Cabeceira Grande.

Estimado Senhor Ribeiro,

Cabeceira Grande. É este agora o nosso lar. Chegamos aqui em nove de dezembro, e ocupamos a casa do descampado. É a única casa da região toda e estava em estado de abandono, a Perpétua teve ainda de limpar as sujeiras antigas, mas a construção é boa, tem boas fundações, precisa mesmo é embelezar-se. Disseram-nos, antes de embarcarmos em viagem, que a última família viveu cá nos meandros de noventa e dois, depois dela a família com registro de viagem para cá fez-se já no século vinte. Sim, é o que deves estar a pensar, essa família é a minha, já agora em dezenove.

Deves estar curioso por saber como é aqui, não é mesmo? Descrever-te-ei tudo ao nível dos detalhes, mas, primeiro, gostaria de dizer-te da viagem e da família. Peço que transmita as novas aos Andrade, pois devem já estar ansiando em saber de nós.

Todos estão agora em repouso magnífico. A viagem de trem não fora tão cansativa como havíamos imaginado, mas as bagagens deram-nos tremenda fadiga – pois, sabe o senhor, estas coisas se perdem nas zorras de embarque e desembarque. A Perpétua ficou tiririca por conta dum patureba que perdera sua maquilagem. A pobre ficou doida, Seu Ribeiro! Pensei que fosse espinafrar-se no meio de toda aquela gente viajante. Os Homens se achegaram donde estávamos plantados já há um tempo – dois homens franzinhos, Seu Ribeiro, o senhor riria se os visse. Informaram-nos, com toda aquela língua e jeito de falar dos homens de canudo, que encontraram a tal tralha da Perpétua e que não haviam-na perdido, mas os carregadores haviam afanado a tal maquilagem. Em todo caso, não era demasiada a gravidade e, assim, não haveria cana. Tive que acalmar a Perpétua, que achara aquilo tudo um absurdo enorme, pois pouco e resolvido que fosse, era ainda crime para punição – viera a acalmar-se depois de um tempo, enfim. Soara estranha mesmo aquela história toda, mas deixei passar por um momento. Estava tudo resolvido.

Não tardou, porém, que a sorrir-se e elogiar o feito que protagonizara, para o oficial vir achacar-nos sinicamente. Ai a Perpétua se desfez, chamou o homem duma infinidade de nomes, dissera até que a mulher do homem era uma ostra galheira. Imagine a encrenca, Seu Ribeiro! Acabou que tive que dar ao homem plata dobrada, à fim de desculpar os insultos de Perpétua, e de acalmar aqueles pisantes impacientes do homem – deus nos livrasse do berrante do homem! Fiquei fulo com Perpétua e ela, que de boba só tem o casar-se comigo, percebera logo o que tinha feito e se fez todo amores para mim. Pode parecer tolice, Seu Ribeiro, mas eu logo me acalmei e deixei passar aquele ranço todo, afinal estávamos todos juntos naquela viagem sem saber o que se daria a nós, não fiz questão de briga – gostei deveras dos carinhos que ganhei dobrados daí em diante.

O senhor já deve imaginar como ficaram as crianças! O Preston – é danado de serelepe esse menino, Seu Ribeiro – ria feito um diabo, e a Carolina fora no embalo, coitadinha, é novinha de mais para entender esses troços da gente grande. Acabou foi que os pequenos alegraram a viagem, graças a Deus. Dá-me uma alegria ter podido trazer esses dois, Seu Ribeiro! O Preston fez anos no dia em que desembarcamos na casa da Cabeceira Grande. Eu havia comprado um daqueles automóveis de colecionar, de cobre, numa estação para dá-lo como presente, porque o pequeno adora essas máquinas modernas. O senhor precisava ver os olhinhos do pequeno quando fitavam as locomotivas, pareciam dois lampiõezinhos tremulantes de alegria. E se bota toda hora a perguntar-me sobre a máquina, fez-me até ir ao maquinista e pedir que deixasse o menino ver a cabina da máquina – o bichinho ficou doido, Seu Ribeiro! Deu-me gosto aquilo, viu? Ter os pequenos nessa alegria, inda que longe das avós e dos primos é coisa que me apetece o espírito.

A Carolina gostou também muito do trem, mas parece que os bichos que passavam pela janela agradaram-na mais. Ela até esquece as bonecas, fica toda babona na bicharada borrada na paisagem. E quando chegávamos em estação então? Não podia ver aqueles perros no abandono que corria a passar-lhes a mão! Tínhamos que tomá-la aos prantos, coitadinha, toda vez que corria atrás deles enquanto estávamos em desaviso.

Chegamos na estação de São José no dia sete de tardinha. Peguei um montante das economias que reservara para nos estabelecermos aqui e saí a procura dum animal e um carro para comprar.

A terrinha lá é difícil para essas coisas, demorei quase quatro horas para achar um vendedor que me perecesse honesto. Comprei uma mula rajada, feia que dói, mas é boa e está com grande saúde e força. O carro é bom! É usado, mas é bem feito e está bem conservado – é de fabricação da casa de mestres Santa Luzia, diziam por lá que é uma das melhores. Tinha deixado a Perpétua e as crianças numa hospedaria de frente para a estação.

O gasto com o carro e o animal fora alto, mas ainda dentro do esperado pelos meus cálculos. Voltei à hospedaria e consultei Perpétua, dizendo-a sobre os gastos e do quanto tínhamos ainda em cofre. Ela achou melhor partimos já naquele dia, inda que de noite, e dormir na estrada, em casa de alguém que nos hospedasse ou mesmo no carro, assim teríamos mais segurança com as finanças no caso duma emergência. Eu pensei um pouco, mas aceitei e achei a idéia razoável. Além disso, na região não se tinha notícias de malfeitorias aos viajantes e a ladroagem por lá era pouca. Com a ajuda das crianças, carregamos o carro e partimos.

Naquela noite não paramos, não encontramos casa alguma em redor da estrada. As crianças dormiram no carro enquanto andávamos ainda – o balanceio das molas era bom e embalara o sono tranqüilo de ambos. Perpétua e eu permanecemos acordados, sem muita conversa. Estávamos cansados, mas parece, pelo menos à mim, que o entusiasmo e o ar de novidade, de desconhecido, seguravam minhas pálpebras abertas e a mente atenta. Perpétua estava cansada, se via, mas permanecia acordada para fazer-me companhia – uma graça, Seu Ribeiro.

No dia oito pela manhã, finalmente, encontramos um sítio pequeno. Havia gente em casa, pois se via fumaça subir pela chaminé do fogão de lenha. Conduzi o carro até a entrada e fui dando os bons dias em voz alta, para ter certeza se a gente da casa nos percebia a entrada. É sempre bom esses tipos de cuidado, Seu Ribeiro, gente inocente de intenção morre no desaviso, o senhor bem o sabe. Mas, graças a Deus, um senhor baixinho recebeu-nos abanando o chapéu de longinho, saindo duma parreira de café pequena.

Apeamos do carro, eu e Perpétua, e deixamos os pequenos dormindo ainda. O homem era o Sr. Geraldo. Boa gente, simpático, recebeu-nos como se outrora fossemos muito amigos. A sua dona, a Sra. Verena, também muito zelosa e feliz com as visitas.

Contaram-nos que há tempos não viam gente viajante por ali, que gente mesmo só encontravam quando o Aldo – ele insistiu-nos que o chamasse assim, uma figura – tinha de ir à São José para comprar ferramentas. Ficaram curiosos com a nossa viagem.

Dissemos à eles que rumávamos á Cabeceira Grande e ficaram espantados, inda que tentando disfarçar. Deviam achar-nos doidos de irmos àquele fim de mundo, mas expliquei-lhes que o motivo era nobre, que iríamos desenvolver e estabelecer morada nessa terra que o senhor havia adquirido, Seu Ribeiro. O espanto do casal não passou, no entanto – estavam incrédulos. O Seu Aldo contou-nos que conhecera a última família que lá viveu, mas fazia já muito tempo que tinham partido. Inquiri-lhe para onde foram e respondera-me apenas um “Deus não me permite o saber dessas coisas, meu filho...”. Contentei-me com isso, não queria importunar pessoa tão bondosa.

Não queríamos nos demorar muito mais ali, havia ainda chão para correr, e decidimos partir. Seu Aldo perguntara-me se eu havia comprado querosene e súbito a Perpétua olhou-me: esquecêramos do querosene. O homem apenas sorrira e a Sra. Verena veio chegando com dois pequenos barris com o combustível – e não mo deixaram pagá-los! Deu-me ainda uns pacotes de bom fumo e pediu-nos para que fossemos visitá-los o mais logo que pudéssemos, assim também nos conheceríamos melhor e acabaríamos com a solidão deles. Eu achei a idéia maravilhosa, assim nós também não estaríamos completamente sozinhos nessa sua terra longínqua, Seu Ribeiro.

Embarcamos novamente no carro – as crianças já tinham acordado – e seguimos viagem. Em volta da estrada só se via mata alta e a própria estrada por vezes desaparecia no meio dela. Por conta do pouco uso, os riscos de terra somem no meio do mato alto. Perpétua e eu estávamos mortos de sono, mas ficamos acanhados em pedir pouso em casa de nossos recém amigados, então paramos o carro depois de algumas horas de viagem. A Perpétua dormira algumas dessas horas enquanto ainda viajávamos e depois mais um pouco quando paramos, mas, assim que ela acordara para ficar de olho nos pequenos eu deitei um pouco. Por conta disso que chegamos só no dia nove por cá, mas foi uma boa chegada.

Ainda no carro, presenteamos o Preston e demo-lo os parabéns pelos anos completados – já eram dez! Ele ficou todo alegre, mas mesmo assim ajudou-nos primeiro a descarregar as bagagens para depois brincar com o presente.

Como eu já disse, Seu Ribeiro, a casa estava bem suja, parecia mesmo uma casa abandonada, mas não tive problemas em operar as fechaduras, as janelas e portas – tudo aqui é de primeira. A casa é bem espaçosa e sobram quartos – são quatro e mais um que transformamos em despensa. As crianças gostaram, eu e Perpétua também, mas tivemos grande trabalho em deixá-la habitável outra vez.

Coisa difícil foi acostumar-nos com a ventania daqui! Nos fundos da casa existem duas mangueiras enormes, e cada manga que dão! Mas a noite, quando os ventos sopram mais forte, as duas parecem que choram alto. É um barulho triste, Seu Ribeiro, as crianças até assustaram-se um pouco, mas, com o tempo, acostumamo-nos bem.

Bom, Seu Ribeiro, o senhor já deve estar a se coçar para saber da sua terra. O senhor pode ficar sossegado, aqui a terra é ótima, roxa por todo o terreno do senhor – e meu deu trabalho medi-lo e conhecê-lo todo hein! Tudo que eu e Perpétua plantamos deu fácil e cresceu bonito, o café do senhor aqui não terá problema algum. E tem aquelas mangas, coisa deliciosa, Seu Ribeiro! Parecem uma gema de tão amarelas, tem uma doçura de rapadura e são graúdas as bichas! Assim que o senhor aqui chegar e resolver que haverão de ser resolvidas, experimente uma e entenderá o que eu digo. As crianças mesmo adoram.

A mata aqui é bem alta e densa, assim como no caminho até aqui. O senhor terá uma trabalheira em derrubá-la, ainda mais trabalho terá em trazer os peões para trabalhar aqui, mas isso são coisas futuras, deixemos... Ah!, quase me esqueço, o rio daqui é realmente uma coisa que dá gosto! Agora entendemos o porquê do lugar aqui ter este nome, o bicho nasce no alto de um morro e, uns dois metros só abaixo, já se faz um lago grande que escorre como rio abaixo. O figurão que vendeu este pedaço ao senhor não passou abacaxi, pois o terreno todo é muito bem feito por Deus.

Limpei o redor da casa e deixei um bom descampado. Trabalhei duro, mas confesso que não pude fazer muito, pois tive de resolver vários problemas por aqui. Sobre isso agora, peço sua licença, senhor, para delongar-me um pouco mais nessa carta. Começarei por um dos dias da limpeza da casa, perto da nossa chegada.

A Perpétua estava a limpar o quarto que demos ao Preston e encontrou um quadro antigo. A casa toda aqui tinha alguns móveis, cama, cômodas, criados-mudos e cadeiras, e ela encontrou este quadro dentro da cômoda que estava naquele quarto. Era um retrato dum senhor bem vestido, mão esquerda fechada e apoiada na perna esquerda, com o braço um pouco dobrado e o outro descansado sobre uma mesa. O olhar era de poucos amigos, tinha uma boca marrenta, mas as crianças acharam graça porque o coitado era vesgo. Em falar a verdade, Perpétua e eu também nos divertíamos com aqueles olhos – o senhor precisaria vê-los! A Carolina nos pediu para pendurá-lo e cedemos, ia alegrar um pouco a casa.

A Perpétua pendurou-o num preguinho que já estava cravado na parede da sala. As crianças lá brincavam e riam quando olhavam o retrato, inventavam história com o homem desconhecido, todas cômicas, aproveitando-se da vesguice do personagem. Isso me deixava muito feliz. Até eu, quando voltava cansado do serviço pesado, entrava via aquela figura e ria! As crianças só me ouviam um riso e já corriam a me abraçar sorrindo também. O cansaço até sumia, Seu Ribeiro!

Daí o tempo se foi passando, as crianças descobriram que era mais divertido brincar nas mangueiras. Elas não saiam de lá. A Perpétua ficava louca de medo do Preston cair, lá de cima, mas o moleque era esperto, não teve nem ralado durante um tempão. Mas, como diria vossa finada companheira, Seu Ribeiro, “desgraça é amiga da confiança”. Numa tardezinha o coitado caiu dum galho alto da mangueira. A Carolina veio numa carreira desesperada, chorando, contando como podia naquela língua dela. A minha espinha gelou, corri lá e encontrei o menino estirado no chão, cheio de corte na cara e roxo no corpo, desacordado. Tomei-o no colo e levei para casa. Tratamos dele bem, mas só acordou de vez mesmo dois dias depois. Eu fiquei intrigado, Seu Ribeiro, com a cara do menino. Parecia ataque de bicho aquilo, todo arranhado, como se tivesse brigado com gato grande. Eu tornei na mangueira para ver se havia sinal de algum animal, mas não havia nada! O que haveria de subir naquelas árvores altas, Seu Ribeiro? Essa idéia me dormiu depois de um tempo, porque o coitado do menino acordou e me partiu o coração. Perdeu todo o juízo, já não fala coisa com coisa, a boca já não sabe como fechar direito, fica num escorrer de saliva. Às vezes o menino desesperava sozinho, parecia que estavam a cortar-lhe um braço, se retorcia todo, gritava alto, chorava, a boca entortava. Uma judiação! A coitada da Carolina não podia ver o irmão muito tempo que já chorava de pena, fazia uma cara tão triste que enchia o coração da gente de peso, Seu Ribeiro.

A perpétua, no começo, me reprimiu duro pelo excesso de confiança no menino e eu aceitei – aceito minha culpa. Depois dum tempo até ela esqueceu isso, mas vivia numa tristura de ver o menino naquele estado. A gente vivia a cuidar dele sempre, mas se distraia como podia, eu com o trabalho no descampado, a Perpétua com o trabalho de casa, mas não desgrudava do menino.

Com o passar do tempo a gente foi se acostumando, mas eu sinto culpa ainda pelo acontecido ao coitado, Seu Ribeiro.

A Carolina, do pouco que tinha aprendido a falar, empacou naquilo mesmo, não consegue mais aprender. Aprendeu uma nova, não sei de onde, talvez no dia do acidente do Presnton. Quando ela via o irmão num daqueles ataques de desespero, chorava a gritava “Oão! Oão!” e a gente demorou em saber o que era.

Alguns dias depois resolvi visitar o S. Aldo e a Sra. Verena. A Perpétua achou melhor ficar em casa com as crianças e, a bem dizer, não havia jeito de viajar mais com o menino naquele estado. A Carolina também não desgrudava do irmão e eles ficaram todos.

Naquele dia saí de noitinha e fui chegando por lá no amanhecer. O S. Aldo ficou numa alegria em me ver! A Sra. Verena nos passou um café e contei-lhes o que tinha acontecido com o pobre do Preston. Os dois ficaram assustados, Sra. Verena pegou na mão do S. Aldo e apertou forte. Depois os dois ficaram sombrios e o S. Aldo principiou uma história à mim, que prefiro aqui transcrever o que der, de memória, porque a coisa é estranha e me deixou cismado quando me contaram, inda que não acreditasse muito naquele tipo de coisa. Ele disse-me mais ou menos assim:

“Seu Antônio, desde quando o senhor viera aqui de primeiro eu queria lho dizer, mas achei melhor deixar de lado, afinal a gente sabe dessas coisas pela boca do povo e não queria assustar sua esposa e seus meninos.

A gente toda de São José espalha a história de que a família do S. João Inácio da Serra, que era a que lá vivia anteriormente, fora toda assassinada por ele naquela casa. A história choca a gente pela brutalidade e pela motivação.

Diz-se ai que eles viveram tempo largo de felicidade, que o S. João tivera muito dinheiro e mudara-se para lá em busca de sossego e, ele mesmo supostamente dizia, ‘um lugar para morrer descansado’. Dizem que ele e a D. Izilma, sua esposa, plantaram lá, assim que chegaram, umas mangueiras como símbolo da família na Cabeceira Grande.

Algum tempo depois de se estabelecerem por lá, o S. João contratara uma dúzia de peões para construir uma morada digna da família e começar a preparar a terra para uma pequena lavoura. Os peões demoraram a levantar a casa, pois dizem que o homem era detalhista e cismava em tudo que os peões faziam. A D. Izilma era um amor com eles. Cozinhava todo dia um almoço gostoso, tinha dó do trabalho dos peões, pois sabia do gênio do marido e do que ele os fazia enfrentar.

Caso foi que ela se engraçou por um dos peões, um tal de Marino. D. Izilma escondera o caso muito bem durante grande tempo, nem suas duas filhas, que – dizem – eram muito intimas à mãe, desconfiaram daquele cambalacho.

Porém, as obras terminaram e o tal Marino teria de partir. D. Izilma ficara muito abatida, mas havia de seguir-se a vida. Marcaram uma despedida lá onde haviam sido plantadas as mangueiras, encontrar-se-iam pela manhã, pois S. João voltaria apenas na metade do dia, já que viajara até o banco de São José para efetuar o saque e pagar a mão de obra. As filhas estariam ainda dormindo por aquele horário.

Com o tempo corrido, encontraram-se os dois nas mangueiras. Dizem que amaram-se ali como nunca antes, uma despedida digna, como se os dois partissem a exilar-se d amor para sempre.

Quando S. João tornou a casa encontrou os peões sentados no chão batido em frente da casa. D. Izilma e as filhas estavam arrumando a casa. Assim que entrou em seu escritório, começou a chamar um por um os peões e fazer-lhes o pagamento. Assim foi, até que um deles disse-lhe que tinha um segredo grave para confessar-lhe. S. João ficou de orelha em pé, mas o homem não confessaria nada sem que S. João prometesse pagar-lhe o dobro dos honorários. Assim feito, o homem contou o segredo de D. Izilma e de Marino, o adultério. S. João daí ficou sombrio, mas continuou a pagar os peões, que iam recebendo todos antes de Marino.

Foi chegada a vez do amante secreto de D. Izilma. S. João recebeu-o lamentando-se, dizendo que fizera mal as contas e que o dinheiro havia se esgotado. Pediu então para que Marino ficasse até a manhã do outro dia, que ele iria com o próprio até São José sacar a quantia devida e de lá ele já poderia seguir viagem. Marino concordou, decerto não via perigo em S. João, além de ser aquilo motivo para mais uma noite perto da sua querida amante.

S. João fez com que tudo corresse normalmente, sem que ninguém o desconfiasse. Um pouco antes de dormirem todos, porém, disse ele a D. Izilma que esquecera o cofre do escritório aberto, que havia de fechá-lo e logo voltaria. A esposa de nada desconfiou, mas S. João começou a se demorar e ouviu-se o ranger da porta principal da casa. Dizem que nessa hora a mulher ficou aterrada e correu para fora da casa, mas nada pode fazer. Mal ela saíra, S. João puxara o gatilho e tirara a vida de Marino. D. Izilma atirou-se, de impulso, violentamente na direção de S. João. Este respondera-lhe com um tiro certeiro. Dizem que não teve remorso algum, estava tomado pelo diabo.

As filhas, ao barulho dos tiros, acordaram assustadas e correram também para fora da casa. Ao verem a mãe estirada sem vida no chão desesperaram. Choravam agarradas ao corpo e despejavam injúrias no pai. Ele, movido ainda pela fúria, cismou que as duas filhas eram cúmplices da mãe. O pai era habilidoso com as armas e o tempo com que recarregou os dois cartuchos que a arma era capaz de atirar não foi suficiente para que elas pudessem correr...

O homem voltou a si apenas no dia seguinte, só ai foi que tirou a própria vida. Dizem que antes disso ainda enterrou os corpos da mulher e das filhas aos pés das mangueiras, que eram ainda jovens.

Tempos depois alguns dos peões estranharam o não regresso de Marino e mandaram um telegrama à delegacia de São José – de certo já desconfiavam da descoberta da traição. Quando os oficiais chegaram à Cabeceira Grande encontraram apenas os corpos de S. João e de Marino.

Veja, Seu Antônio, isso é tudo história do povo. A gente nunca sabe que parte é verdade. Mas dizem que ninguém mais lá tinha ido porque o homem continua a cuidar da casa, e que a família vela pelas tais mangueiras da propriedade. Mas isso são histórias do povo, não o quero fazer crer que isso tenha a ver com o ocorrido com seu menino e...”

Imagine o senhor meu espanto, Senhor Ribeiro! Eu me pergunto se o senhor não conhecia essa história quando mandou-me cá... Mas isto não é caso para esta carta, quero apenas continuar, para que todos aí saibam notícias nossas.

Quando voltei, cheguei em Cabeceira Grande ainda muito cedo. A casa estava um silêncio comprido, as crianças deveriam estar ainda dormindo. Fiquei pensando se deveria contar a história para Perpétua, não sabia se queria preocupá-la com aquilo. Entrei em casa, mas não se sentia o cheiro de café que era habitual ali naquele horário. Chamei por ela e não obtive resposta. Corri para os quartos e as crianças também não estavam lá. Comecei a gritar pelo descampado e não ouvia resposta alguma! Súbito veio à minha mente as mangueiras e disparei em direção à elas. Que visão terrível, Seu Ribeiro! A Perpétua agarrada com as crianças, sujas, pareciam terem sido arrastados até ali. Estavam mortos!

Eu perdi o senso de tudo, Seu Ribeiro, perdi! O meu patrimônio todo era minha família, e o que fizeram à ela? O que eu fiz à ela?!

Corri a propriedade toda, procurei por sinal dum assassino, ou dum animal. Não queria acreditar naquela história que o S. Aldo havia me contado, não queria! Mas o caso era grave, não havia sinal de nada! Eu já estava ficando louco, mas não importava, todos estavam mortos, o que eu fazia ainda ali de pé, respirando, assistindo àquilo tudo?

O senhor irá se espantar, mas não penses que eu minto. Quando tornei para dentro da casa reparei no retrato, que agora eu sabia que era o tal S. João – o “Oão” que a pobre Carolina dizia. O semblante do homem havia mudado. Havia agora um leve sorriso, os olhos aprumaram-se, e debaixo da mão pousada na mesa havia uma arma! Não era possível que eu não reparara nunca naquilo, havia mudado!

Eu posso estar louco, Seu Ribeiro, posso mesmo estar, mas não me importa mais. Esta carta é informe ao senhor e aos meus parentes daí. Não sei o que será daqui em diante. Volto a escrever-lhe, Seu Ribeiro, ao menos para dizer o que o senhor deve fazer em relação à propriedade.

Antônio,

ao dia 28/06/1919.

Ps: Senhor Ribeiro, tenho do senhor apenas o endereço para o envio. O senhor Antônio procurou-me para esta carta, pois sou o único escrevente de São José – muita gente daqui é ainda leiga em escrita. O delegado reteve a carta para investigação, por isso estou enviando-lha somente agora. Os corpos do senhor Antônio e de sua família fora encontrado em Cabeceira Grande, todos dentro da casa. Segundo me dissera o próprio delegado, não fora encontrado o quadro referido nesta carta, assim como não constatou-se a existência do casal Geraldo e Verena.

O delegado pede para que o senhor compareça o mais rápido possível na delegacia de São José, para as providências devidas em relação à propriedade – os peões aguardam ainda o pagamento referente às obras realizadas na fazenda. Os corpos já foram enterrados no cemitério da cidade.

Com sinceros lamentos,

Carlos Domingues,

Escrevente.

São José, 19/11/1919.

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 15/07/2012
Código do texto: T3778952
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