes entoavam um longínquo canto gótico medieval.
            “O que está acontecendo comigo?” Pensava ele confuso. Não conseguia falar... Não conseguia raciocinar... Seus atos eram incondicionados... Andava pesadamente por uma estrada sem fim. Às vezes conseguia correr e parecia-lhe atingir a velocidade de um carro, nesses momentos sombras velozes passavam ao seu lado, como se realmente estivesse olhando pela janela de uma condução muito rápida. Rostos conhecidos com olhares de censura fustigavam-lhe a alma.
            “Socorro... Me ajudem... Onde estou?” As palavras lhe saiam espremidas pela garganta e nem ele as ouviam.
            A estrada era interminável e o ar era tingido de um laranja quase vermelho. Gabriel corria, Gabriel se arrastava, Gabriel caía, Gabriel se levantava, Gabriel corria... Gabriel ouvia “Gabriel... Gabriel... Gabriel...” Seu nome era sussurrado.
            Os pés de Gabriel sangravam. Cansado ele se sentou e chorou.
            “Está chorando, Gabriel?” Pela primeira vez ele ouve nitidamente a voz estrondosa.
            “Siiimm! Eu estou chorando!” Pela primeira vez conseguiu gritar de verdade. “Me ajuda! Onde estou? Que lugar horrível é esse?”
            “Está chorando, Gabriel?” A voz estrondosa parecia sarcástica. “Levante-se e continue, ou vai afundar e então estará preso para sempre no lodo do vale da morte!”
            Gabriel olhou para o chão e seus pés estavam fincados numa espécie de lodo esverdeado. Viu alguns rostos mergulhados naquele lodo com olhares de terror. “Fuja Gabriel, fuja Gabriel...” Sussurravam.
            Mãos se agarravam ao seu tornozelo. “Nos ajude...”
            Num esforço descomunal Gabriel consegue tirar um pé, depois outro. Visões horripilantes e demoníacas o cercam. Risos estrondosos servem-lhe de combustível para continuar a correr. Gabriel vê ao longe uma espécie de igreja flutuando por sobre aquele vale, ele corre em sua direção, mas de repente aquele mausoléu vai descendo e afundando no lamaçal. Ele vê suas esperanças se esvaindo junto com a desaparição do monumento.
            “Corre Gabriel!” A voz insiste.
            “Estou sonhando? Estou tendo um pesadelo? Eu quero acordar!”
            “Sonho Gabriel? Pesadelo? Não... Isto é real! Você veio até aqui por que quis!”
            “Não! Eu quero sair daqui! Me ajude!”
            “Corra Gabriel!”
            Estava ficando cada vez mais difícil. Gabriel via agora sua infância passar por ele como se assistisse a um filme de sua própria vida. Gabriel nascendo, Gabriel brincando, Gabriel se divertindo com os amigos na escola, Gabriel com a primeira namorada, Gabriel tomando banho com as lágrimas de sua mãe. “O que é isso? Por que me banho com as lágrimas de minha mãe? Cadê a minha mãe?”
            Estupefato via agora o rosto disforme da mãe, os olhos escorriam pela face, a boca escorria pela face, seu semblante era de agonia e agora tudo pingava feito vela derretendo aos poucos. Cada pingo que caía se transformava numa pequena luz brilhante pelo chão.
            “Segue a luz Gabriel... Segue a luz!”
            Gabriel corria. Do lodo saíam mãos que tentavam agarrá-lo. Dos vales à sua volta vinham gemidos de dor e agonia. Uma voz mais forte se fez ouvir como tambor de guerra: “Gabriel é nome de Arcanjo e significa ‘O Divino é minha força’. “Olhai os lírios do campo, Gabriel!”
            Lírios voavam por sobre a cabeça de Gabriel. Ele tentava alcançá-los, mas seus pés insistiam em afundar no lodo.
            Gabriel chorava desesperado arrancando os pés do lodo. De repente, sem forças ele cai e seu rosto afunda no lamaçal. Se Gabriel pensava que correr por sobre o lodo era desesperador, agora ele já não pensava mais, pois o que vê não conseguiria traduzir em palavras nem em mil anos de existência. O próprio inferno se materializa ali em sua frente. A agonia deixa de ser abstrata para se transformar em concreta. Gabriel vê rostos conhecidos seu. “Mas como posso estar vendo vocês? Vocês já morreram!”
            Gabriel tenta se levantar, mas seu corpo aos poucos vai afundando... Afundando...
            “Gabriel, volta pra mim!” É a última frase que Gabriel ouve.
            “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo: a tua vara e o teu cajado me consolam.” 
             Quem lia a bíblia em voz alta era uma mulher muito sofrida. Seus joelhos estavam calejados pelas infindas orações. O telefone toca e o seu tilintar é choroso. A voz do outro lado nem precisaria falar, pois dona Esmeralda já sabia. A notícia de que seu filho Gabriel havia acabado de morrer de overdose já era esperada.